Educação, justiça fiscal, multilateralismo e uma brecha de US$ 4 trilhões anuais: veja os destaques da abertura da Conferência Internacional sobre o Financiamento do Desenvolvimento (FfD4), na Espanha

Líderes reúnem-se em Sevilha para discutir reforma do sistema financeiro global; Campanha participa presencialmente

 

A justiça fiscal global deve ser concretizada por meio de relações multilaterais para suprir uma brecha de financiamento de US$ 4 trilhões anuais e, urgentemente, tirar milhões de pessoas da pobreza e da exclusão educacional e alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU para 2030. 

Essa foi a tônica dos discursos de autoridades e líderes globais na abertura da 4ª Conferência Internacional sobre o Financiamento do Desenvolvimento (FfD4), que acontece de 30 de junho a 3 de julho, em Sevilha, na Espanha.

Falaram representantes máximos de organismos da ONU além de líderes de países, como o presidente da Espanha, Pedro Sánchez, que presidiu a plenária de abertura. Saiba mais sobre cada uma das falas abaixo.

A urgência de uma reforma do sistema tributário global, especialmente num contexto de mudanças climáticas e agravamento de desigualdades, foi destacada. Essa, que é uma das principais bandeiras da sociedade civil organizada ligada aos direitos humanos, não encontra avanço significativo no fórum há anos e enfrenta a resistência de atores do capital privado nos espaços de decisão – o que impede, na prática, a concretização do desenvolvimento aliado à garantia dos direitos humanos. “Estamos apostando na UN Tax Convention que deve iniciar as negociações em agosto; e teve voto de maioria dos países do Sul, especialmente da União Africana, para ser aprovada”, comentou Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha Brasileira pelo Direito à Educação, que está presente no evento também representando a Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação, da qual integra seu Comitê Diretivo.

A educação foi citada muitas vezes em vídeos e falas como área imprescindível para a realização plena do desenvolvimento global e local, ainda que não se vejam necessariamente transformações práticas de tais palavras em ação.

Alucinação
“Desenvolvimento sem recursos deve ser chamado de 'alucinação’”, disse Bob Rae, presidente do Conselho Econômico e Social (ECOSOC) da ONU. Rae foi uma das autoridades que defenderam um novo caminho do sistema financeiro: mais justo, inclusivo e sustentável. Ele reforçou que a mobilização de recursos nacionais é a chave para o desenvolvimento e que a arquitetura financeira internacional precisa combater a corrupção e ser mais representativa, mais resolutiva e confiar mais no multilateralismo – este último sendo o componente central. 

“Precisamos construir um sistema financeiro que sirva à humanidade. Parece distante, mas precisa ser real. O futuro não é herdado”, afirmou.

Discurso ante ações
"Iniciamos novamente uma conferência de financiamento internacional com palavras muito bonitas sobre dedicar os fluxos financeiros à garantia de direitos, sobretudo em países em desenvolvimento, por parte de órgãos financeiros internacionais, como Banco Mundial e FMI [Fundo Monetário Internacional], mas sem visualizar em suas práticas as mudanças objetivas e alinhadas aos discursos e compromissos. Precisamos mesmo, como muitos mencionaram na abertura, especialmente o secretário-geral da ONU e o presidente da Espanha, que é também o presidente da conferência, estreitar a confiança internacional e aprofundar o multilateralismo, mas isso só será feito quando os compromissos se transformarem em realidade de mudança social. A sociedade civil está farta de conferências que não se revertem em realidade, como contundentemente afirmou o presidente do ECOSOC”, afirmou Andressa Pellanda.

Pellanda e Helena Rodrigues, coordenadora executiva da Campanha, estão em Sevilha participando dos eventos oficiais e paralelos à Conferência. A Campanha compõe comitiva com a Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação (Clade) e a Campanha Global pela Educação (CGE).

Abaixo, veja os principais pontos das falas da abertura.

Brecha de US$ 4 bilhões
O presidente da Espanha destacou a necessidade de resolver a brecha de financiamento de US$ 4 bilhões anuais para a garantia de desenvolvimento global. Ele alerta que 40% da população do planeta vivem em países que pagam mais dívida do que fazem investimentos, e que somente 1/3 das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável está em caminho de cumprimento.

