Contra mercantilização da educação, documento final da Conae propõe o fortalecimento do direito à educação pública a todas as pessoas

Segundo a proposta da comunidade educacional, políticas neoliberais como a Reforma do Ensino Médio devem ser revogadas; documento final da Conferência prevê que novas políticas devem ser construídas contemplando a participação de toda a comunidade escolar

 

A Conferência Nacional de Educação (Conae) 2024, que aconteceu de 28 a 30 de janeiro, na Universidade de Brasília (UnB), no Distrito Federal, discutiu e votou a aprovação de emendas às propostas apresentadas nas conferências estaduais, municipais/intermunicipais e distrital.

Na Conferência, aconteceram sete plenárias simultâneas de discussão do Documento Base (final). O resultado é o texto final da Conae 2024, que propõe a garantia plena do direito à educação a todas as pessoas, rejeitando políticas neoliberais de redução do papel do Estado na educação e de abertura para intervenção de grupos privados sem gestão democrática e sem regulação, que abrem brechas para processos de mercantilização, privatização e precarização da educação pública. 

O documento possui caráter deliberativo e espera-se que o Ministério da Educação (MEC) deve seguir este conjunto de propostas para formular um Projeto de Lei do novo Plano Nacional de Educação (PNE) – legislação que é a espinha dorsal da educação brasileira e deve passar a tramitar no Congresso Nacional ainda neste ano.

No Eixo II – que trata do conceito de direito à educação e de todas as etapas e modalidades –, após a plenária final, ficou garantido na proposta as revogações de/da:


- Portarias e decretos que atentam contra o Custo Aluno-Qualidade Inicial/Custo Aluno-Qualidade (CAQi/CAQ);

- Base Nacional Comum Curricular (BNCC);

- Base Nacional Comum para a Formação de Professores (BNC-Formação);

- Reforma do Ensino Médio (Lei 13.415/2017). 


Como propostas para fortalecer novas políticas de Estado, ficam previstas:
 

- Para o Ensino Médio: a construção de uma proposta contemplando a participação de estudantes, comunidades, professores e representantes sindicais. (A Campanha defende o PL 2.601/2023 e sugere melhorias no PL 5.230/2023, do governo federal);

- Para a formação de docentes: a retomada das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial em Nível Superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e, para a Formação Continuada, aprovadas pela Resolução CNE/ CP nº 2, de 1º de julho de 2015;

- Para a matriz curricular: a construção de um novo projeto curricular, formulado com ampla participação popular e com base nas Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica;

- No caso do CAQi/CAQ: a retomada da construção dos mecanismos e sua implementação como previsto na Lei 13.005/2014, e aprovado na EC 108/2020 – que foi a conquista do #FundebPraValer. Para a Campanha, a referência deve ser a produção iniciada pela própria entidade – que concebeu o mecanismo –, fortalecida em parceria com a Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca).

 

Veja aqui os destaques dos demais eixos:


Eixo I - O PNE como articulador do SNE, sua vinculação aos planos decenais  estaduais, distrital e municipais de educação, em prol das ações integradas e  intersetoriais, em regime de colaboração interfederativa;
Destaque: Aprimoração do Sistema Nacional de Educação, a ser instituído de acordo com sua essência e estruturação enquanto política pública de Estado, para que seja feita a regulamentação da cooperação federativa na educação. E tomando o PNE como epicentro e espinha dorsal das políticas públicas educacionais, em contraposição ao Projeto de Lei 235/2019 que está no Congresso Nacional – vide Nota Técnica da Campanha sobre o tema. Segundo a NT e o texto final da Conae, para garantir o pleno direito à educação, o PL 235/2019 precisa fortalecer: o Custo Aluno-Qualidade (CAQ), para tornar adequado e justo o financiamento educacional; o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb), para contribuir diretamente para a melhoria das políticas públicas educacionais pois amplia o sentido da avaliação, ao se propor a avaliar a qualidade, a equidade e a eficiência da educação básica no país; e a gestão democrática, para aprimorar a participação tanto nos municípios quanto da comunidade educacional, acadêmica e da sociedade civil.

Eixo III - Educação, Direitos Humanos, Inclusão e Diversidade: equidade e  justiça social na garantia do Direito à Educação para todos e combate às  diferentes e novas formas de desigualdade, discriminação e violência;
Destaque:
práticas de superação do racismo, machismo, sexismo, LGBTQIAPN+fobia e capacitismo devem ser inseridas e implementadas dentro de uma política de valorização e formação das/os profissionais da educação. Devem ser estabelecidas diretrizes curriculares com a perspectiva de uma educação antissexista, antirracista, anticapacitista, antilglbtfóbica e pautada nos direitos humanos a partir de uma Base Comum Nacional que se constitua como princípios para a formação inicial e continuada de professores e da retomada das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial em Nível Superior.
 

