Tão lá, tão cá: Análise da metodologia de pesquisa do Projeto EUETU – Grêmios e Coletivos Estudantis
por Andressa Pellanda e Marcele Frossard
Artigo originalmente publicado nos Cadernos FLACSO
A pandemia da covid-19 parou o mundo em 2020. Pela primeira vez, o mundo globalizado, conectado por diferentes vias e com uma movimentação sem igual na história da humanidade, assistiu uma redução drástica no trânsito de pessoas. Por outro lado, o fluxo de comunicação entre as pessoas, através da Internet, assumiu proporções também nunca antes vistas. E foi neste contexto, ainda em 2020, que o Projeto Euetu – Grêmios e Coletivos Estudantis surgiu. Coordenado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o objetivo do projeto, desde o início, é compreender o quanto estudantes de escolas públicas nos estados do Amapá, Amazonas e Maranhão têm participado da gestão democrática de suas escolas para, então, apoiar o fomento de fortalecimento e criação de grêmios estudantis. Os três estados a serem focalizados inicialmente foram selecionados a partir de uma pesquisa preliminar, que identificou características de interesse como a presença de escolas indígenas, quilombolas, de comunidades ribeirinhas, do campo, assim como indicadores sociais e educacionais desafiadores.
O Projeto Euetu surge, portanto, a partir de uma inquietação ainda mais evidenciada durante a pandemia da covid-19: a capacidade dos estudantes de participarem politicamente, organizados e garantindo aprendizado e continuidade a partir de suas ações, como também de como políticas públicas se beneficiam da participação de seus sujeitos em sua formulação e monitoramento, especialmente em casos de emergências. A fim de garantir a redução na taxa de transmissão da doença, a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o governo brasileiro, especialmente os governos estaduais e municipais, recomendaram o isolamento social. Como parte desta estratégia, as instituições educacionais, como escolas e universidades, foram umas das primeiras a fecharem. Durante os dois primeiros anos da pandemia da covid-19, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação desenvolveu consultas, materiais e se manteve envolvida em debates que envolviam educação, saúde, proteção social e garantia de direitos humanos, com foco no período de emergência e em políticas estruturais.
Um exemplo deste grau de capilaridade e atuação foram os Guias Covid-19, desenvolvidos em colaboração com a rede da Campanha, para orientar estudantes, responsáveis, profissionais de educação, gestores e tomadores de decisão. Este esforço conjunto identificou uma lacuna: a dificuldade de envolver estudantes da educação básica, de consultá-los e conhecer a realidade escolar em que estão imersos. Embora a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), que é parceira da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, realize o papel de representar os estudantes do ensino básico, naquele momento percebeu-se que a conhecida precariedade da escola pública estava ainda maior durante o governo de Jair Bolsonaro como consequência do processo de desinvestimento da educação que ocorria desde 2016 com o governo de Michel Temer, impactando, inclusive as possibilidades de organização dos estudantes.
Como saber a percepção dos estudantes sobre o que acontecia em suas escolas? Ou entender que outras dificuldades estavam acometendo suas comunidades escolares através de suas vozes? Não seria possível uma pesquisa presencial, mas poderíamos utilizar a tecnologia que estava garantindo a comunicação e o contato entre as diferentes partes do país e do mundo. Mas isso também não seria tão simples, como veremos mais adiante.
Dito isto, o objetivo deste texto é apresentar um relato de experiência sobre uma modalidade de pesquisa desenvolvida durante a pandemia da covid-19 e as estratégias metodológicas utilizadas para alcançar os resultados previstos. Além disso o texto apresenta uma breve reflexão sobre estar lá e estar aqui a partir da “simultaneidade espacial” promovida pelas tecnologias de comunicação.
Participação estudantil e gestão democrática
A história da participação estudantil no Brasil é marcada pela luta de reconhecimento deste direito. Como etapa preliminar do Projeto Euetu Grêmios e Coletivos Estudantis foi realizado um mapeamento de legislações, projetos e programas de governo e de referências bibliográficas sobre o tema, que culminou no Guia Grêmios e Participação Estudantil na Escola, lançado pela Campanha em março de 2023. O Guia Grêmios e Participação Estudantil na Escola apresenta a história do movimento estudantil e a relação com a garantia de direitos dos estudantes, através da relação com a concretização do direito à participação. Abaixo apresentamos os principais aspectos deste processo, relacionando a participação estudantil com a gestão democrática.