Sánchez propôs corrigir o rumo contra a rivalidade e a agenda da competência. Defendeu converter palavras em ações através da plataforma "Sevilha em ação"; enfatizou a necessidade de enfrentar com solidariedade os debates do desenvolvimento,e de redobrar o compromisso, sustentabilidade da dívida, justiça fiscal com espaço fiscal, e reformar a arquitetura financeira internacional para torná-la mais representativa, justa e eficaz. Também advogou por um multilateralismo inclusivo e reforçado com a ONU no centro.

Ele disse que o diálogo deve ser em pé de igualdade, afirmando que não há Norte e Sul, só uma humanidade com objetivos comuns. Ele ressaltou a importância de nos colocarmos na pele do outro, declarando que não há fronteira que possa frear os impactos do que o mundo enfrenta. 

Não é caridade, é justiça
António Guterres, secretário-geral da ONU, descreveu um mundo sacudido por desigualdades, caos climático e conflitos devastadores. Ele informou que 9 dos 13 países com pior desenvolvimento estão em conflitos, alertando que a Agenda 2030 está em perigo. O secretário-geral enfatizou que a crise social é de pessoas.

Guterres defendeu mudar o rumo e colocar em marcha o motor do desenvolvimento e restaurar equidade e justiça para todos. Ele disse que os recursos precisam girar rápido, com mobilização de recursos nacionais, sistemas de tributação que revertam às necessidades das pessoas. Nesse contexto, é preciso dobrar a ajuda internacional e bancos de desenvolvimento devem triplicar suas capacidades. Em paralelo, deve-se apostar em soluções inovadoras para sustentabilidade de investimento privado e regulação de financiamento. 

Ele incentiva uma reestruturação do sistema global de tributação através de debt-swaps (renegociação de dívida com contrapartidas) e programas internacionais de apoio à gestão da dívida. Diz também que deve crescer a participação dos países em desenvolvimento na arquitetura de governança do financiamento internacional.

Guterres concluiu declarando que “não estamos aqui por caridade, estamos aqui sobre justiça”, e que a discussão não é sobre dinheiro, é sobre investimento no futuro.

Cooperação na tributação 
Philemon Yang, presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), afirmou que estamos em um momento único de desafios e oportunidades. Ele destacou que é preciso renovar a crença no multilateralismo com a ONU no centro, e trabalhar para alcançar os ODS. Yang disse que para ambos os pontos é preciso vontade política.

Ele declarou que não devemos rebaixar nossas ambições. Propõe que o pacto firmado em Sevilha feche a brecha de financiamento dos países em desenvolvimento, propondo que esta deva ser a nova estrutura de parceria para os anos seguintes.

Yang defendeu a reforma da arquitetura de financiamento global para criar um ambiente melhor para a dívida sustentável, fortalecer as vozes e representações dos países em desenvolvimento, não só como beneficiários mas como parceiros. Ele citou a cooperação em questões de taxação através da Convenção da ONU sobre Cooperação Tributária, para que novos financiamentos sejam a chave do sucesso.

O presidente convocou os Estados-membros a investir em ajuda para o desenvolvimento, observando que só Dinamarca, Suécia e Noruega cumpriram ano passado. Ele disse que a educação precisa de uma revolução, e que chegou o tempo de cumprir promessas. Yang concluiu pedindo financiamento adicional, inovador, adequado, provisional e previsível, convocando a atuar juntos com esperança, ambição e liderança que este momento pede.

Ponto de inflexão
Ajay Banga disse que estamos em um ponto de inflexão no debate sobre financiamento, observando que de um lado há desigualdades e a crise climática, mas por outro há recursos demográficos sem precedentes. Ele enfatizou que o mundo precisa do setor privado.

Banga disse que as reformas devem prezar por efetividade, agilidade, integração, fomentando negócios e o agronegócio, mobilizando o capital privado, reconhecendo que tudo atualmente é inadequado diante dos números que precisamos atingir. 

