Ensino Médio: entre conquistas coletivas e mudanças não realizadas
ENSINO MÉDIO: ENTRE CONQUISTAS COLETIVAS
E MUDANÇAS NÃO REALIZADAS (PDF)
COLETIVO EM DEFESA DO ENSINO MÉDIO DE QUALIDADE
11 jul. 2024
O dia 09 de julho de 2024 ficará marcado pela aprovação do Projeto de Lei n. 5.230/2023 na Câmara dos Deputados. O PL tem por objetivo alterar a Lei n. 13.415/2017, mais conhecida como Novo Ensino Médio (NEM), e também propõe a construção de uma Política Nacional para o Ensino Médio brasileiro. É graças à pressão social e política e ao PL 2.601/2023 – de autoria deste Coletivo –, que o governo federal se viu obrigado a realizar uma consulta pública sobre o ensino médio em 2023 e a apresentar o PL n. 5.230/2023.
Em evidente diálogo com o PL 2.601/2023, a proposta do governo procurou refletir (timidamente, é verdade) parte das aspirações vindas das ruas, das escolas e da Conferência Nacional Popular de Educação de 2022 (CONAPE) que demandaram o #RevogaNEM. Centenas de pesquisas demonstraram que o NEM prejudicou milhões de estudantes e professores/as no país, especialmente por propiciar o
aumento das desigualdades escolares.
Em 2016, antes mesmo da promulgação da Lei n. 13.415/2017, estudantes, profissionais da educação, pesquisadores/as e ativistas da educação pública – representados/as por movimentos sociais, associações científicas e organizações comprometidas com a garantia do direito à educação – já alertavam para os potenciais efeitos negativos da reforma do ensino médio.
Com o passar do tempo, as pesquisas e o cotidiano das escolas e salas de aula no país se encarregaram de desmoralizar a reforma do ensino médio perante a opinião pública. A partir daí, foi a pressão dos movimentos em defesa da educação que levou o governo federal a realizar uma consulta pública e a apresentar o PL de “reforma da reforma” do ensino médio. Realizada durante a tramitação do PL, a Conferência Nacional de Educação 2024 (CONAE) referendou essa pressão e aprovou uma moção pela revogação da Lei n. 13.415/2017, fundamentada na realidade apreensível em toda escola pública de ensino médio do país.
A discussão do PL n. 5.230/2023 na Câmara dos Deputados começou de forma conturbada e conflituosa. Primeiro porque o governo federal solicitou regime de urgência para a tramitação da matéria (e, pressionado por educadores/as e estudantes, voltou atrás). Segundo porque o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), indicou para a relatoria do PL ninguém menos do que o exministro
da educação do governo Temer, o deputado federal Mendonça Filho (União-PE), signatário político do NEM que logo se declarou imbuído do propósito de “aprimorar o legado” do ex-presidente.
Mendonça fracassou na tentativa de transformar o PL n. 5.230/2023 numa mera reedição do NEM. Foi obrigado, por exemplo, a aceitar as 2.400 horas letivas para a Formação Geral Básica (FGB). Mas, após acordo com o Ministério da Educação (MEC) e a liderança do governo na Câmara, conseguiu aprovar um texto piorado em relação ao PL original apresentado pelo governo. Já a relatora da matéria no Senado, a senadora Profa. Dorinha Seabra (União-TO), teve postura muito diferente da de Mendonça. Promoveu audiências públicas, propiciou o tempo necessário para que os/as senadores/as apresentassem emendas e só apresentou o seu relatório após a construção de um consenso mínimo em torno de temas centrais.
Como resultado, o Senado melhorou o texto da Câmara, acolhendo inclusive emendas sugeridas pelo Coletivo em Defesa do Ensino Médio de Qualidade e outras entidades. O resultado foi: a inclusão da língua espanhola como componente curricular obrigatório; a preservação do conceito de Ensino Médio Integrado, modelo pedagógico existente nos Institutos Federais; a garantia da ampliação da
carga horária nas escolas em tempo integral para além das 3.000 horas totais num prazo de cinco anos; a oferta de Educação a Distância (EaD) somente em casos excepcionais e com estrita regulamentação; a retirada do incentivo ao trabalho juvenil por meio do recurso de reconhecimento de saberes vinculados ao exercício laboral; a vedação da possibilidade de oferta de cursos de curta duração sob a
roupagem de “formação profissional”; restrições na atuação de docentes sem formação (o chamado “notório saber”); monitoramento com maior controle social dos processos de implementação da reforma nas redes estaduais; e a garantia de carga horária mínima para a Formação Geral Básica (FGB) de 2.400 horas e igual para todos/as os/as estudantes dentro de um prazo de cinco anos.
