Posicionamento público: para além das 2.400 horas
Leia o posicionamento público do Coletivo em Defesa da Ensino Médio de Qualidade na íntegra abaixo ou em PDF.
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19 mar. 2024
COLETIVO EM DEFESA DO ENSINO MÉDIO DE QUALIDADE
Ana Paula Corti (IFSP | REPU), Andrea Caldas (Setor de Educação/UFPR), Andressa Pellanda (Campanha Nacional pelo Direito à Educação), Ângela Both Chagas (UFRGS), Carlos Artexes Simões (CEFET-RJ), Carlota Boto (FE/USP), Carmen Sylvia Vidigal de Moraes (FE/USP), Catarina de Almeida Santos (FE/UnB), Christian Lindberg (UFS | OBSEFIS), Cleci Körbes (UFPR | Observatório do Ensino Médio), Cristiano das Neves Bodart (CEDU/UFAL), Daniel Cara (FE/USP | Campanha Nacional pelo Direito à Educação), Elenira Oliveira Vilela (IFSC | Sinasefe | Intersindical CCT), Elizabeth Bezerra Furtado Bolzoni (UECE), Fernando Cássio (FE/USP | REPU), Filomena Lucia Gossler Rodrigues da Silva (IFC), Gaudêncio Frigotto (UERJ), Idevaldo Bodião (Faced/UFC), Jaqueline Moll (Faced/UFRGS), Jean Ordéas (FE/USP), Lucas Barbosa Pelissari (FE/Unicamp), Manoel José Porto Júnior (IFSul | Direção Nacional do Sinasefe), Márcia Aparecida Jacomini (Unifesp | REPU), Maria Ciavatta (UFF), Marise Nogueira Ramos (Fiocruz | UERJ), Mateus Saraiva (Faced/UFRGS), Monica Ribeiro da Silva (UFPR | Observatório do Ensino Médio), Nilson Cardoso (UECE), Rafaela Reis Azevedo de Oliveira (UFJF | ABECS), Salomão Barros Ximenes (UFABC | REPU), Sandra Regina de Oliveira Garcia (UEL), Sergio Stoco (Unifesp | Cedes | REPU) e Thiago de Jesus Esteves (CEFET-RJ | ABECS).
O ano de 2023 terminou com uma pauta importante em aberto na área da educação: como ficaria a reformulação do (Novo) Ensino Médio? Marcado por uma série de manifestos, atos de rua, mobilizações em redes sociais, notas técnicas, seminários e consultas públicas, o ano de 2023 foi encerrado com três possibilidades sobre as definições dos rumos futuros das escolas de ensino médio brasileiras, todas formalmente protocoladas na Câmara dos Deputados: 1) o Projeto de Lei n. 2.601, de 16 de maio de 2023, subscrito por 15 parlamentares de quatro partidos distintos e formulado por este coletivo; 2) o PL n. 5.230, de 26 de outubro, encaminhado pelo Executivo - que recebeu 81 emendas (sendo 41 positivas, formuladas em parceria ou propostas por este coletivo, e 40 negativas); e 3) o Substitutivo ao PL n. 5.230/2023 (o PRLP 2) do relator da matéria, deputado Mendonça Filho (União-PE).
Uma vez que o MEC encaminhou sua proposta adjetivando-a como resultado de ampla consulta pública realizada pelo órgão, anexou-lhe um pedido de urgência que colocou o PL n. 2.601/2023 num limbo parlamentar, tentando escantear um texto legislativo que pauta o debate. Ato contínuo, o presidente da Câmara dos Deputados designou como relator da matéria ninguém menos do que o ministro da educação que, no governo Temer, propôs a MP n. 746/2016 que foi convertida na Lei n. 13.415/2017 do Novo Ensino Médio. Ou seja, nomeou como relator o principal responsável pela Reforma que a comunidade educacional deseja ver revogada.