Eixo IV - Gestão Democrática e educação de qualidade: regulamentação, monitoramento, avaliação, órgãos e mecanismos de controle e participação social nos processos e espaços de decisão;
Destaque: A gestão democrática deve ser efetivada e consolidada enquanto princípio constitucional e política pública. Deve ser caracterizada pela/pelo: criação e aprimoramento de processos participativos, transparência, autonomia didático-científica, administrativa, pedagógica e de gestão financeira das instituições do ensino superior e da educação básica; eleição direta de diretor(as) e reitor(as); participação social efetiva; fortalecimento dos órgãos, espaços coletivos e instâncias de decisão; preocupação em garantir o acesso, a permanência e o ensino-aprendizagem a todas as pessoas na escola e nas instituições educativas; como também assegurar à inclusão de todos os grupos e comunidades marginalizadas; e a defesa da educação pública, laica, gratuita, inclusiva, plural e da formação emancipatória e para a cidadania. Deve ser garantida e consolidada a participação coletiva por meio da criação e fortalecimento das assembleias escolares, dos grêmios estudantis, centros e diretórios acadêmicos, da associação de pais, mães ou responsáveis, de profissionais da educação e também assegurar a criação de conselhos universitários, dos conselhos escolares e dos Fóruns dos Conselhos Escolares. A Campanha Nacional pelo Direito à Educação realiza o Projeto Euetu - Grêmios e Coletivos Estudantis, que busca mapear grêmios e coletivos escolares das redes municipais e estaduais de forma a conhecer sobre participação e organização de estudantes na gestão escolar para a gestão democrática e educação inclusiva. O projeto é desenvolvido com foco nos estados do Amazonas, Amapá e Maranhão e será expandido para o restante do país.
 

Eixo V - Valorização de profissionais da educação: garantia do direito à  formação inicial e continuada de qualidade, ao piso salarial e carreira, e às condições para o exercício da profissão e saúde;
Destaque: Devem ser asseguradas condições objetivas e subjetivas para garantir a formação e valorização dos profissionais da educação, como: licença para qualificação, planos de carreira, jornada única de trabalho, pagamento de hora-atividade, salários dignos e o pagamento do piso nacional. É defendida a Resolução CNE/CP nº 2, de 2015, que apresentou muitos avanços para a formação de professores, ao procurar dar organicidade para a valorização dos profissionais da educação, ao tratar em um mesmo documento sobre formação inicial e continuada, plano de carreira, salário e condições dignas de trabalho. Entretanto, a Resolução CNE/ CP nº 2, de 2015, foi revogada intempestivamente, sem diálogo, antes mesmo de finalizar um ciclo formativo que permitisse o acompanhamento e avaliação do seu processo de implementação. O pleno do Fórum Nacional de Educação (FNE), reunido nos dias 29 e 30 de maio de 2023, decidiu, por unanimidade, ratificar a defesa e retomada do Parecer CNE/ CP nº 2, de 9 de junho de 2015 e da Resolução CNE/ CP nº 2, de 1º de julho de 2015, os quais articulam a formação inicial e a continuada e representam um consenso no campo educacional, incorporando princípios e demandas históricas e coletivamente construídos. 

Eixo VI - Financiamento público da educação pública, com controle social e garantia das condições adequadas para a qualidade social da educação,  visando à democratização do acesso e da permanência;
Destaque: permanece a indicação para a garantia de investimento de 10% do PIB para a educação pública – uma pauta histórica defendida pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação –, aumentando a participação relativa do governo federal no financiamento, de forma a considerar as necessidades e desigualdades educacionais brasileiras. São mostradas no texto final as fontes de financiamento para chegar a esse patamar: além dos tributos arrecadados da população, deve ser considerada a riqueza natural do país constituída pelas águas, minérios, petróleo e gás e a exploração das energias renováveis (eólica e solar) e demais fontes desenvolvidas na transição energética. Há, portanto, que se considerar o financiamento da educação como uma grande prioridade nacional, fato que ocorreu em diversos países, como Finlândia, França, Coréia do Sul, Japão e Noruega.

