Desmilitarizar escolas, garantir qualidade com infraestrutura e melhor educação profissional frente ao NEM: Comitê dos Direitos da Criança da ONU recomenda ao Brasil após incidência da Campanha

O Comitê dos Direitos da Criança (CDC) da Organização das Nações Unidas (ONU) incorporou contribuições da Campanha Nacional pelo Direito à Educação em relatório que traz recomendações ao Estado brasileiro.
Praticamente todas as submissões levadas pela Campanha foram acolhidas pelo CDC/ONU, com atenção especial ao financiamento público, infraestrutura das escolas, saneamento básico e acesso à água potável, educação antirracista, educação inclusiva, desmilitarização das escolas e revisão do Novo Ensino Médio (NEM) – dedicando qualidade à EPT (educação profissional e tecnológica). Veja os detalhamentos para cada um desses temas abaixo.
O relatório intitulado “Observações finais sobre os relatórios periódicos combinados de quinto a sétimo do Brasil”, adotado pelo Comitê em sua 99ª sessão (entre 12 e 30 de maio de 2025), foi divulgado nesta quinta (05/06).
ACESSE AQUI O RELATÓRIO ENVIADO PELA CAMPANHA AO CDC/ONU
ACESSE AQUI AS RECOMENDAÇÕES ENVIADAS PELA CAMPANHA AO CDC/ONU
Incidência
Em setembro de 2024, a Campanha integrou a comitiva da sociedade civil brasileira em Genebra, na Suíça, levando a agenda do direito à educação, que foi recebida em uma pré-sessão oficial e confidencial com o CDC/ONU. Após o encontro, os comissionados fazem perguntas ao país, baseado no que foi apresentado. O Brasil foi solicitado a responder por escrito até 15 de fevereiro de 2025. Os temas da Campanha já haviam sido incorporados nas perguntas dos comissionados ao Estado brasileiro.
Os comissionados interlocutores foram Luis Ernesto Pedernera Reyna, então presidente do CDC/ONU, Bragi Gudbrandsson, vice-presidente do comitê, Faith Marshall-Harris, especialista independente da ONU, e Velina Todorova, também especialista independente da ONU.
Na oportunidade, Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha, Daniel Cara, professor da FE-USP e coordenador honorário da Campanha, e Sara Nidian, educadora popular integrante do Consórcio das Juventudes do Nordeste, representaram a entidade na reunião e em eventos e encontros paralelos à 57ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
O Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA-CE), entidade integrante do Comitê Diretivo da Campanha, também atuou em Genebra em incidência. Enviou contribuições via relatório da Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced), a qual representaram na ocasião, sobre denúncias da negação do direito à educação, e foram uma parceria de peso nessa conquista.
A Campanha também submeteu relatório conjunto com entidades da Articulação Contra o Ultraconservadorismo na Educação, que fez denúncias sobre alguns dos temas que foram incorporados pelos comissionados nas recomendações.
Temas levados pela Campanha e acolhidos pelo CDC/ONU
Veja abaixo as traduções das recomendações do CDC/ONU, as recomendações da Campanha ao órgão e comentários sobre a incidência da Campanha no relatório.
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FINANCIAMENTO
Recomendação do CDC/ONU
(a) Aumentar substancialmente os investimentos nas áreas de saúde, alimentação, seguridade social e educação, especialmente na educação infantil, para garantir níveis adequados de recursos nessas áreas;
(b) Assegurar que o processo orçamentário incorpore uma perspectiva de direitos da criança, especifique alocações claras para crianças nos setores e órgãos relevantes, e inclua indicadores específicos e um sistema de monitoramento.
(...)
O Comitê recomenda que o Estado:
(a) Adote o novo Plano Nacional de Educação 2024–2034 e garanta recursos humanos, técnicos e financeiros suficientes para sua implementação efetiva.
(...)
(f) Alocar recursos financeiros suficientes para a expansão da educação infantil, especialmente na região Norte, com base em uma política abrangente e holística de atenção e desenvolvimento na primeira infância.
Recomendação da Campanha
“Um aumento substancial dos recursos destinados ao setor educacional para o fortalecimento da educação pública, com ênfase especial na priorização da implementação do Plano Nacional de Educação (PNE). Em situações de escassez de recursos, é fundamental que o Estado assegure a prioridade de repasses para as instituições públicas de ensino. O patamar de 10% do PIB para o PNE (2024/2034) se justifica, independentemente de comparações com países da OCDE, quando se consideram as necessidades educacionais brasileiras em relação ao acesso, à permanência e à qualidade em todos os níveis, etapas e modalidades de ensino previstas nas metas do PNE (2014-2024). Esse compromisso financeiro é essencial para a melhoria da infraestrutura e da qualidade da educação. Ao priorizar a educação pública e alinhar a alocação de recursos com o Plano Nacional de Educação, o Estado poderá avançar significativamente no enfrentamento dos desafios educacionais e na promoção de um sistema educacional mais inclusivo e equitativo para todos.”
