Nota contra a privatização das escolas públicas estaduais no Paraná

Entidades do campo do direito à educação, entre elas a Campanha, repudiam e comunicam sua indignação com a privatização das escolas públicas estaduais no Paraná

 

A Constituição Federal brasileira de 1988 inscreve a educação como um direito de todos e DEVER do Estado e da família (Art. 205); traz, no inciso I, do artigo 206, a igualdade de condições de acesso e permanência na escola; a gestão democrática do ensino público, entre outros princípios e garantias que compõem o DEVER do Estado. Princípios, garantias e deveres regulamentados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei nº 9394/1996) que, mais recentemente (Lei nº 14.644/2023), incrementou a gestão democrática ao incluir os Conselhos de Escola e a criação de um Fórum de Conselhos Escolares visando a ampliar a participação da comunidade escolar nas discussões e deliberações afeitas à unidade escolar.

A LDB de 1996 indica ainda, no Art. 19, as categorias administrativas que as instituições de ensino são classificadas, no inciso I, faz importante delimitação para as que se enquadram na categoria “públicas” sendo entendidas “as criadas ou incorporadas, mantidas e administradas pelo Poder Público”, categoria na qual se enquadram as escolas da rede estadual de ensino. A mesma LDB assevera, ainda, no Art. 77 que “os recursos públicos serão destinados às escolas públicas […]”.

Esses princípios e DEVERES, são lembrados em razão da afronta realizada pelo governo do estado do Paraná, que encaminhou à Assembleia Legislativa do estado em 27 de maio de 2024, Projeto de Lei (345/2024) de sua autoria que propõe o “Programa Parceiro da Escola”, por meio do  qual, o governador insiste em contratar “pessoas jurídicas de direito privado especializadas na prestação de serviços de gestão educacional e implementação de ações e estratégias que contribuam para a melhoria do processo de ensino e aprendizagem dos alunos e a eficiência na gestão das unidades escolares.” (Art. 2º, Projeto de Lei 345/2024) para 200 escolas da rede estadual. Faz-se uso do termo “insiste” porque é a segunda vez, em dois anos, que o governador busca implementar este Programa, mesmo após diversas manifestações de contrariedade realizadas por profissionais da educação quando da apresentação da primeira tentativa.

Trata-se de um processo explícito de privatização da gestão escolar pela via da terceirização de uma atividade fim da escola pública. Por analogia, tal ação que contraria o artigo 3º do Decreto Federal nº 9.507/2018 que, dentre o disciplinamento das atividades do setor público federal que podem ser executadas de forma indireta, exclui as “que envolvam a tomada de decisão ou posicionamento institucional nas áreas de planejamento, coordenação, supervisão e controle”, atividades essas, típicas à administração da escola.

O respectivo decreto, ainda que regule a situação em âmbito federal, traz respaldo jurídico para que seja aplicado em âmbito estadual e municipal, haja vista serem entes federados, com relativa autonomia administrativa, mas que têm por dever a garantia por meio da oferta direta e manutenção de serviços públicos à população nos mesmos moldes do governo federal.

O Projeto de Lei tem muitos problemas, destacam-se, talvez, os mais críticos e os que têm relação mais direta com os princípios apresentados no início desta nota. O primeiro se relaciona à equivocada e impossível separação entre “trabalho administrativo e pedagógico”, como Vitor Henrique Paro há muito tempo analisou, e a ênfase na racionalidade técnica desta atividade em contraposição à sua natureza política e aos princípios que constituem a gestão democrática.

A afirmação se assenta no texto do PL 345/2024 que prevê a atuação do segmento privado nas dimensões: “administrativa e financeira da escola” (Art. 6º), inclusive para os recursos advindos do Governo Federal. Neste caso, a gestão do recurso caberá ao/à presidente/a da Unidade Executora, mas “deverá levar em consideração o plano de trabalho do parceiro contratado” (Art. 6º; §3º). A previsão indicada no PL, fere a gestão democrática, assim como as normativas que regulamentam o uso e a prestação de contas de recursos repassados pelo governo federal às escolas públicas e enfraquece o poder decisório de pensar a alocação dos recursos com vistas a materializar o Projeto Político Pedagógico da escola. Cabe lembrar que no disciplinamento da organização do sistema de ensino, a LDB, no artigo 15, indica inequivocamente a responsabilidade de estados e municípios em assegurar autonomia pedagógica, administrativa e de gestão financeira da escola, como aspectos indissociáveis.