Eixo VII - Educação comprometida com a justiça social, a proteção da  biodiversidade, o desenvolvimento socioambiental sustentável para a garantia  da vida com qualidade no planeta e o enfrentamento das desigualdades e da  pobreza.
Destaque: criado a partir de uma proposição que entidades do Fórum – entre elas a Campanha Nacional pelo Direito à Educação – apresentaram e sustentaram no Pleno do FNE, este eixo contribui para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e a garantia à justiça climática, de forma inédita. Prevê a promoção e a garantia, gradativas, como política de estado, da oferta de educação ambiental na perspectiva da sustentabilidade, em todos os níveis, etapas e modalidades da educação, respeitando as especificidades de cada região. Também assegura a implementação da política e das diretrizes nacionais de educação em direitos humanos (EDH), em todos os níveis, etapas e modalidades da educação, visando o alcance da justiça social e da cidadania plenas.

“Estamos com um documento final que faz jus às previsões constitucionais e legais, seguindo a linha do PNE atual mas aprimorando-o, sendo uma proposta ainda mais inclusiva e com avanços significativos no sentido de acesso, permanência, qualidade, e conclusão das etapas e modalidades, com parâmetros financiamento e indicação de fontes de recursos para garantir que ele saia do papel”, analisa Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

O Eixo II, que foi coordenado por Pellanda, tem como título “A garantia do direito de todas as pessoas à educação de qualidade social, com acesso, permanência e conclusão, em todos os níveis, etapas e modalidades, nos diferentes contextos e territórios”. Foi Pellanda quem anunciou as garantias do Eixo II na plenária final.

“O Eixo II da Conferência Nacional de Educação foi central. Nele foram aprovados temas essenciais da #Conae2024, como as revogações das políticas de Temer, Bolsonaro e das fundações empresariais, além de trazer alternativas de políticas públicas. A relatoria e coordenação do Eixo 2 coube a Andressa Pellanda. Além desse trabalho corajoso, técnico e político, ela lidou com milhares de emendas e coordenou todo o trabalho de incidência da rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação em todos os Eixos, até o início das plenárias. Pellanda merece todo o reconhecimento pelos ótimos serviços prestados à Educação Nacional”, disse Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da USP e coordenador honorário da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

Tomando o texto final como um todo, outras propostas foram aprovadas, mantendo o perfil ousado das metas e estratégias do PNE, e evitando retrocessos. Algumas delas: investimento de 10% do PIB em educação; universalização do atendimento à pré-escola a partir dos 4 anos (com previsão de suspensão dos conveniamentos com creches e pré-escolas até o 5º ano do PNE); educação de tempo integral, com jornada diária de sete horas, para pelo menos 50% dos estudantes; e triplicar matrículas da educação profissionalizante no Ensino Médio.

Atuação da Campanha
A Conae 2024 aprovou em seus sete eixos todas as emendas indicadas pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação no documento final da etapa nacional.

De um total de 8.651 emendas, a Campanha incidiu estrategicamente sobre centenas delas. De modo geral, embora haja emendas ao Projeto de Lei na tramitação do PNE no Congresso Nacional, o texto final da Conae 2024 atende às pautas históricas da Campanha e da grande maioria dos segmentos da educação.

A Campanha Nacional pelo Direito à Educação participou com 140 delegadas/os, abrangendo todas as unidades federativas.

Essa mostra de participação coletiva nacional reforça o caráter de construção democrática da Conferência, o qual a Campanha demonstrou, mais uma vez, incidir de forma decisiva para um início de tramitação qualificada do PNE.

Ao todo, participaram da Conferência 1.847 delegadas/os eleitos nas etapas anteriores.

Ao todo foram 40 horas de avaliação das 8.651 emendas recebidas pelos estados e municípios. Também houve 34 colóquios – incluindo um colóquio proposto por Campanha e CEDES/Unicamp –, para o aprofundamento de temas relacionados ao Documento Base, como “Sistema Nacional de Educação”, “Saúde e educação”, “Alfabetização”, “Educação antirracista”, “Escola de jovens e adultos”, entre outros.

Lula pede diálogo com o Congresso
Com a presença de Andressa Pellanda junto a outras representações titulares do FNE, o último dia de evento teve a defesa do processo de construção coletiva da Conferência como tônica das falas de autoridades públicas e representações de segmentos da educação.

O presidente Lula (PT) discursou sobre o contraste entre as políticas do governo anterior e o atual, destacando o auxílio financeiro a estudantes do Ensino Médio público, a retomada de investimentos nas universidades e institutos federais, e a criação de uma nova sede do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) no Ceará. “Qualquer dinheiro para a educação tem que ter a rubrica de investimento, e não de gasto”, disse o presidente.

