Na ONU, sociedade civil global defende proposta por reforma histórica do sistema tributário internacional

Especialistas em justiça tributária apontaram que impostos sobre os mais ricos, sobre serviços digitais e para corporações devem ser centrais para um sistema mais justo e progressivo

 

Em um evento paralelo à Convenção Tributária das Nações Unidas que acontece esta semana na sede da organização, representantes da sociedade civil de todo o mundo discutiram problemas estruturais do atual sistema fiscal global e apresentaram propostas para uma reforma pautada na justiça social.

As propostas se referem a um foco em tributação adequada sobre a renda dos mais ricos, sobre serviços digitais e para corporações, de modo a transformar um sistema que ainda é profundamente injusto para os países do Sul Global, que são privados de direitos tributários. 

As organizações pressionam por anos para que as negociações tributárias sejam trazidas à ONU dentro de discussões verdadeiramente transparentes, com cada país devidamente representado.

Uma das principais defesas da sociedade civil é por uma reforma que financie adequadamente os serviços públicos, de forma a garantir a igualdade de gênero, o enfrentamento da crise climática global e assegurar os direitos humanos a todas as pessoas.

ACESSE A DECLARAÇÃO CONJUNTA DA SOCIEDADE CIVIL GLOBAL, QUE É ASSINADA PELA CAMPANHA NACIONAL PELO DIREITO À EDUCAÇÃO (EM INGLÊS)

A Campanha Brasileira pelo Direito à Educação está em Nova York (EUA) participando das discussões e incidindo politicamente sobre a agenda, juntamente com demais organizações da sociedade civil presentes, especialmente a Global Alliance for Tax Justice (GATJ). “Estamos aqui para compreender como serão assentados os processos de negociação desde a primeira rodada, assim como para apoiar os esforços liderados pela GATJ e para garantir que a educação seja alvo de alocação maior e melhor de recursos nessa reforma”, afirmou Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha, que está presente em Nova York.

Estão em Nova York organizações com postos no Brasil e da América Latina, como Oxfam, Inesc e Latindadd.

Participaram com falas no evento as/os especialistas Tove Ryding, da Rede Europeia sobre Dívida e Desenvolvimento; Nathalie Beghin, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), Latindadd e Rede de Justiça Fiscal da América Latina e do Caribe; Evelyn Mwendo, da Tax Justice Network Africa; e Tony Salvador, da Third World Network.

"Como um grande grupo diversificado, temos propostas e demandas para tornar esta convenção realmente eficiente e justa. Trabalhamos juntos em nossas submissões com proposições detalhadas. Precisamos de uma Convenção Tributária da ONU justa, equitativa, progressiva, eficaz, inclusiva, sustentável e transparente”, disse Lison Rebinder, da Global Alliance for Tax Justice, que fez a mediação do debate.

Necessidade do marco global
“Temos mais de 3.000 tratados tributários bilaterais, alguns deles datando de antes do fim do colonialismo, alguns extremamente desatualizados. Há alguns padrões internacionais que, na melhor das hipóteses, foram parcialmente implementados. Eles foram escritos na OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], o que sempre trouxe a preocupação de que foram escritos em favor da OCDE”, apontou Tove Ryding.

Não é surpresa que isso não esteja funcionando, ela diz, e o abuso fiscal internacional em larga escala é uma consequência disso. Ela lembra que nunca existiu um verdadeiro marco tributário global, e alerta que, sem esse marco, negociações diversas – de desenvolvimento e educação a saúde e proteção ambiental – se tornam extremamente difíceis.

“Tenho acompanhado esses processos há mais de 20 anos, e meu único pedido é: quando falamos em encontrar novos recursos, por favor, não chamem de ‘recursos novos e adicionais’? Porque não são realmente novos. Discutimos as mesmas fontes há anos. Muitas vezes as chamamos de inovadoras. Não é realmente inovador. São ideias como: ‘Podemos tributar transações financeiras? Podemos tributar barcos ou aviões?’”, disse.

“Quanto mais evitarmos ter protocolos separados para tudo, mais teremos um sistema sustentável e coerente para o futuro”, pontuou.

Ela destacou o exemplo dos Estados Unidos que não raro participam das negociações em posição privilegiada, não contribuindo para um debate equânime. “O resto do mundo negocia um marco global coerente. Os EUA são calorosamente bem-vindos para participar em pé de igualdade, mas muitas vezes não o fazem. Mas o que vimos em outras convenções é que, quando o resto do mundo começa a avançar, eventualmente os EUA também seguem. Agora que vimos os EUA saírem em fevereiro, obviamente está bem claro que não temos consenso. Os EUA ficariam felizes em voltar, vetar tudo e parar as negociações. Obviamente, não vamos dizer sim a isso”, ressaltou.

