Primeiro substitutivo ao novo Plano Nacional de Educação avança substancialmente em inúmeros dispositivos, mas apresenta retrocesso gravíssimo em termos de financiamento e riscos para privatização e financeirização da educação

Carta à Sociedade Brasileira
sobre o primeiro Parecer ao PL 2614/2024 do relator dep. Moses Rodrigues (PDF)
Primeiro substitutivo ao novo Plano Nacional de Educação avança substancialmente em inúmeros dispositivos, mas apresenta retrocesso gravíssimo em termos de financiamento e riscos para privatização e financeirização da educação
Brasil, 14 de outubro de 2025.
Apresentamos aqui uma primeira análise do parecer do relator ao Projeto de Lei 2614/2024, que institui o novo Plano Nacional de Educação (PNE) para a próxima década. Esta análise é feita a partir do confronto direto com as propostas contidas em nosso primeiro Caderno de Emendas, construído coletivamente em nossa rede e com entidades parceiras.
É necessário reconhecer, primeiramente, que o texto do relator incorporou uma série significativa de nossas demandas, o que representa vitórias importantes para a educação pública. No entanto, permanecem graves preocupações e retrocessos em pontos fundamentais, que não podem ser ignorados.
Ainda, foi de espanto coletivo termos ouvido, na sessão de apresentação do parecer, que a elaboração de estudo de cálculo do percentual do Produto Interno Bruto (PIB) necessário para o cumprimento das metas do Plano é algo inédito e, pior, que não há estudos que sustentem o percentual de investimento público de 10% do PIB para a educação pública.
Esses estudos não só foram apresentados pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação por ocasião da tramitação da Lei 13.005/2014, fator decisivo para a aprovação desta meta, como foram atualizados para a renovação do PNE, por ocasião da Conferência Nacional de Educação de 2024, com liderança da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca).
Ficamos estarrecidos com a aparente falta de conhecimento e/ou de consideração histórica da participação social no debate do financiamento da educação e, especialmente, do Plano Nacional de Educação, por parte da relatoria e presidência da Comissão Especial do PL 2614/2024, do novo PNE.
Abaixo, listamos de forma ensaística primeiras impressões acerca do substitutivo, a serem aprofundadas e posicionadas a posteriori por parte de nosso Comitê Diretivo e no formato de novas emendas ao texto.
I. AVANÇOS CONQUISTADOS A PARTIR DE NOSSAS PROPOSTAS
Registramos e comemoramos a incorporação, total ou parcial, das seguintes propostas:
– o novo texto é cauteloso e responsável quanto ao processo de construção de planos estaduais, distrital e municipais; mas a possibilidade de revisão de metas em 2030 é precedente temeroso caso não siga o princípio de não retrocesso em direitos humanos, o que não está previsto no texto do substitutivo;
– a inclusão do Programa Nacional de Infraestrutura Escolar de forma robusta, excluído seu investimento do arcabouço fiscal, é um passo muito relevante e que mostra a incorporação plena do conceito de Custo Aluno Qualidade (CAQ) como referencial de garantia de padrão mínimo de qualidade para as condições de oferta da educação básica;
– entre os objetivos, a inclusão do objetivo de sustentabilidade socioambiental, nas várias metas e estratégias elaboradas e propostas coletivamente, assim como da previsão de que a infraestrutura das escolas contemple a sustentabilidade socioambiental e a arquitetura inclusiva.
