Pagar programas de assistência social com recursos de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE) significa desvio de finalidade, defende Fineduca

Em manifestação pública, a Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca) posiciona-se contrariamente à proposição da MP nº 1.303, que dispõe sobre a tributação de aplicações financeiras e ativos virtuais no país. Ela incorpora a “concessão de bolsas de estudo a alunos de escolas públicas e privadas e concessão de incentivo financeiro- educacional, na modalidade de poupança, destinado à permanência e à conclusão escolar de estudantes matriculados no ensino médio público” como Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE).
A Fineduca, que integra o Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, critica a referida MP por incorrer em diversas contradições com a legislação e em retrocessos na garantia do direito à educação.
“[A MP], a qual instituída no contexto dos debates e embates associados à elaboração do novo Plano Nacional de Educação (PNE), fragiliza ainda mais a necessária elevação dos recursos financeiros aplicados em Educação Pública para consecução do equivalente a 10% do PIB”, alerta a entidade.
Leia abaixo e aqui a manifestação.
*
Pagar programas de assistência social com recursos de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE) significa desvio de finalidade (PDF)
Manifestação da Fineduca sobre a Medida Provisória (MP) nº 1.303/2025 que incorpora a “concessão de incentivo financeiro-educacional, na modalidade de poupança, destinado à permanência e à conclusão escolar de estudantes matriculados no ensino médio público” como sendo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE)
No dia 11 de junho de 2025 foi publicada a Medida Provisória (MP) nº 1.303, que dispõe sobre a tributação de aplicações financeiras e ativos virtuais no País. No artigo 65, a referida Medida altera o artigo 70 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996, que trata das despesas consideradas como de Manutenção de Desenvolvimento do Ensino (MDE), cuja redação do inciso VI passa a vigorar com o seguinte acréscimo, após a palavra “privadas”: “concessão de bolsas de estudo a alunos de escolas públicas e privadas e concessão de incentivo financeiro- educacional, na modalidade de poupança, destinado à permanência e à conclusão escolar de estudantes matriculados no ensino médio público” (grifos nossos).
A referida alteração no artigo 70 da LDB incorre em diversas contradições com a legislação e em retrocessos na garantia do direito à educação.
A inclusão de incentivo financeiro-educacional, na modalidade de poupança, contradiz a definição de despesas com MDE do artigo 70 da LDB, que as define como “as despesas realizadas com vistas à consecução dos objetivos básicos das instituições educacionais de todos os níveis.” Já a Constituição Federal, no Art. 212, que trata da vinculação da receita de impostos dos entes federados para a Manutenção e Desenvolvimento do Ensino, especifica no § 3º que “a distribuição dos recursos públicos assegurará prioridade ao atendimento das necessidades do ensino obrigatório, no que se refere à universalização, garantia de padrão de qualidade e equidade, nos termos do Plano Nacional de Educação” e no § 4º, que “os programas suplementares de alimentação e assistência à saúde previstos no art. 208, VII, serão financiados com recursos provenientes de contribuições sociais e outros recursos orçamentários”. Para tanto, o § 5º assegura que a “educação básica terá como fonte adicional de financiamento a contribuição social do salário-educação, recolhida pelas empresas na forma da lei”. Ou seja, dos programas suplementares especificados na Constituição Federal como de assistência ao educando – material didático escolar, transporte escolar, alimentação escolar e assistência à saúde do educando – os dois últimos devem ser financiados com recursos adicionais aos mínimos da receita de impostos dos entes federados vinculados a MDE.
A definição do que constitui despesas com MDE é resultante de uma longa luta da sociedade civil, que tem suas primeiras iniciativas na década de 1920, quando, na Conferência Interestadual do Ensino Primário, se discutiu a proposta de vinculação de recursos à Educação. Somente na Constituição de 1934, art. 156, o conceito foi cunhado como Manutenção e Desenvolvimento dos Sistemas Educativos. Foi na primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 4.024/61) que o termo Manutenção e Desenvolvimento do Ensino foi estabelecido com a definição de quais despesas constituíam-se de fato como tal. Suprimido nas leis de educação durante a ditadura militar, o conceito foi retomado na Emenda Constitucional nº 24/1983 à Constituição de 1967 (Emenda Calmon) e consagrado na Constituição Federal de 1988, do que decorreu a especificação atual das despesas a serem consideradas ou não como MDE na LDB nº 9394/1996.