Aprovado pelos/as senadores/as, o texto melhorado retornou à Câmara e granjeou apoios de todos os movimentos que há anos vinham exigindo a revogação do NEM. Esperava-se que os/as deputados/as reconhecessem a demanda popular e acolhessem as mudanças promovidas pelo Senado. Esperava-se.
O processo de aprovação final do texto na Câmara dos Deputados mostrou, no seu rito parlamentar, o espírito antidemocrático de Arthur Lira. Até poucas horas antes da votação, não se conhecia o texto a ser votado. Iniciada a deliberação, o presidente da Câmara não permitiu que os/as parlamentares apresentassem os destaques que divergiam de pontos essenciais do relatório apresentado por Mendonça Filho. Os/as deputados/as sequer puderam registrar o voto nominal no
painel eletrônico.
É inconcebível que matéria de tamanha importância para o país seja apreciada no atropelo, sem publicidade e sem tempo mínimo de análise. Arthur Lira, é bom lembrar, nunca assumiu compromisso com a educação pública e com seus processos democráticos. Diferentemente do governo Lula, do qual se esperava outra postura. Apesar disso, logo após a primeira aprovação do PL n. 5.230/2023 na
Câmara, o líder do governo, deputado José Guimarães (PT-CE), fez questão de anunciar que não apoiaria nenhum aprimoramento ao projeto feito pelo Senado.
Quando o texto voltou da casa revisora com alterações positivas (que tornariam o ensino médio menos excludente e elitista), assistimos ao silêncio sepulcral do ministro da educação Camilo Santana (PT-CE), a indicar que um acordo regressivo estaria em construção. Um acordo envolvendo o ex-ministro da educação de Temer, as fundações/institutos empresariais e o governo Lula. Não à toa, foram esses os
personagens que correram às redes sociais para comemorar a aprovação de um texto piorado pela Câmara, logo após a votação de 09 de julho.
O Coletivo em Defesa do Ensino Médio de Qualidade vem a público manifestar preocupação com relação ao texto do PL n. 5.230/2023 aprovado pelo Congresso Nacional, que manteve diversos pontos essenciais da lei que instituiu o famigerado NEM (e piorou outros tantos): a não garantia da predominância de oferta do Ensino Médio Integrado nos Institutos Federais; a oferta de ensino presencial mediada por tecnologias ou na modalidade EaD; a manutenção do notório saber para a docência; a ausência da língua espanhola como componente curricular obrigatório; a possibilidade de oferta de parte da carga horária do ensino médio por instituições privadas; o redesenho do Enem e de outros exames vestibulares a partir dos chamados “itinerários formativos”; o estímulo ao trabalho precoce a partir possibilidade de validar horas de trabalho como carga horária letiva; e a existência de carga horária diferenciada na FGB para os ensinos médios técnico e propedêutico (o primeiro com 300 horas a menos).
O tema da carga horária da FGB merece um comentário particular, pois foi intensamente comemorado pelo ministro da educação e por agentes de fundações/institutos empresariais que tentaram ao longo de todo o processo legislativo (trabalhando nos bastidores) reduzir a carga horária das disciplinas básicas dos/as estudantes brasileiros. Fracassaram parcialmente.
O texto aprovado no Congresso amplia a carga horária da FGB para o ensino médio de um teto de 1.800 horas (Lei n. 13.415/2017) para um mínimo de 2.400 horas (ensino médio propedêutico) e de 2.100 horas (ensino médio com itinerário formativo técnico-profissional). Portanto, amplia a carga horária das disciplinas básicas, mas cria uma segmentação interna nos sistemas de ensino, em prejuízo de quem necessita de uma formação científica consistente para ingressar na educação superior pública ou para finalizar o ensino médio com uma formação cidadã.
