Monitoramento de metade das metas do PNE é prejudicado por indisponibilidade e lacunas de dados
A Campanha Nacional pelo Direito à Educação demonstra em Nota Técnica que o monitoramento anual do Plano Nacional de Educação (PNE) – o Balanço do PNE, da Campanha – é prejudicado em metade das metas devido à restrição de acesso aos microdados do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira).
“Trata-se, em termos percentuais aproximados, de prejuízo ao monitoramento de 22% dos indicadores, 50% das metas e 35% das estratégias associadas a elas”, aponta a Nota Técnica publicada nesta quinta (26/10).
Na edição de 2023, o Balanço [do PNE, da Campanha] trabalhou com 81 indicadores quantitativos, distribuídos pelas 20 metas e 17 de suas estratégias. Deste total, 44 indicadores, relativos a 13 metas e 13 de suas estratégias, utilizam direta ou indiretamente microdados do Inep como fonte, sendo que 29 indicadores de 11 metas e 11 estratégias usam especificamente os censos da Educação Básica e da Educação Superior. Com a restrição na publicação de microdados do Inep, 18 indicadores, relativos a 10 metas e seis de suas estratégias, foram diretamente impactados.
ACESSE A NOTA TÉCNICA “IMPACTO DA INDISPONIBILIDADE DE MICRODADOS DO INEP NO MONITORAMENTO INDEPENDENTE DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO”
ACESSE A APRESENTAÇÃO "PROPOSTAS PARA APRIMORAR A DISPONIBILIZAÇÃO DO ACESSO AOS MICRODADOS DO CENSO ESCOLAR PELO INEP"
As evidências foram apresentadas por Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha, em audiência pública da Comissão de Educação do Senado Federal nesta quinta (26/10). Veja sua fala aqui.
“Paulo Freire falava que 'a realidade concreta nunca é, apenas, o dado objetivo, o fato real, mas também a percepção que dela se tenha.' (Freire, 1984) E quando não temos o dado objetivo, qual percepção que fica? Qual é a percepção que fica para as nossas políticas educacionais?", indagou Pellanda.
“Em um trecho do mesmo livro, ele dizia que 'mais uma vez os homens, desafiados pela dramaticidade da hora atual, se propõem a si mesmos como problema. Descobrem que pouco sabem de si, de seu ‘posto no cosmos’, e se inquietam por saber mais. Estará, aliás, no reconhecimento do seu pouco saber de si uma das razões desta procura. Ao se instalarem na quase, senão trágica descoberta do seu pouco saber de si, se fazem problema a eles mesmos. Indagam. Respondem, e suas respostas os levam a novas perguntas'. (Freire, 1987) O saber de si é um ato pedagógico. E o que acontece com aqueles que não têm sequer os dados sobre si e os seus? Para onde andará a política educacional?", questionou novamente Pellanda.
Dessa forma, combinando lacunas e indisponibilidade de dados, alguns exemplos mostram a dimensão do problema da restrição do acesso aos microdados:
- Não é possível obter o número de alunos em jornada integral, considerando a duração total que passam em suas turmas de escolarização, atividades complementares e Atendimento Educacional Especializado.
- Não é possível obter a contagem de matrículas de Educação Profissional Técnica de Nível Médio, segundo a metodologia adotada neste estudo, através dos novos microdados do Censo da Educação Básica ou do Painel de Estatísticas do Censo Escolar.
- Não há nos novos microdados do Censo Escolar uma ou um conjunto de variáveis registrando o total de matrículas em curso técnico integrado à Educação de Jovens e Adultos (EJA), Formação Inicial e Continuada (FIC) integrado à EJA de Nível Médio e FIC integrado à EJA de Nível Fundamental.
- Nenhuma fonte disponível traz informação sobre a formação continuada de docentes, afetando o monitoramento da outra parte do texto da Meta 16.
- Nenhuma das fontes atualmente disponíveis possuem informação sobre uso de transporte escolar por parte de cada aluno, prejudicando a avaliação do cumprimento da estratégia 7.13.
Esse prejuízo é uma estimativa conservadora, diz a Nota Técnica, dado que o conjunto de dados desta respectiva edição do Balanço do PNE 2023, da Campanha, foi planejado já levando em conta a restrição nas fontes.