(...)
“Que o Estado priorize a construção de um Sistema Nacional de Educação (SNE), incorporando a regulamentação do Custo Aluno-Qualidade (CAQ). Essa iniciativa é fundamental para estabelecer e implementar um referencial de qualidade social na educação básica, juntamente com mecanismos eficazes para garantir sua efetividade. O padrão do CAQ deve servir tanto como referência analítica quanto como instrumento de formulação de políticas, com o objetivo de aprimorar o processo educacional como um todo e alinhá-lo à política nacional de avaliação. É essencial, ainda, que o marco considere a heterogeneidade territorial do país, a fim de assegurar que o sistema educacional atenda às diversas necessidades e contextos das diferentes regiões.”
INCIDÊNCIA DA CAMPANHA:
Luis Ernesto Pedernera Reyna, presidente do CDC/ONU, questionou sobre as proposições legislativas que retrocedem os direitos educacionais. A Campanha comentou sobre a Emenda Constitucional 95 de 2016 (Teto de Gastos), que congelou os investimentos em áreas sociais e que ainda não foi revogada, e que está dando lugar a um arcabouço fiscal que ameaça os pisos para a educação e a saúde.
A especialista do CDC F. Marshall Harris focou-se no financiamento da educação. O Prof. Daniel Cara abordou a necessidade urgente de garantir o CAQ e a implementação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb), para assegurar a qualidade e a infraestrutura adequadas nas escolas, ambos com atrasos de anos em sua regulamentação e aprovação – o CAQ, de acordo com o Plano Nacional de Educação, deveria ter sido implementado no Brasil desde 2017. Cara destacou que o PIB do Brasil, de R$ 1,92 trilhões, deveria destinar 10% à educação, o que equivale a R$ 192 bilhões. No entanto, na prática, apenas R$ 96 bilhões são investidos.
SANEAMENTO BÁSICO E ÁGUA POTÁVEL
Recomendação do CDC/ONU
(a) Adotar medidas urgentes para equipar todas as escolas, em todos os estados e municípios, com serviços de água e saneamento;
Recomendação da Campanha
“Que o Estado priorize investimentos substanciais na melhoria da infraestrutura escolar, especialmente em áreas rurais e remotas. Isso deve incluir a ampliação do acesso à água e ao saneamento, bem como a criação de novas escolas nessas regiões carentes. Alocar recursos humanos, técnicos e financeiros suficientes para essas escolas, a fim de reduzir as desigualdades existentes e promover um ambiente de aprendizado adequado.”
INCIDÊNCIA DA CAMPANHA:
Pellanda e Cara declararam ser imprescindível assegurar, com a implementação do CAQ, a infraestrutura adequada nas escolas, em particular ao que se refere ao acesso à água potável e saneamento básico.
Sem o CAQ, o que vemos é que até mesmo recursos básicos como o abastecimento de água ainda falta em 3.063 escolas públicas em pleno ano de 2023. Quando o quesito é o fornecimento de água potável, esse número quase dobra, para 7.912 escolas, e é semelhante ao número de 6.363 escolas que não possuem esgotamento sanitário.
Os dados derivados dos Censo Escolares são do Projeto Sede de Aprender, iniciativa do Núcleo de Defesa do Patrimônio Público do Ministério Público do Estado de Alagoas visando garantir um ambiente de ensino escolar adequado. Após obter bons resultados a partir das visitas técnicas aos estabelecimentos, o projeto se expandiu nacionalmente em parceria com a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (ATRICON), o Instituto Rui Barbosa e o Instituto do Meio Ambiente do Estado de Alagoas. A Campanha é parceira do projeto.
EDUCAÇÃO INCLUSIVA
Recomendação do CDC/ONU
52. O Comitê recomenda que o Estado fortaleça a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva.
(...)
(d) Fortalecer o apoio comunitário, como assistência pessoal, moradia acessível e educação inclusiva, incluindo a formação profissional;
(...)