Vale lembrar que a carga horária mínima de 2.400 horas na FGB para todos/as foi defendida por este Coletivo em abril de 2023 e incorporada ao texto do PL n. 2.601/2023, apresentado por líderes da base do governo Lula meses antes do PL elaborado pelo MEC. Esse e outros posicionamentos aparecem nas diversas notas técnicas que produzimos ao longo da tramitação do PL aprovado pelo Congresso.
O golpe impetrado na Câmara dos Deputados, seja pelo atropelamento do debate e pela votação simbólica, seja pela rejeição dos avanços contidos no texto do Senado, foi comemorado por fundações/institutos empresariais e pela coalizão empresarial Todos pela Educação, que ressaltaram que a essência da reforma de 2017 foi mantida. É nosso dever lembrá-los que grande parte dos problemas do NEM também foi mantida. E não levará muito tempo até que tais problemas sejam sentidos pelos/as estudantes e profissionais da educação nas escolas do país.
Num momento em que os oportunistas que sempre tentaram rebaixar o ensino público dos mais pobres comemoram como vitória os tímidos avanços obtidos com o PL n. 5.230/2023, não podemos esquecer que a própria existência do PL se deve à pressão de estudantes, profissionais da educação, pesquisadores/as e movimentos em defesa da educação como direito.
Apesar de Mendonça, dos acordos espúrios e dos oportunistas de variados matizes, a reforma do ensino médio de Temer e das fundações/institutos empresariais foi parcialmente derrotada. O que esses agentes comemoram é a reversão parcial – via acordão entre a direita e o governo – de sua derrota moral diante da sociedade brasileira.
Um projeto de nação alicerçado no desenvolvimento social, econômico e cultural do seu povo, na superação das desigualdades sociais e educacionais, sustentável e soberano, demanda a construção de uma escola pública à altura. Não será privando os/as estudantes do pleno acesso ao conhecimento científico e a uma formação ética e estética que assegure o direito à educação de qualidade que construiremos uma sociedade livre, plural e democrática.
O assunto da reforma do ensino médio não está encerrado. Estamos diante de um novo início. A luta pela educação pública de qualidade continua!
COLETIVO EM DEFESA DO ENSINO MÉDIO DE QUALIDADE
Ana Paula Corti (IFSP | REPU), Andrea Caldas (Setor de Educação/UFPR), Andressa Pellanda (Campanha Nacional pelo Direito à Educação), Ângela Both Chagas (UFRGS), Carlos Artexes Simões (CEFET-RJ), Carlota Boto (FE/USP), Carmen Sylvia Vidigal de Moraes (FE/USP), Catarina de Almeida Santos (FE/UnB), Christian Lindberg (UFS | OBSEFIS), Cleci Körbes (UFPR | Observatório do Ensino Médio), Cristiano das Neves Bodart (CEDU/UFAL), Daniel Cara (FE/USP | Campanha Nacional pelo Direito à Educação), Elenira Oliveira Vilela (IFSC | Sinasefe | Intersindical CCT), Elizabeth Bezerra Furtado Bolzoni (UECE), Fernando Cássio (FE/USP | REPU), Filomena Lucia Gossler Rodrigues da Silva (IFC), Gaudêncio Frigotto (UERJ), Idevaldo Bodião (Faced/UFC), Jaqueline Moll (Faced/UFRGS), Jean Ordéas (FE/USP), Lucas Barbosa Pelissari (FE/Unicamp), Manoel José Porto Júnior (IFSul | Direção Nacional do Sinasefe), Márcia Aparecida Jacomini (Unifesp | REPU), Marcos Goulart (Faced/UFAM), Maria Ciavatta (UFF), Marise Nogueira Ramos (Fiocruz | UERJ), Mateus Saraiva (Faced/UFRGS), Monica Ribeiro da Silva (UFPR | Observatório do Ensino Médio), Nilson Cardoso (UECE), Rafaela Reis Azevedo de Oliveira (Faced/UFJF | ABECS), Renata Peres Barbosa (UFPR | Observatório do Ensino Médio), Salomão Barros Ximenes (UFABC | REPU), Sandra Regina de Oliveira Garcia (UEL), Sergio Stoco (Unifesp | Cedes | REPU) e Thiago de Jesus Esteves (CEFET-RJ | ABECS).
(Foto: JVC Monteiro/SED)