A participação democrática é a ideia de que a educação deve ser feita também através da participação popular na e da comunidade educacional, desenvolvendo uma gestão democrática da escola. A participação democrática através da escola significa abrir as escolas para um processo dialógico que envolva estudantes; profissionais da educação; mães, pais e responsáveis; e a comunidade escolar em geral.
De acordo com Paulo Freire (2001, p. 14), participação deve ter quatro objetivos: 1. ampliar o acesso e permanência dos setores populares; 2. democratizar o poder pedagógico e educativo; 3. incrementar a qualidade da educação, mediante construção coletiva de um currículo interdisciplinar e a formação permanente do pessoal docente; e 4. contribuir para eliminar o analfabetismo de jovens e adultos. A formação de grêmios e coletivos estudantis é locus central e parte das práticas participativas e mecanismos institucionais que possibilitam uma participação e escuta ativa, consciente e construtiva.
O Guia Grêmios e Participação Estudantil na Escola também informa sobre obras como a de Artur José Poemer, “O Poder Jovem”, de 1979, e os guias e cartilhas produzidos pelo movimento estudantil ao longo da história, que são exemplos do quanto a juventude e os estudantes se relacionam com as mudanças sociais e políticas do país, constituindo-se enquanto atores fundamentais neste processo. A formação da União Nacional dos Estudantes (UNE) e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) e a presença constante nos principais eventos políticos do país atestam essa relação.
A lei federal nº 7.398, de 4 de novembro de 1985, conhecida como “lei do grêmio livre” foi uma conquista dos grêmios estudantis nas escolas que sofreram repressão e perseguição na ditadura militar. O direito dos estudantes de participar na organização da escola foi reconquistado por essa lei que assegura ter grêmio estudantil nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, a sua organização como entidades autônomas representativas dos interesses dos estudantes com finalidades “educacionais, culturais, cívicas esportivas e sociais”.
A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 206 afirma a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino. Portanto, os grêmios são constitucionais, visto que em seu texto, a Constituição declara a importância daquilo que lhe é constituinte, como espaço de participação política na escola.
Outra lei importante que garante a participação estudantil foi o Estatuto da Criança e do Adolescente que em seu artigo 206 afirma a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino. Portanto, os grêmios são constitucionais, visto que em seu texto, a Constituição declara a importância daquilo que lhe é constituinte, como espaço de participação política na escola.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação também assegura as diretrizes e bases da educação nacional, conferindo atenção à educação inclusiva, educação para o combate ao racismo e em favor da inclusão. A partir dela estão garantidas a criação de pelo menos duas instituições, a Associação de Pais e Mestres e o Grêmio Estudantil, cabendo à Direção da Escola criar condições para que os alunos se organizem no Grêmio Estudantil. A lei determina ainda a participação de alunos no Conselho de Classe e Série. Os artigos 12, 13 e 14 estabelecem diretrizes para uma educação democrática e participativa nas Unidades Escolares.
O Estatuto da Juventude, aprovado em 2013, é outra peça legislativa fundamental para garantir a participação de estudantes. Apresenta as diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude (Sinajuve) e visa promover e garantir o direito do jovem, sua autonomia e emancipação, sua participação social e política por suas representações, além de definir as obrigações da família e da sociedade na execução dos seus direitos. No parágrafo segundo, do artigo nº 2, o Estatuto prevê “a valorização e promoção da participação social e política, de forma direta e por meio de suas representações”, confirmando a importância dos grêmios e demais espaços de participação estudantil.