Contexto
A Campanha Nacional pelo Direito à Educação foi surpreendida em 2022 com a notícia da restrição, por parte do Inep, do conjunto de dados amplamente divulgados em seu site na forma de microdados.
A autarquia apenas havia divulgado versões menos detalhadas das bases do Censo da Educação Básica de 2021 e do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2020, e retirado todas as demais do site oficial, sem oferecer qualquer possibilidade de diálogo com a sociedade civil.
Os microdados são a parte mais detalhada de um dado coletado em uma pesquisa e possibilitam a produção de análises e retratos sobre a educação no Brasil.
Essa restrição reduziu severamente a possibilidade de cálculo independente de indicadores de monitoramento do PNE baseados no Censo da Educação Básica e no Censo da Educação Superior, entre outras fontes de dados que vinham sendo utilizadas.
Para a edição de 2022 do Balanço do PNE, da Campanha, ano do início da restrição, tentou-se, com limitado sucesso, contornar a recém-criada lacuna a partir de pedidos pela Lei de Acesso à Informação ao instituto, o que demandou grande esforço por todas as partes envolvidas. Já para a edição seguinte, neste ano, os dados foram conseguidos através do Serviço de Acesso a Dados Protegidos do Inep, mas ainda sob consideráveis custos.
De modo geral, essas limitações advêm do fato de que os microdados publicados deixaram de apresentar cada indivíduo e cada um de seus atributos coletados nas pesquisas, e passaram a trazer apenas contagens agregadas – geralmente por escola – de indivíduos com um subconjunto de atributos ou combinações deles.
“Dada a imensidão de formas possíveis de transformar e combinar o total de atributos coletados nas pesquisas, é na prática impossível este novo formato de microdados contemplar todas as possibilidades eventualmente relevantes para a confecção de indicadores de monitoramento do PNE ou da educação em geral”, explica a Nota Técnica, que foi elaborada pelo cientista de dados da Campanha, Fernando Rufino.
Por serem apenas formas alternativas de trazer contagens agregadas, as sinopses estatísticas e os painéis também produzidos pelo Inep não resolvem o problema de forma fundamental, apesar de, no momento, já preencherem algumas lacunas das tabelas divulgadas a título de microdados.
“A mudança de formatos ocorrida em 2022 acarreta inevitavelmente em prejuízo não só ao monitoramento independente do Plano, mas ao monitoramento de políticas públicas e às pesquisas acadêmicas sobre a educação”, afirma a Nota Técnica.
No documento, a Campanha faz a avaliação de alternativas atualmente disponíveis (Lei de Acesso à Informação e Serviço de Acesso a Dados Protegidos; e Painel de Monitoramento do Plano Nacional de Educação do Inep). Há também um anexo descrevendo os casos específicos de limitação no cálculo de indicadores do PNE.
Incidência
Desde o anúncio da medida por parte do Inep, a Campanha tem atuado por sua reversão, em conjunto com outras organizações voltadas ao tema da transparência e dos dados abertos.
Em 2022, em posicionamento público, entidades científicas, redes de pesquisa e movimentos sociais da educação afirmaram que o então descarte de microdados do Censo Escolar, feito pelo Inep, carecia de fundamento legal e, como resultado, impedia a avaliação e elaboração de políticas públicas que respondam às necessidades da população.
“Teremos também enormes prejuízos às pesquisas e às Ciências da Educação, impedindo o desenvolvimento científico, econômico e social. Ainda, o impacto da pandemia na população residente em território nacional não poderá ser avaliado, impedindo que saiamos dessa crise profunda pela qual estamos passando”, dizia o documento, à época.
No mesmo ano, a Campanha contribuiu para criação de uma metodologia que concilia a divulgação de dados públicos com a garantia à privacidade.
A metodologia foi elaborada em workshop organizado por Open Knowledge Brasil e Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa. Organizações da sociedade civil ofereceram insumos para proposta de metodologia que possa balizar a abertura de dados em diferentes áreas de políticas públicas.
É preciso encontrar um meio termo, diz o relatório produzido com diversas análises de especialistas, inclusive dos participantes do workshop, entre a privacidade e o interesse público na disponibilização de dados, principalmente quando se prejudica a realização de estudos de modelagem quantitativa. A proposta de metodologia – ainda em construção – busca, justamente, esse equilíbrio.
(Foto: Assecom/Pref. de Dourados-MS)