Ele destacou que US$ 1,25 trilhões gastos em subsídios por ano é ineficiente. Enfatizou a capacidade de o setor privado criar trabalhos, e a necessidade de qualificação da força de trabalho. 

Defendeu o foco nos setores de infraestrutura, agronegócio, saúde, turismo e manufaturas locais. E tem como centrais as seguintes estratégias: ambientes de investimento, seguro contra riscos políticos, mercado cambial, capital próprio e securitização. 

Novo instrumento multilateral
Ngozi Okonjo-Iweala, diretora-geral da OMC, afirmou que o mercado global está desorganizado, mencionando a revisão de queda do comércio global. Ela disse que África deveria ser excetuada desse processo e taxas.

Ela destacou que o compromisso de Sevilha reconhece o comércio internacional como mecanismo para o desenvolvimento, mas envolve ações em vários níveis. Ela disse que mais países precisam ter mais oportunidades para se autofinanciar, e que soluções de cooperação precisam ser fortalecidas, reformar e reposicionar a OMC. 

Para Okonjo-Iweala, é necessário destravar o comércio e atrair investimentos dentro de um novo instrumento multilateral, para fechar as brechas de financiamento entre os países. Ela enfatizou que há financiamento represado, alguns em agricultura, pesca e água, em subsídios que são mais prejudiciais do que benéficos.

Economia sendo testada
Nigel Clarke, vice-diretor de gestão do FMI, traçou um cenário desafiador, observando que a resiliência da economia está sendo testada. Ele alertou que os riscos cresceram para países em desenvolvimento, inclusive cortes em assistência ao desenvolvimento.

Clarke disse que são primordiais reformas no nível local, destacando que investimentos domésticos são a base para o desenvolvimento. Defendeu uma ampliação da base de tributação e compliance, além do aumento em investimentos públicos. 

No âmbito global, ele disse que o investimento internacional para o desenvolvimento precisa ser muito bem moldado para circunstâncias individuais de cada país. Propôs tratar as vulnerabilidades das dívidas, observando que países continuam sofrendo com o (re)endividamento. Para isso, é necessário implementar reestruturações das dívidas.

Mudar a maré
Li Junhua, secretário-geral da Conferência, destacou que a FfD4 traz a oportunidade de mudar a maré por meio de compromissos reais. Ele também enfatizou que a discussão não é sobre caridade, é sobre justiça, essa sendo uma inspiração para o multilateralismo.

Para ele, o Departamento das Nações Unidas para Assuntos Econômicos e Sociais (UN DESA) está pronto para apoiar os Estados-membros e construir uma capacidade institucional. Ele disse que é sobre reconstruir a confiança, expandir a união e financiar um mundo melhor para todos.

Lusófonos e latino-americanos
Líderes de Angola (representando União Africana), Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Colômbia e Honduras tiveram falas de destaque. O Brasil não discursou. Veja um resumo das falas abaixo.

Angola (representando União Africana)
Sem paz e segurança mundial não há possibilidade de desenvolvimento. Imperativo é o diálogo para evitar hecatombe em que todos perdem. Voltamos a assistir corrida armamentista que desvia recursos da educação e desenvolvimento científico. 

Dirigentes africanos estão preocupados com os rumos que o mundo está seguindo. Os juros da dívida são maiores do que os investimentos em educação e saúde.

A Conferência africana acontecerá em outubro, sobre infraestrutura para o desenvolvimento africano.

Reformas no sistema financeiro total devem incluir os países mais vulneráveis nos papéis de tomada de decisão. 

África tem os recursos naturais para garantir desenvolvimento. África é a que mais sofre, mas a menos responsável pelo aquecimento global. Dívida deve ser convertida em investimento em sistemas econômicos sustentáveis.

Esperamos que os compromissos com o desenvolvimento da Conferência se convertam em acesso aos países africanos de possibilidades de financiamento para o desenvolvimento do continente.

Cabo Verde
Déficit do desenvolvimento sustentável reflete as simetrias do financiamento internacional que continua a penalizar os países em desenvolvimento. Mesmo as reformas internas do sistema político e econômico alinhados aos ODSs não foram suficientes para impulsionar o desenvolvimento, dada a vulnerabilidade do país às constrições financeiras internacionais e aos choques econômicos externos. 