Por fim, a legislação mais recente relacionada ao tema é o Plano Nacional de Educação (PNE) aprovado em 2014 e com vigência até 2024. O Plano Nacional de Educação tem diretrizes, metas e estratégias para aprimoramento e execução da política pública educacional por dez anos em nosso país. Algumas delas são: a erradicação do analfabetismo, a melhoria da qualidade da educação, além da valorização dos profissionais de educação, gestão democrática na educação pública, superação e redução das desigualdades educacionais na promoção por justiça social, entre outros desafios da política educacional brasileira. O PNE não vem sendo cumprido, como apresentado no último balanço publicado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, e se inicia uma nova fase, em que será planejado um novo plano. Os estudantes são fundamentais neste processo, tanto na cobrança pela execução do plano, quanto na construção de um novo.
A participação dos estudantes é uma maneira de promover uma aproximação entre a escola e os interesses dos estudantes, realizando de fato uma gestão democrática das escolas. Assim, os estudantes podem apresentar propostas para que a gestão escolar discuta temas relacionados com os territórios em que as escolas estão inseridas, ou ainda temas de relevância como desigualdade de gênero e inclusão de povos e comunidades tradicionais, através da garantia do direito à uma escola consciente da sociedade multicultural e pluriétnica do Brasil. Existem leis e diretrizes nacionais que garantem que a escola seja um espaço de produção de conhecimento, difusão e discussão sobre uma educação antirracista, como a lei nº 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura africana e afro-brasileira no ensino fundamental e médio, e a lei nº 11.645/2008, que institui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura indígena. Esta breve apresentação sobre a legislação vigente atesta que existem leis e diretrizes nacionais que garantem o direito dos estudantes de se organizarem em grêmios e de participarem politicamente em suas escolas; o que não é necessariamente verdade na prática.
Projeto Euetu – Grêmios e Coletivos Estudantis
A Campanha Nacional pelo Direito à Educação lançou, em 2021, o Projeto Euetu - Grêmios e Coletivos Estudantis. A iniciativa busca mapear grêmios e coletivos escolares das redes municipais e estaduais de forma a conhecer sobre a participação e a organização de estudantes na gestão escolar para a gestão democrática e educação inclusiva para, então, apoiar o fomento de fortalecimento e criação de grêmios estudantis. O projeto é desenvolvido em sua primeira fase com foco nos estados do Amazonas, Amapá e Maranhão e, em um segundo momento, será expandido para o restante do país – Roraima, Rio de Janeiro e São Paulo são os estados elegidos para a segunda fase. A proposta do projeto é fortalecer grupos e movimentos locais – especialmente junto às juventudes negras quilombolas, indígenas, ribeirinhas, do campo, e de grandes centros urbanos e suas periferias, comumente excluídas do sistema educacional – e conhecer sobre a participação e organização de estudantes na gestão escolar para a gestão democrática, assim como fortalecer esses movimentos.
Ciente da força que são os estudantes organizados, a Campanha Nacional pelo Direito à Organização realizou, inicialmente, um mapeamento nacional por meio de dados desagregados das pesquisas oficiais, com o objetivo de produzir um diagnóstico macro sobre a participação estudantil. O estado do Maranhão foi o estado eleito para ser o primeiro na fase de pesquisa qualitativa, ouvindo estudantes, gestores e educadores. A pesquisa é a primeira etapa deste projeto que tem como principal visão incentivar a comunidade escolar a agir de maneira propositiva e ativa para a garantia da participação de estudantes, construindo emancipação, autonomia, e prática da liberdade, através dos grêmios estudantis e dos conselhos de escola e de participação mais ampla, em fóruns, conselhos, conferências e demais espaços de participação social.
Tão lá, tão cá: desafios metodológicos
Realizar uma pesquisa sobre participação estudantil durante a pandemia da covid-19 e no contexto de isolamento social e de fechamento das escolas foi desafiador. Desde a concepção do projeto, o objetivo era realizar uma escuta com os próprios estudantes, mas experiências anteriores de consulta tinham demonstrado que o uso de formulários digitais não era a melhor ferramenta, devido à dificuldade de alcance e também de produzir respostas válidas.