(c) Erradicar todas as formas de discriminação contra crianças com deficiência, meninas, crianças LGBTI e crianças migrantes;
Recomendação da Campanha
“Que o Estado aumente os investimentos na formação de professores, com ênfase em práticas pedagógicas inclusivas e na abordagem de diversas dimensões da acessibilidade. Fortalecer as estruturas de gestão para garantir uma implementação eficaz, com foco na formação de redes de aprendizagem e no estímulo a parcerias dentro da comunidade escolar. Respeitar os princípios estabelecidos na Lei Brasileira de Inclusão e na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Promover o diálogo construtivo com os movimentos sociais para assegurar o avanço da agenda da educação inclusiva, garantindo os direitos e o bem-estar de todos os estudantes.”
INCIDÊNCIA DA CAMPANHA:
A Campanha defende em suas atuações (ver aqui e aqui) o fortalecimento da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), para ampliar o investimento público, capacitar os profissionais da educação e valorizar o atendimento educacional especializado (AEE), atuando conjuntamente com políticas intersetoriais.
Conforme mostra o Balanço do PNE da Campanha, na Meta 4 do PNE, que trata do acesso ao atendimento educacional especializado, há gravíssimos problemas relacionados à falta de informações. Com relação ao dispositivo da universalização do acesso à educação básica, o melhor dado disponível é trazido pelo Censo Demográfico de 2010, produzido pelo IBGE. Naquele ano, 82,5% da população de 4 a 17 anos com deficiência frequentava a escola, o que significa que 190 mil dessas crianças, adolescentes e jovens estavam tendo seu direito negado. O dado do Censo não contempla as populações com transtornos globais do desenvolvimento (TGD) e altas habilidades/superdotação, além de ser uma informação desatualizada, dada sua longa periodicidade decenal. Ficam prejudicadas, assim, as análises com dados desagregados. Isso foi passado aos comissionados.
NOVO ENSINO MÉDIO (EPT)
Recomendação do CDC/ONU
53. O Comitê recomenda que o Estado revise a Reforma do Novo Ensino Médio de 2016 e, com base nisso, desenvolva e promova formação profissional de altíssima qualidade, tanto nos setores público quanto privado, para aprimorar as habilidades de crianças e adolescentes, especialmente daqueles que abandonam a escola.
Recomendação da Campanha
“A revogação da Lei nº 13.415/2017, que instituiu o Novo Ensino Médio. Em seu lugar, propõe-se a construção de uma política de ensino médio ampla e robusta, alinhada aos princípios do direito à educação, conforme articulado pelo Fórum Nacional de Educação (FNE). Essa abordagem garantirá um sistema de ensino médio mais inclusivo, equitativo e eficaz, promovendo o bem-estar integral e o sucesso acadêmico dos estudantes em todo o país.”
INCIDÊNCIA DA CAMPANHA:
A Campanha e o Coletivo em Defesa do Ensino Médio de Qualidade produziram uma série de documentos técnicos entre 2023 e 2024, nos quais analisam criticamente o Novo Ensino Médio (NEM) e sua reforma por meio do Projeto de Lei 5.230/2023, que propôs alterações à política nacional do ensino médio. Esses documentos apontaram graves problemas -- no mérito e de implementação, principalmente no que se refere aos itinerários formativos -- do NEM, recomendaram melhorias e denunciam limitações e retrocessos presentes nas propostas legislativas recentes.
A Campanha critica a implementação do NEM que, ao flexibilizar o currículo, compromete a formação geral básica (FGB) e a integralidade da educação, impactando também a EPT (educação profissional e tecnológica), que deve ser integrada e articulada com o ensino médio regular para preparar os jovens tanto para o mundo do trabalho quanto para a continuidade dos estudos.
Lembramos que o texto aprovado no Congresso Nacional em 2024, que alterou a Lei n. 13.415/2017, ampliou a carga horária da FGB para o ensino médio de um teto de 1.800 horas para um mínimo de 2.400 horas (ensino médio propedêutico) e de 2.100 horas (ensino médio com itinerário formativo técnico-profissional). Portanto, ampliou a carga horária das disciplinas básicas, mas cria uma segmentação interna nos sistemas de ensino, em prejuízo de quem necessita de uma formação científica consistente para ingressar na educação superior pública ou para finalizar o ensino médio com uma formação cidadã.
ANTI-DISCRIMINAÇÃO (RACISMO)
Recomendação do CDC/ONU
(a) Adotar legislação e programas abrangentes de combate à discriminação, inclusive para prevenir e combater a homofobia, xenofobia, racismo e a discriminação contra crianças LGBTI em todos os ambientes, inclusive nas escolas;
(...)
(b) Adotar medidas em larga escala para eliminar a discriminação estrutural contra crianças afro-brasileiras, quilombolas, indígenas e ciganas;
(...)