Essas determinações legais têm como pressuposto a proteção dos recursos financeiros a serem aplicados em ações e insumos vinculados diretamente à garantia do ensino. Nesse sentido, deve-se observar o cuidado do legislador, no Artigo 70 da LDB, ao incluir como MDE “a realização de atividades-meio necessárias ao funcionamento dos sistemas de ensino”, pois vincula claramente tais atividades “ao funcionamento dos sistemas de ensino”, o que significa atividades típicas da administração dos órgãos gestores da educação, tais como secretarias de educação, conselhos de educação, secretarias das escolas, entre outros. É também nesse sentido que a LDB, ao definir despesas que não constituem MDE, em seu artigo 71, explicita, no inciso IV, aquelas realizadas com “programas suplementares de alimentação, assistência médico- odontológica, farmacêutica e psicológica, e outras formas de assistência social.” Na mesma direção, na Constituição Federal de 1988, no título VIII (Ordem Social), capítulo II (Seguridade Social), a seção IV trata da Assistência Social e, nela, é clara a inclusão das ações de assistência e proteção social às crianças e adolescentes como despesas desta pasta. Assim, no Art. 203 são citadas como ações amparadas pela assistência social: “I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II - o amparo às crianças e adolescentes carentes; [...] VI - a redução da vulnerabilidade socioeconômica de famílias em situação de pobreza ou de extrema pobreza.” Em seguida, o artigo 204 é assertivo ao determinar que “as ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes.”
Ou seja, os dispositivos legais, resultantes de intensas lutas pela garantia do direito à educação, reconhecem que, entre as despesas para a garantia da educação em condições de qualidade, há aquelas que estão diretamente ligadas à garantia do ensino com qualidade, tais como remuneração e formação dos profissionais da educação, construção e manutenção das escolas, manutenção dos órgãos gestores da educação, entre outras, para as quais se faz necessária a proteção de recursos financeiros. E há um conjunto de despesas que, embora sejam de grande importância para que a frequência e permanência na escola não se destinam diretamente à MDE, pois se constituem despesas de assistência ao educando, necessárias para a realização da escolarização da população em condições de maior vulnerabilidade numa sociedade marcada por profundas desigualdades sociais e na qual parte significativa das famílias apresenta limitações para assegurar a permanência na escola. Assim, as necessárias ações suplementares e assistenciais podem realizar-se articuladas às políticas educacionais, mas não podem retirar recursos fundamentais e ainda insuficientes à realização da educação escolar. Frisa-se que esta insuficiência orçamentária vem sendo destacada pela Fineduca ao pontuar o descumprimento do Piso Salarial Profissional Nacional para os profissionais do magistério por centenas de entes federados, ao denunciar o silêncio diante da não implementação do Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi)1 e o descumprimento das metas do atual e do futuro Plano Nacional de Educação2.
Outro aspecto que merece atenção na MP nº 1.303/2025 diz respeito às insistentes estratégias de transferência de recursos públicos para o setor privado. O fato de a concessão de bolsas de estudos para alunos de escolas privadas já estar prevista no rol de despesas que compõem a MDE desde a aprovação da LDE é medida que favorece a privatização da educação, por meio do subsídio público a provedores privados, e concorre com a efetivação da garantia do direito à educação a todos com qualidade e equidade, o que só pode ser garantido pelo sistema público de ensino.
É de registrar, ainda, o uso inoportuno dos já parcos recursos federais em despesa alheia ao conceito de MDE por meio do Programa Pé de Meia, como mecanismo alinhado ao ajuste fiscal tendo em vista os cortes de despesas no orçamento da União. Recursos federais de MDE, se alocados ao Pé de Meia ou em outra ação que venha a substituí-lo, concorrem com o financiamento e custeio das instituições federais de ensino, as quais, em virtude de sucessivos cortes, apresentam comprometimentos em seu funcionamento.
Pelos argumentos apresentados, a Fineduca se posiciona contrária à proposição da MP nº 1.303, a qual instituída no contexto dos debates e embates associados à elaboração do novo Plano Nacional de Educação, fragiliza ainda mais a necessária elevação dos recursos financeiros aplicados em Educação Pública para consecução do equivalente a 10% do PIB3.
São Paulo, 09 de julho de 2025.
Diretoria Fineduca
1 Nota Técnica com os valores do CAQi 2025. Disponível em: https://fineduca.org.br/nota-tecnica-com-os-valores-do-caqi-2025/
2 O financiamento do PNE (2024-2034): a passos de caranguejo. - https://fineduca.org.br/o-financiamento-do-pne-2024-2034-a-passos-de-caranguejo/
3 Para mais informações ver https://fineduca.org.br/wp-content/uploads/2023/12/20231211_Nota-Tecnica_10_PIB_Final_corrigida.pdf
(Foto: Tânia Rego/Agência Brasil)