Por isso, o primeiro passo era encontrar metodologias que não poderiam implicar no estar lá e estar aqui – a pesquisa seria desenvolvida aqui e deveria estar lá simultaneamente, por isso tão lá e tão cá. O uso do termo é uma reflexão sobre o dilema antropológico “estar lá” e “estar aqui”, analisado por Clifford Geertz (1998). A pesquisa realizada no âmbito do Projeto Euetu – Grêmios e Coletivos Estudantis não tinha a pretensão de realizar uma etnografia das escolas, mas de visitar os territórios e conversar com estudantes, gestores e professores para compreender como acontece a participação nas escolas públicas de ensino fundamental II e ensino médio.
Em 2021, a partir de encontros realizados com estudantes de todo o país foi constatado que uma das melhores maneiras de alcançar os estudantes seria através da realização de uma consulta por aplicativo de mensagens de texto, como o WhatsApp. Os estudantes indicaram que os pacotes de dados fornecidos pelas empresas de telefonia de modo pré-pago muitas vezes incluem de maneira contínua permissões para este tipo de aplicativo; o que não acontece quando se trata de acessar páginas na internet ou até mesmo ferramentas de busca, como o Google.
Assim, o primeiro passo do projeto foi construir esta ferramenta, que terminou por ser um chatbot para aplicativos de mensagens de texto. Essa tecnologia permite a interlocução com o usuário, de modo que automaticamente são apresentadas as perguntas e o participante responde, de forma rápida, simples e acessível. Para garantir que as perguntas endereçassem o objetivo da pesquisa, foram realizadas oficinas com estudantes, professores e também integrantes da rede da Campanha para construir as perguntas do questionário. Em outubro de 2021, a primeira versão do chatbot foi lançada e amplamente divulgada pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação e seus parceiros. Apesar desses esforços, o número de respostas foi abaixo do esperado.
Para explicar a baixa adesão ao chatbot, a partir de diversas trocas com parceiros e os estudantes, levantou-se as seguintes hipóteses: 1. a divulgação não estaria alcançando escolas, estudantes e professores nos estados; 2. o público de interesse poderia não ter compreendido bem o objetivo da pesquisa; 3. haveria dificuldade de acesso à internet nos locais de interesse. Além dessas hipóteses, percebeu-se que seria fundamental o apoio das secretarias estaduais de educação ou de juventude dos estados do Amapá, Amazonas e Maranhão para realizar uma ampla divulgação e convocar a comunidade escolar para participar deste processo. Assim seria possível alcançar os territórios que eram cruciais para a pesquisa, como as escolas de comunidades indígenas e quilombolas.
A primeira aproximação aconteceu através de uma articulação com a Secretaria de Estado Extraordinária da Juventude (SEEJUV) do Maranhão, por ocasião da participação da Campanha Nacional pelo Direito à Educação no 1º Encontro dos Estudantes da Amazônia, que aconteceu na cidade de São Luís do Maranhão nos dias 2, 3 e 4 de dezembro de 2021. A partir de encontros com os gestores do Estado, estudantes e professores foi possível identificar os principais gargalos da pesquisa, dentre os quais estava a não reabertura completa das escolas.
Para 2022, a pesquisa foi retomada com algumas modificações. Inicialmente foi prevista a realização de oficinas com estudantes dos estados do Amapá, Amazonas e Maranhão com o objetivo de apresentar novamente a pesquisa e identificar suas críticas e sugestões. Os estudantes reafirmaram a importância do uso da ferramenta do chatbot de mensagem via aplicativo de mensagens de texto, mas sugeriram modificações nas perguntas e sugestões de respostas apresentadas pela tecnologia. Especialmente destacaram a necessidade de adaptar as perguntas para uma linguagem mais local, com gírias e emojis, aumentando a aproximação com os estudantes.
Outra oficina também foi realizada com integrantes da rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e parceiros, como a Iniciativa Nós e o Projeto Seta, que apoiam a execução da pesquisa para consultar sobre as perguntas que estruturam o chatbot e sobre estratégias de realização da pesquisa. Após a sistematização destas duas oficinas e os ajustes na ferramenta, a parte qualitativa nacional da pesquisa foi também iniciada, em sua primeira etapa, que consistia no levantamento bibliográfico, legislativo e de programas e projetos nos estados que são foco do projeto.