– inclusão e melhoria, nas etapas e modalidades, a partir de nossas proposições:
- incorporação de insumos do CAQ como padrão mínimo de infraestrutura de qualidade nas metas de qualidade da educação básica, inclusive na educação integral, educação escolar indígena, do campo, quilombola, garantidas as referências culturais de cada povo;
- de proposta para meta 1 de atender 100% (cem por cento) da demanda manifesta por creche;
- universalização da pré-escola tem meta antecipada em um ano;
- aumento do percentual de 85% para 95% dos estudantes de ensino fundamental e para 90% de ensino médio concluintes na idade recomendada;
- inclusão explícita das populações de negros, indígenas, quilombolas, do campo, das águas, das florestas, público-alvo da educação especial e em cumprimento de medida socioeducativa nas várias metas e estratégias;
- inclusão de diretrizes curriculares relacionadas aos saberes comunitários e tradicionais, e de cidadania e democracia em várias metas e estratégias;
- inclusão, nas estratégias de busca ativa, de políticas públicas intersetoriais, mediante a integração entre os sistemas de informação educacionais e sociais, com compartilhamento de dados entre as diferentes esferas de governo;
- inclusão de proposta de implementação nas instituições educacionais, programas de enfrentamento à violência, e a qualquer tipo de discriminação, garantindo o respeito aos direitos humanos e a proteção integral das crianças e adolescentes, assim como inclusão de previsão de ações para intervir e prevenir casos de intimidação sistemática (bullying e cyberbullying);
- inclusão da implementação da Política Nacional de Atenção Psicossocial nas Comunidades Escolares e a presença das equipes multiprofissionais nas redes públicas de educação básica, com vistas a promover a articulação das áreas de educação, saúde e assistência social no desenvolvimento de ações voltadas à atenção psicossocial nas comunidades escolares e à melhoria da qualidade do processo de ensino aprendizagem; inclusão da convivência escolar entre a equipe escolar, os estudantes, os pais ou os responsáveis, com o objetivo de fortalecer os vínculos entre a escola e a comunidade e de prevenir e combater a violência;
- aumento do atendimento em educação em tempo integral de 40% para 50% dos estudantes da educação básica e ampliação da oferta de educação integral acompanhada de garantia de transporte escolar e de recursos didático-pedagógicos;
- inclusão de mobilização e integração entre diferentes espaços, instituições sociais, tempos educativos e da diversificação das experiências e interações sociais;
- inclusão da criação de incentivos, inclusive nos planos de carreira, para promover a dedicação docente, preferencialmente em uma única escola;
- inclusão de qualificação de forma segura, responsável, ética, crítica da educação digital e adaptação das diretrizes do uso de IA ao parecer do CNE de 2025;
- inclusão do cumprimento das Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, que tratam da obrigatoriedade do estudo da História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígena, com articulação e cooperação entre os entes federados para apoiar a implementação e o monitoramento dessa política educacional;
- inclusão do estímulo à criação e o fortalecimento de coordenações específicas para a educação do campo, indígena e quilombola nas secretarias estaduais, distrital e municipais de educação, com vistas à gestão das respectivas políticas educacionais e à implementação das diretrizes nacionais, assegurando a participação efetiva das organizações sociais representativas das populações atendidas em cada modalidade de ensino ofertada;
- previsão de permanência e qualidade na oferta de atendimento educacional especializado; adequação da linguagem de estudantes público-alvo da educação especial (PAEE) e dos estudantes público-alvo da educação bilíngue de surdos (Paebs) e inclusão da garantia de sistema educacional inclusivo;
- previsão de levantamento e a divulgação de dados desagregados e microdados em várias etapas e modalidades;
- alinhamento com as diretrizes do Conselho Nacional de Educação para a oferta de EJAI; inclusão da realização de forma regular e intersetorial o levantamento e o mapeamento de demanda por EJAI;
- inclusão de educação para pessoas em privação de liberdade;
- inclusão da explicitação de EPT integrada, mas infelizmente, com possibilidade de EPT concomitante; aumento da expansão da EPT no segmento público de 40% para 50% - aquém da proposta de 80% que foi feita, ainda permanecendo uma oferta muito privatizada; aumento dos níveis adequados de aprendizagem em EPT para a totalidade até a final da vigência do PNE;
- inclusão de meta de elevar para 60% (sessenta por cento) a taxa bruta de escolarização na educação superior;
- fortalecimento e a ampliação de políticas afirmativas e de assistência estudantil em nível superior para estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica, negros, indígenas, quilombolas, do campo, das águas e das florestas, do sistema socioeducativo e prisional, e público-alvo da educação especial, e demais grupos socialmente vulneráveis;
- inclusão da garantia da autonomia acadêmica dos docentes da educação superior, no ensino, na pesquisa e na extensão;
- aumento importante do percentual de mestres e doutores na população;
- inclusão das interseccionalidades em várias metas e estratégias;
- inclusão do objetivo de valorização no que tange aos profissionais da educação básica;
- inclusão da garantia de controle social, além de só na participação, e que este controle seja também no monitoramento e na avaliação de políticas educacionais, além de só no planejamento e na gestão;
- inclusão de meta de financiamento para as instituições públicas de ensino superior, com ampliação dos recursos públicos destinados à manutenção, expansão, melhoria e reestruturação das instituições públicas de ensino superior, de seus cursos de graduação e pós-graduação, das atividades de pesquisa e extensão, e das políticas de inclusão e assistência estudantil, fortalecendo seu caráter público e gratuito, com qualidade socialmente referenciada, e fortalecendo a autonomia financeira das universidades públicas;
- previsão de aprimoramento do VAAT tendo por horizonte o atingimento do CAQ, uma vez definidos padrões de qualidade para cada etapa, modalidade, jornada, tipo de escola e público-alvo da educação básica; e
- inclusão do estabelecimento de mecanismo de reajuste automático anual dos valores per capita do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e fortalecer os parâmetros do programa que buscam a garantia de segurança alimentar e nutricional.