(d) Garantir que crianças que sofreram bullying, discriminação, assédio ou qualquer outra forma de violência, incluindo crianças transgênero, afro-brasileiras, indígenas e quilombolas, recebam proteção e apoio;
(...)
(b) Adotar urgentemente medidas para enfrentar as consequências de longo prazo causadas pela discriminação e violência letal sobre a saúde mental de crianças afro-brasileiras;
(...)
56. O Comitê insta o Estado a fornecer recursos humanos, técnicos e financeiros suficientes ao Ministério da Igualdade Racial para enfrentar, como prioridade, as causas profundas da discriminação racial, da pobreza e da violência estrutural, bem como suas consequências imediatas e negativas que afetam os direitos de crianças afro-brasileiras, em áreas rurais, urbanas e remotas.
(...)
(i) Adotar medidas para erradicar com firmeza a discriminação de gênero, a violência sexual e o abuso contra crianças, especialmente meninas, no sistema de justiça juvenil, incluindo medidas para evitar o confinamento de adolescentes grávidas e garantir que, nas unidades socioeducativas destinadas a meninas, toda a equipe, inclusive os agentes socioeducativos, seja composta exclusivamente por mulheres, inclusive para atividades ao ar livre;
Recomendação da Campanha
“Que o Estado implemente uma estratégia direcionada e abrangente para enfrentar as causas estruturais que levam à evasão escolar de crianças, especialmente crianças negras, em áreas urbanas marginalizadas. Enfrentar questões como pobreza, violência familiar, trabalho infantil e gravidez na adolescência por meio do desenvolvimento de programas que abordem diretamente esses desafios. Priorizar a criação de mecanismos de apoio para adolescentes grávidas e mães adolescentes, garantindo sua permanência e acesso contínuo à educação. Ao enfrentar essas questões de base e adotar medidas específicas, o Estado poderá promover um ambiente educacional inclusivo e acolhedor, reduzindo os fatores que contribuem para a evasão escolar, especialmente nas áreas urbanas marginalizadas, e promovendo, assim, a igualdade de oportunidades educacionais para todas as crianças.”
INCIDÊNCIA DA CAMPANHA:
A urgência pela plena implementação da Lei 10.639/2003, que está dentro da garantia de uma educação pública antirracista e inclusiva, é transversal em todas as ações que a Campanha integra, em especial as incidências internacionais do Projeto Seta – e do projeto da Campanha Euetu - Grêmios e Coletivos Estudantis – e dos estudos da Agenda Infâncias e Adolescências Invisibilizadas. O tema foi levado às discussões na ONU.
DESMILITARIZAÇÃO DAS ESCOLAS
Recomendação do CDC/ONU
50. Ao saudar a adoção do Decreto nº 11.611 de 2023, que visa reverter e proibir a militarização das escolas públicas, o Comitê recomenda que o Estado adote as medidas necessárias para sua implementação em todos os estados e municípios.
Recomendação da Campanha
“Que o Estado assegure que todas as escolas sejam administradas por autoridades civis, com ênfase na implementação de normas disciplinares e métodos de ensino adequados às crianças. Como parte desse esforço, é necessário acelerar o processo de descontinuação das escolas públicas geridas pelas Forças Armadas. Essa transição contribuirá para um ambiente educacional mais inclusivo e acolhedor, em conformidade com os princípios pedagógicos contemporâneos e com a promoção do bem-estar dos estudantes. Ao priorizar a gestão civil e adotar práticas educacionais voltadas para o desenvolvimento integral das crianças, o Estado poderá garantir um ambiente mais propício à aprendizagem e ao crescimento dos alunos.”
INCIDÊNCIA DA CAMPANHA:
Outro especialista, Hynd Ayoubi Idrissi, perguntou sobre os ataques armados às escolas, tema que Daniel tratou com profundidade, com o histórico de nossa atuação primeiramente na apresentação de relatório no período de transição governamental em 2022, em que Cara fez parte da coordenação de educação da transição, e em 2023, em sua relatoria no GT sobre o tema no MEC. Ele destacou, ainda, após questionamento de acompanhamento por parte dos comissionados sobre o tema, especialmente de Harris, o aumento estarrecedor da militarização das escolas no Brasil, que cresceu 344% nos últimos seis anos, afetando diretamente cerca de meio milhão de crianças e adolescentes em 23 estados e no DF. A militarização impõe um modelo autoritário e excludente, contrário ao desenvolvimento integral que buscamos na educação pública de qualidade. A Campanha realizou o mapeamento Educação sob Ataque, que inclui o tema em suas análises.
(Foto: Tony Winston/Agência Brasília)