A partir das articulações iniciadas em 2021, a SEEJUV do Maranhão iniciou em janeiro de 2022 o planejamento para que a pesquisa se realizasse no estado. Inicialmente, estava previsto que a SEEJUV ficaria responsável por viabilizar a pesquisa presencialmente nos territórios, acompanhando o retorno das aulas em 2022. Apesar dos esforços realizados pela SEEJUV, este modelo de pesquisa não aconteceu não somente por conta da volta presencial recente às aulas, ainda em estado de adaptação, como devido aos obstáculos jurídicos e contratuais relacionados com a realização de eleições governamentais naquele ano, inviabilizando a realização de parcerias desta natureza.
O mesmo fator impactou a realização da pesquisa nos estados do Amapá e do Amazonas, com os quais a Campanha não efetuou a formalização da parceria e colaboração, já que optou-se por focar em um estado em 2022 e seguir com os demais no ano seguinte.
Frente às novas circunstâncias, a opção foi realizar a pesquisa por telefone e em parceria com a SEEJUV, que faria a articulação com a Secretaria Estadual de Educação do Maranhão. A pesquisa por telefone foi realizada com gestores, professores e estudantes e seguiu um Protocolo de Pesquisa produzido pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, com o objetivo de salvaguardar os envolvidos no processo e garantir uma metodologia semiestruturada de forma a possibilitar a geração de pontos de análise comparada. As entrevistas concedidas foram autorizadas pelos participantes através da concordância com o Termo de Autorização. Após a realização da entrevista, as respostas foram sistematizadas e organizadas e sua análise será lançada em uma publicação da Campanha Nacional pelo Direito à Educação ainda em 2023.
A escuta com estudantes aconteceu, também, através das respostas enviadas pelo chatbot. Durante o ano de 2022, a SEEJUV realizou uma campanha de divulgação dos materiais desenvolvidos pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação convidando os estudantes para participarem da pesquisa através do aplicativo de mensagens de texto. Também durante as entrevistas realizadas por telefone, os gestores e professores foram convidados a compartilharem a pesquisa com os alunos, intensificando o incentivo para que respondessem. Até o fim de 2022, o chatbot contava com aproximadamente 1000 respostas, cuja análise irá compor a publicação prevista para 2023.
Com objetivo de produzir uma comparação das duas frentes de pesquisa, a realizada por telefone e a realizada através do chatbot do aplicativo de mensagens de texto, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação também produziu um levantamento quantitativo sobre a existência de grêmios no país, a partir de dados do Censo Escolar. Análise que também estará na publicação prevista para 2023.
A partir desta breve análise sobre a metodologia utilizada, o que se percebeu foi que embora a pesquisa não tenha acontecido presencialmente nos territórios, a articulação com a SEEJUV e com a rede da Campanha – e seus Comitês Regionais presentes nos estados – foi fundamental para que mesmo de longe, “tão cá”, fosse possível acessar essa outra realidade, “tão lá”. O envolvimento deste ator institucional do Poder Público facilitou a participação de gestores, professores e alunos, de modo que durante as entrevistas foi possível identificar desde a presença de grêmios e conselhos escolares, até denúncias sobre infraestrutura e dificuldade de organização das escolas do estado do Maranhão.
A pesquisa entrou em contato com gestores de escolas indígenas, quilombolas, rurais e urbanas. Algumas demonstram intensa participação e envolvimento dos alunos, com desenvolvimento de projetos próprios para debater assuntos como o racismo, como acontece na escola Centro de Ensino Leão Santos, localizada no município de Arari no estado do Maranhão, que desenvolve o projeto Café Filosófico, criado após uma situação de racismo envolvendo alunos da escola, os próprios estudantes criaram este espaço.
Estar lá e aqui envolve, no caso do Projeto Euetu, um diálogo com a própria concepção do fazer da pesquisa criticado por Geertz (1998), que abraça o planejamento em conjunto com os sujeitos, desenvolvendo a metodologia de maneira compartilhada. As oficinas realizadas no início da pesquisa abrangeram um grupo focal de estudantes dos territórios e atores que também têm atuado nos estados que são foco da pesquisa (AM, AP e MA).