II. PONTOS DE GRAVE PREOCUPAÇÃO E RETROCESSOS
Apesar dos avanços, alertamos para retrocessos e omissões que fragilizam o plano e ameaçam o direito à educação:
– o financiamento público em educação passa de 10% do PIB para 7,5% do PIB, deixando uma previsão total de 11% do PIB dedicados à área, sob riscos alarmantes de abertura para mecanismos de privatização e financeirização da educação;
– há uma série de propostas no Documento Final da Conae 2024, em seu eixo VI, acerca de fontes de financiamento público para a educação pública, de forma a compor os 10% do PIB para a área, que não foram exploradas: o texto menciona recursos do petróleo e gás natural e indica “buscar novas fontes de financiamento”, genericamente, abrindo mais uma vez espaço para financeirização da educação;
– a implementação do Custo Aluno Qualidade (CAQ) é adiado por mais um decênio, sendo que, pela Lei 13.005/2014, o CAQi deveria ter sido implementado há 10 anos atrás e o CAQ há 7 anos;
– não houve a inclusão de limitações para estratégias de assistência de forma que não promovam mecanismos de financiamento privado, especialmente aqueles que onerem o Estado em termos de dívidas ou quaisquer outras consequências; não inclusão do referencial dos Princípios de Abidjan para regulação do setor privado na educação; não previsão de que a gestão e o planejamento da gestão escolar sejam exclusivamente públicos, sem a possibilidade de privatização da administração educacional ou da gestão das escolas;
– a possibilidade de revisão de metas em 2030, sem a previsão explícita do princípio de não retrocesso em direitos humanos, é um precedente temeroso;
– inexistência do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb) como forma de ampliar o conceito de qualidade na educação, incorporando a avaliação institucional e autoavaliação institucional para contextualização de resultados das avaliações externas em larga escala;
– manutenção da alfabetização de crianças até o final do segundo ano do fundamental, o que pode pressionar e tensionar a educação infantil inadequadamente;
– não inclusão de diretrizes curriculares de diversidade e inclusão e educação sexual; e inclusão de incentivos ao empreendedorismo;
– não aumento do percentual de estudantes com nível adequado de aprendizagem nos finais do fundamental e no médio;
– não incorporação da perspectiva da conectividade significativa nem da autonomia na escolha e produção de tecnologias pelas instituições educacionais, nem o uso de recursos educacionais abertos e públicos;
– retirada da QUALIDADE da oferta do objetivo de educação escolar indígena, do campo e quilombola; não previsão de oferta de cursos de doutorado para estudantes e profissionais da educação indígena, da educação do campo e da educação escolar quilombola; não previsão de ampliação do Procampo e do Pronera;
– não inclusão na alimentação escolar da aquisição local de alimentos de povos indígenas, quilombolas, do campo, povos e comunidades tradicionais, por meio de chamadas públicas de compras, nem o evitar a oferta de ultraprocessados;
– manutenção da possibilidade de educação dos estudantes PAEE fora da rede regular de ensino; manutenção da avaliação biopsicossocial por equipe multidisciplinar;
– não avanço para universalização da conclusão da educação básica para todos jovens, adultos e idosos;
– manutenção de expansão de 3 milhões de matrículas em instituições credenciadas, inclusive privadas, de cursos de qualificação profissional;
– não ampliação da população de 18 a 24 anos nem de 25 a 30 anos com acesso à graduação de 40% para 50%;
– não equiparação salarial dos profissionais da educação básica com Salário Mínimo Necessário do Dieese; não aumento do percentual de profissionais com vínculo estável de 70% para 90% no magistério e não inclusão dos demais profissionais na meta, nem inclusão de meta para a regulamentação de piso salarial para os funcionários da educação;
– não garantia de financiamento público regular e contínuo, que viabilize o pleno funcionamento dos fóruns e conselhos de educação, com autonomia e com recursos destinados à capacitação e logística das atividades;
– piora na redação sobre meta de gestão democrática na educação básica, com previsão de concursos para diretores e coordenadores; não inclusão de meta para a instituição de grêmios estudantis;
– faltam ainda metas e/ou estratégias voltadas especificamente para adolescentes em atendimento socioeducativo e para população em situação de privação de liberdade; e
– ainda não foram incorporadas estratégias para a desmilitarização da educação.
O parecer do relator ao PL 2614/2024 apresenta, portanto, um texto híbrido, com conquistas históricas da sociedade civil, mas também com retrocessos profundos em áreas vitais, especialmente no financiamento e no fortalecimento do sistema público de educação.
Diante deste cenário, seguiremos em mobilização para que a Comissão Especial do PNE corrija estas distorções e aprove um Plano Nacional de Educação à altura dos desafios do país, que efetivamente garanta educação pública, gratuita, laica, inclusiva, equitativa e de qualidade social para todas as pessoas, com financiamento público e gestão democrática de verdade.
Subscrevo, em nome da Rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação:
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Andressa Pellanda
Coordenadora Geral
Campanha Nacional pelo Direito à Educação
(Foto: Vinicius Loures / Câmara dos Deputados)