A situação é agravada pela secundarização do papel do/a diretor/a que precisará administrar “os profissionais efetivos lotados na instituição de ensino” (Art. 6º; §2º), porém, todos e todas “deverão atender a critérios e metas estabelecidos pelo parceiro contratado em conjunto com o diretor (sic) da rede” e, para aqueles/as que não estiverem de acordo, a Secretaria de Estado de Educação reserva-se o direito de  “remanejar os servidores do quadro efetivo que, após consulta, optarem por sua relotação” (Art. 6º; §4º). O/A trabalhador/a da educação é tido como um empecilho ao Programa e não como agente materializador/a do direito à educação.

O governo do estado, além de colocar a gestão da escola, os/as trabalhadores/as da educação e estudantes à disposição do setor privado, colocará também os “Sistemas Estaduais de Registro Escolar, ficando a cargo da Secretaria de Estado da Educação – SEED a expedição de normas para uso.” (Art. 8º). Em tempos de capitalismo digital, em que informações pessoais e educacionais valem ouro, Ratinho Júnior afronta a Lei de Proteção Geral de Dados abrindo um portal de acesso para sujeitos privados alheios à escola. A esse respeito, pesquisas sobre o tema da privatização mostram a produção e apropriação de dados educacionais públicos por parte de segmentos privados que atuam em escolas públicas e não são disponibilizados de forma pública e com isso, fabrica suas próprias evidências.

O princípio da igualdade de acesso e permanência também está em xeque quando se prevê “buscar o aumento da qualidade da educação pública estadual, por meio do estabelecimento de metas pedagógicas e modernização das estruturas administrativas e patrimoniais” pela via da remuneração do “parceiro”, para ser fiel às palavras do texto, “de acordo com a média de custo de referência da rede […]”. Considera-se, que o governo trata desigualmente as unidades escolares e, consequentemente, o acesso e a permanência dos/as estudantes, ao prever aporte de recurso ao setor privado para gestão, imprimindo possíveis “bons resultados” à gestão privada.

Financiar desigualmente um conjunto de escolas que ficará sob a responsabilidade de um “plano de sucesso” elaborado, coordenado e implementado pelo setor privado, cujos princípios se assentam no mercado, é considerar a educação como uma mercadoria qualquer que pode ser negociada e vendida. A privatização pela via da terceirização, segmenta, segrega, produz desvantagem quando se pensa no conjunto da população que frequenta e trabalha na rede estatal aprofundando desigualdades já existentes.

Dizer sim à escola pública, gerida e financiada pelo estado, é reafirmar o Direito à educação pública, democrática, gratuita e de qualidade socialmente referenciada para todos e todas. Defender e manifestar essa posição é um direito e um compromisso político-social, a sua criminalização é um ato repressivo e antidemocrático. Um governo eficiente, que faz “sucesso” na educação, é aquele que a respeita e cumpre o seu DEVER de educar, não TERCEIRIZA essa responsabilidade a ninguém!
 

Assinam essa nota:

Associação Brasileira de Ensino de Biologia– SBEnBio

Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais – Abecs

Associação Brasileira de Currículo – AbdC

Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências – Abrapec

Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação – ANFOPE

Associação Nacional de Política e Administração da Educação – Anpae

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – ANPEd

Associação Nacional de História – ANPUH

Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação – Fineduca

Campanha Nacional pelo Direito à Educação – Campanha

Centro de Estudos Educação e Sociedade – CEDES

Centro de Formação, Assessoria e Pesquisa em Juventude – CAJUEIRO

Central Única dos Trabalhadores – CUT

Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação – CNTE

Confederação Sindical Educação dos Países de Língua Portuguesa (CPLP-SE)

Fórum Nacional de Coordenadores Institucionais dos Programas PIBID e Residência Pedagógica – Forpibid-rp

Fórum Nacional de Diretores de Faculdades/Centros/Departamentos de Educação ou Equivalentes das Universidades Públicas Brasileiras. – Forumdir

Observatório do Ensino Médio

Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação – RePME

Rede Nacional EMPesquisa

Sociedade Brasileira de Ensino de Química – SBEnQ

(Foto: Divulgação/APP-Sindicato)