Aumentar os impostos sobre os mais ricos
Nathalie Beghin enfatizou a relação urgente que a reforma tributária deve ter com os direitos humanos e a igualdade de gênero, citando textualmente o Compromisso de Sevilha: "Reafirmamos o imperativo de alcançar a igualdade de gênero. Desenvolveremos e aprimoraremos metodologias e ferramentas para projetar, monitorar e avaliar orçamentos com perspectiva de gênero", salientou.

Beghin apontou que a justiça fiscal é elemento vital para promover sistemas transformadores de cuidado, enfrentar desigualdades e não ser “letra morta”. “[Ela] deve ser financiada com receitas progressivas, oportunas e suficientes, distribuindo o custo entre estados, setor privado e aqueles que historicamente sustentaram o cuidado com seu tempo e corpo – que são as mulheres.”

Para chegar nesse objetivo, os sistemas tributários progressivos são fundamentais. “Todos sabemos que os ricos não pagam sua parcela justa de impostos, e a carga tributária recai sobre os mais pobres. Então, é realmente fundamental reduzir a proporção de tributação indireta e, ao mesmo tempo, aumentar os impostos sobre os mais ricos”, defendeu.

Ela também disse ser essencial acabar com os paraísos fiscais e as brechas que promovem fluxos financeiros ilícitos e abusos tributários. Para promover a justiça climática, também defendeu que impostos ambientais em nível nacional e global devem promover a progressividade do sistema.

Para dar legitimidade ao processo, a participação social, diz Beghin, deve ser promovida com representatividade e transparência para a inclusão adequada da sociedade civil nos espaços de decisão.

Tributação que financia serviços públicos
Evelyn Mwendo trouxe a perspectiva queniana ao expor que paga impostos que cobrem 40% de sua renda, mas não recebe os serviços públicos adequados. “As razões pelas quais muitos governos africanos fazem isso é porque é mais fácil administrar impostos sobre renda pessoal e IVA [Imposto sobre Valor Agregado]”, explica.

Ela diz que é preciso mudar o foco para a tributação corporativa, pois a grande maioria da população sofre com o peso das práticas de evasão fiscal e fluxos financeiros ilícitos, muito mais do que os países desenvolvidos.

Mwendo defende uma abordagem multilateral, “onde pudéssemos começar, como uma coletividade, para reescrever as regras tributárias internacionais e avançar para um sistema onde os países de origem também possam tributar efetivamente a renda proveniente de atividades econômicas em nossos países”.

“Tributação é o que financia serviços públicos na África. Não é AOD (Ajuda Oficial ao Desenvolvimento)”, afirmou. “O que estamos pedindo é apenas nossa parcela justa – e nada mais. Então, seria justo depois de cerca de 100 anos se beneficiando deste sistema que vocês [países desenvolvidos] deem algum espaço.”

Tributação digital
Tony Salvador destacou os desafios da tributação digital, especificamente as dificuldades de os Estados fazerem com que empresas multinacionais estrangeiras paguem os impostos devidos.

Ele explica que é cada vez mais comum empresas de países desenvolvidos prestarem serviços para países em desenvolvimento. Em muitos casos, se a empresa não tiver uma representação oficial e residente no país, ela não paga imposto sobre a renda.

“E isso, obviamente, se traduz em receitas perdidas para os países em desenvolvimento – receitas muito necessárias que poderíamos usar para educação e saúde, especialmente nos países do terceiro mundo, como as Filipinas e o Sudeste Asiático, de onde venho. Não é apenas uma questão de perda de receita, é também uma questão de política de concorrência. Enquanto eles não pagam imposto de renda, eles têm que competir com vantagem contra empresas locais que realmente pagam impostos sobre a renda”, alerta.

Ele diz que os impostos sobre serviços digitais são essenciais para que haja uma mudança progressista no sistema. Salvador avisa que os países desenvolvidos estão tentando criar uma exceção para a economia digital e o comércio eletrônico.

“Eu não acho que devemos permitir nenhuma exceção. Queremos um quadro abrangente e inclusivo – uma convenção totalmente inclusiva. Além disso, a economia digital está realmente embutida em todos os setores práticos. Fiquei bastante surpreso ao descobrir que ela está até mesmo embutida em mineração, extrativismo, construção, manufatura, etc. Então, regras tributárias, complicadas como são, não podemos ter duas regras tributárias bifurcadas – uma para a economia digital e outra para as economias tradicionais de tijolo e argamassa”, disse.

 

(Foto: Campanha Nacional pelo Direito à Educação)