Co-laboração e descolonização da produção de conhecimento
Certamente, pelas características da pesquisa em si, realizada à distância e por meios de comunicação como telefone e aplicativo de mensagens, com um roteiro semiestruturado no caso das entrevistas, e em formato de questionário no caso do chatbot, o envolvimento do pesquisador com as pessoas que participaram tem limitações, pois não há o contato físico e a dimensão da realização presencial. Por outro lado, é possível acessar essa realidade, mesmo estando em outra, o que atesta as relações de compressão espaço-tempo preconizadas por David Harvey.
A metodologia desenvolvida pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, em construção conjunta com os estudantes dos territórios em análise na pesquisa, com os parceiros e com a rede da Campanha, teve como principal objetivo estimular a colaboração. Neste sentido, buscou refletir sobre os estudos que criticam as metodologias tradicionais fundamentadas na relação entre sujeito e objeto.
Os estudos pós-coloniais e decoloniais apontam para a necessidade de questionamento da hierarquia entre pesquisador e sujeitos participantes da pesquisa. Desse modo, reconhece-se que o esforço metodológico desenvolvido nesta pesquisa não alcança a desconstrução quase absoluta proposta nestes estudos, mas constitui-se como um avanço nas possibilidades de colaboração em situações excepcionais como na emergência da covid-19 que submeteu os processos ao remoto.
Por outro lado, a discussão sobre descolonização informa sobre a necessidade de uma opção política que envolva a metodologia das pesquisas para que os conhecimentos sejam validados pelos sujeitos nos níveis locais onde atuam as comunidades e os movimentos sociais envolvidos nas suas respectivas lutas. Foi este o intuito inclusive quando, após a produção do Guia Grêmios e Participação Estudantil na Escola, os estudantes e os participantes do projeto validaram o conteúdo produzido, indicando que estavam de acordo com suas sugestões para a produção deste conhecimento. Os jovens, por exemplo, identificaram que o projeto cumpriu a sugestão de incorporar uma perspectiva não adultocêntrica. Segundo Marina Fasanello:
"Significa pensar a pesquisa e os métodos na perspectiva de uma cocriação com os sujeitos envolvidos, que deixam de ser simples fontes de informação para assumirem um papel ativo na produção de conhecimentos, ou seja, um co-laborar de natureza simultaneamente ética, política e epistemológica. A ecologia de saberes visa justamente isso, pois a junção da epistemologia em suas dimensões éticas e políticas busca fortalecer os sujeitos oprimidos em suas lutas emancipatórias por reconhecimento e dignidade (FASANELLO, 2019, p. 77)."
Assim, tão cá e tão lá reitera o interesse de respeitar os conhecimentos locais e de se relacionar com os sujeitos da pesquisa como parte integrante do projeto e não apenas como objetos ou informantes. A pesquisa buscou seguir os preceitos políticos que movem a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, as instituições parceiras e os estudantes envolvidos nesse projeto, em uma busca real por fortalecer os sujeitos dos territórios pesquisados junto com eles.
O Projeto Euetu integra a Iniciativa Nós que é formada por Comunidade Educativa Cedac, Centro de Referência em Educação Integral, Unicef, Campanha Nacional pelo Direito à Educação e Flacso Brasil, e apoiada pela Porticus América Latina.
O Projeto Seta reúne um conjunto de organizações e movimentos como a ActionAid, a Ação Educativa, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), o Geledés – Instituto da Mulher Negra e a Uneafro Brasil, e é apoiado pela Fundação Kellogg’s
*As referências do artigo podem ser acessadas no documento original publicado nos Cardenos FLACSO
Marcele Frossard é assessora de programa e políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. É doutora em Ciências Sociais (UERJ/RJ), é mestre em Ciências Sociais (PUC/RJ) e é bacharel em Ciências Sociais (UERJ/RJ). É pesquisadora nas áreas de sociologia da educação, sociologia da violência, sociologia da juventude e políticas públicas.
É coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, cientista política, comunicóloga, educadora popular e doutora em Ciências pelo Instituto de Relações Internacionais da USP.