Mesmo sendo responsáveis por uma parcela mínima de emissão de carbono, as ilhas são gravemente afetadas pelas consequências do aquecimento climático.

Compromissos devem ser acompanhados de ferramentas práticas para os países mais vulneráveis. Pedimos adaptação do sistema financeiro que determine a representação das economias mais vulneráveis e que impulsionem o desenvolvimento sustentável progressivo. Sem justiça climática e inclusão o desenvolvimento vai ser sempre incompleto.

Guiné-Bissau
Compromissos anteriores não foram alcançados, precisamos criar mecanismos mais factíveis para países como a Guiné-Bissau, que continua enfrentando dificuldade de financiamento em setores como saúde e educação tanto com recursos nacionais como internacionais. Essas áreas são ainda mais prejudicadas por dificuldades de financiamento internacional, com o peso da dívida externa sendo um fator que impede o desenvolvimento dos países do sul. A Guiné-Bissau defende a reforma do sistema financeiro internacional que permita um sistema mais inclusivo e impulsione o desenvolvimento dos países mais vulneráveis.

Moçambique
Reafirmamos o compromisso com o multilateralismo. Apesar do avanço da economia moçambicana, tem havido desaceleração da economia causada por tragédias climáticas e terrorismo.  

Necessidade de uma arquitetura financeira internacional mais justa com acesso e representação dos países em desenvolvimento.

Saúda as propostas de financiamento misto e fortalecimento de bancos nacionais de desenvolvimento para industrialização e financiamento de pequenas e médias empresas.

O foco do financiamento internacional deve ser as economias vulneráveis, com zero emissão. Mecanismos multilaterais para fiscalização da dívida.

Novo modelo de financiamento que enfoque nas questões climáticas e de desigualdade no centro, e que veja os desafios africanos como oportunidades de desenvolvimento sustentável.

Colômbia
Seremos suicidas se não dermos ouvidos ao que a ciência tem alertado sobre nossa extinção. A crise climática é o primeiro grande problema. A humanidade está a ponto de sucumbir frente a um sistema econômico baseado no uso de combustíveis fósseis. O segundo é a inteligência artificial, já que 5 mega bilionários se apropriaram do pensamento humano coletivo. Exigimos um tratado internacional que regulamente o uso da tecnologia e não permita que a inteligência artificial controle a humanidade. A humanidade pode morrer por acabar a essência humana que não consegue mais distinguir entre realidade e mentiras.

Mesmo nesse contexto, o FMI continua o mesmo, ameaçando cortar financiamento de países de acordo com a classificação do risco-país. Mas como pode o Brasil, que concentra a maior parte da Floresta Amazônica do mundo, ter um risco-país maior do que os Estados Unidos, que são os maiores contaminadores do planeta? Se o FMI não for reestruturado frente aos principais problemas da humanidade por ser associado dos EUA, ele tem que ser eliminado como uma instituição internacional e substituído por outra organização ou então se extingue a espécie humana.

Honduras
Não existe desenvolvimento sem igualdade de acesso e equidade de gênero. Representamos uma sociedade que sofre com as consequências privatizadoras dos mecanismos de financiamento internacional. O ex-presidente desmantelou as bases produtivas do país, com apoio externo, e beneficiou grandes empresários. O acesso ao crédito às pequenas empresas é praticamente nulo e quando podem, pagam altas taxas. Essa herança neoliberal gera desigualdades profundas, 20% das famílias detém 80% do PIB, controlam 40% do crédito bancário com taxas especiais. Deputados ligados à oligarquia financeira se recusam a aprovar nova lei de justiça fiscal que obriga oligarcas a pagar impostos.

Segundo a ONU, quase a metade da humanidade vive em países que gastam mais pagando juros da dívida do que investindo em educação e saúde. O sistema financeiro internacional nos impede de investir em investimento social, porque pagamos às instituições internacionais. Fazemos um chamado urgente à reforma internacional, que permita um modelo de financiamento com justiça e com centralidade aos povos, com justiça climática e direitos humanos.


(Foto: Divulgação/ONU/Manuel Elias)