Chamou a atenção também para a necessidade de diálogo com todas/os parlamentares no Congresso Nacional. “Não somos principistas. ‘Ah, eu vou brigar. Se não me der, paciência, mas eu briguei’. Não. Quando a gente manda um Projeto de Lei, temos que levar esse projeto e, cada um de vocês, fechar os olhos se não gostar de uma pessoa e tentar convencê-la a votar no projeto. Se não, a gente não aprova”, afirmou. Neste ano, devem tramitar o PL que propõe mudanças no Ensino Médio e o PL do novo PNE. 

A Campanha Nacional pelo Direito à Educação tem o histórico de dialogar com todos os partidos. Nas eleições gerais de 2022, por exemplo, de um total de 32 partidos, candidaturas de 26 deles assinaram a Carta Compromisso pelo Direito à Educação nas Eleições 2022, em todas as regiões e de todos os espectros ideológicos (Agir, Cidadania, DC, MDB, Patriotas, PCdoB, PCO, PDT, PL, Podemos, PP, PROS, PSB, PSD, PSDB, PSOL, PSTU, PT, PTB., PV, Rede, Republicanos, Solidariedade, União Brasil, e UP).

Já o ministro da Educação, Camilo Santana, foi recebido com gritos de "Fora, Lemann", numa referência ao bilionário que financia grande parte das fundações empresariais que praticam lobby neoliberal na política educacional.

Mais de 2.500 estudantes e delegados da conferência (integrantes das 64 entidades da sociedade civil que construíram o documento) também protestaram pela revogação do Novo Ensino Médio. “Revoga a Reforma ou paramos o Brasil”, gritaram. 

Heleno Araújo, presidente da CNTE e coordenador do Fórum Nacional de Educação (FNE), exaltou a participação e a mobilização popular durante todos os processos e discussões. “Se a educação tomou posse de si mesma, vamos fazer valer a política educacional como um processo de transformação das pessoas, para que essas também possam transformar o mundo a partir da escola e da educação”, disse.

A senadora Teresa Leitão (PT/PE) lembrou que a “briga” pela aprovação do novo PNE segue no Congresso Nacional, e reforçou a importância da Conae enquanto processo democrático que resistiu a intimidações de parlamentares de extrema direita para barrá-lo. "Tentaram minimizar a importância desse fórum. Não conseguiram, não passarão. (...) Vamos aprovar o PNE e colocar a educação no rumo do direito e da emancipação", exclamou.

Abertura: força democrática
Na cerimônia de abertura do evento (28), Camilo Santana parabenizou o FNE e os delegados da Conae, ressaltando os milhares de municípios que realizaram as etapas anteriores da conferência em todas as unidades federativas do Brasil.

Depois de enaltecer a retomada de recursos do governo federal, Santana defendeu o PL 5.230/2023 do governo federal que propõe mudanças ao Novo Ensino Médio (NEM - Lei 13.415/2017).

O Coletivo em Defesa do Ensino Médio de Qualidade – do qual faz parte a Campanha Nacional pelo Direito à Educação – exige melhorias no texto proposto pelo MEC. “Para galgar tais melhorias e garantir um ensino médio inclusivo e de qualidade, é fundamental que o MEC assuma sua função de articulação para que a política educacional seja construída a partir das vozes de seus sujeitos, especialmente no que se refere aos interesses e necessidades das juventudes e das escolas públicas”, diz a nota do coletivo de 20 de dezembro de 2023.

Heleno Araújo salientou a importância do FNE recomposto oficialmente, em março do ano passado, após seis anos de ataques nas gestões de Michel Temer e Jair Bolsonaro.

Desde 2017, a Campanha não indicava representante para o espaço participativo devido ao desmonte do fórum, o que restringiu a participação de entidades de classe e de movimentos sociais. Ato contínuo, a Conae (Conferência Nacional de Educação) também foi desconstruída em 2018. À época, a Campanha considerou (e ainda considera) o desmonte oriundo de uma “atitude unilateral e arbitrária” do MEC da gestão Temer, que interveio na composição do Fórum Nacional de Educação (FNE) e o apresentou “desfigurado, carente de legitimidade e submisso à decisão monocrática” do MEC quanto à sua composição – “o que fere os princípios da autorrepresentação e da autonomia da sociedade civil em espaços democráticos e participativos”. Entidades do direito à educação, entre elas a Campanha, explicitaram a ilegítima composição do FNE e construíram nesse período – como mostra de resistência –  o Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE) e duas edições da Conferência Nacional Popular de Educação (Conape).