A respeito desse imbróglio, o Coletivo que assina o presente texto publicou um artigo nesta CartaCapital intitulado “Não podemos admitir novos retrocessos no Ensino Médio brasileiro”. Naquele momento, expressamos preocupações com aspectos do Substitutivo ao PL n. 5.230/2023, apresentado pelo relator, dentre os quais ressaltamos: 1) a redução da carga horária destinada à formação geral básica para um teto de 2.100 horas que, no caso da formação técnica e profissional, poderá ser ainda menor; 2) a reafirmação da lógica da organização dos currículos pela desarticulação entre formação científica básica e itinerários diversificados; 3) a manutenção de formas precarizadas da formação técnica e profissional; 4) o reconhecimento do “notório saber” como qualificação suficiente para o exercício da docência; 5) o incentivo à ampliação da oferta privada do ensino médio público por meio de parcerias; e 6) a admissão de abordagens remotas mesmo nos conteúdos da formação geral básica.
É preciso reiterar que, não por acaso, a redação de Mendonça Filho ignora aspectos importantes do PL encaminhado pelo MEC (p. ex. a questão do “notório saber”) e também desconsidera os resultados da consulta pública realizada pelo Ministério, as mobilizações da sociedade civil e as publicações dos resultados de inúmeras pesquisas que atestam o fracasso do Novo Ensino Médio. Talvez seja correto afirmar que, na relatoria, o deputado Mendonça Filho (re)escreveu o texto de quando era ministro da educação e editou a MP n. 746/2016. Além disso, em termos da liturgia parlamentar, é importante frisar que o relator ignorou as emendas positivas, que retomariam uma agenda positiva à matéria, desconsiderando a produção de seus colegas, articuladas - entre outros setores - com este coletivo.
Com o retorno das atividades parlamentares neste ano de 2024, voltaram aos debates os rumos do (Novo) Ensino Médio no Congresso Nacional, inclusive com sinalização de votação até o final do mês de março.
Novamente, vemos manifestações por parte de estudantes e profissionais da educação para um dia de mobilização nacional em 19 de março contra o substitutivo de Mendonça Filho. Nos textos desse chamamento, as entidades defendem a aprovação do PL n. 5.230/2023 encaminhado pelo MEC.
No entanto, é imprescindível refletir: será que o PL do governo federal representa de fato a revogação do Novo Ensino Médio, bandeira erguida por múltiplos atores e atrizes sociais desde 2016, quando foi apresentada a MP n. 746/2016?
Na Nota Técnica intitulada "Ensino médio: especialistas e entidades de defesa do direito à educação recomendam melhorias ao PL 5.230/2023 do governo federal, com base no PL 2.601/2023”, assinada por este Coletivo, fica explícito o reconhecimento de que há avanços na proposta elaborada pelo governo, sobretudo no que se refere ao aumento para, no mínimo, 2.400 horas destinadas à Formação Geral Básica (FGB) dos/as estudantes, ainda que se deixe em aberto uma possibilidade de redução para as 2.100 horas defendidas por Mendonça Filho e os parceiros empresariais da reforma.
Cumpre ressaltar, no entanto, que permanecem no PL do MEC alguns dos problemas da proposta original, tais como: 1) a vinculação obrigatória à Base Nacional Comum Curricular (BNCC); 2) a organização curricular constituída pela junção entre FGB e itinerários formativos, renomeados como “percursos de aprofundamento”; 3) a possibilidade de oferta dos chamados cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC), que não asseguram habilitação profissional; 4) a ausência de garantia de acesso ao conjunto dos conhecimentos e disciplinas que compuseram o ensino médio ao longo de sua história, algo explicitamente reivindicado por estudantes da etapa; e 5) a possibilidade de validar como carga horária letiva atividades de trabalho infantil. Essas foram, precisamente, os problemas que as 41 emendas positivas procuraram resolver no texto original do PL 5230/2023, apresentado pelo MEC.
Justamente diante do reconhecimento dos limites e equívocos da Lei n. 13.415/2017, que instituiu a reforma que passou a ser chamada de “Novo Ensino Médio”, é que o Documento Final da Conferência Nacional de Educação (CONAE) explicitou a necessidade premente de revogação. É importante lembrar que a etapa nacional da Conferência, ocorrida em janeiro de 2024, contou com cerca de 2.500 participantes, tendo sido precedida por conferências estaduais e, estas, por conferências municipais e intermunicipais nos respectivos territórios, mobilizando mais de 1 milhão de brasileiras e brasileiros.
Isso nos dá uma ideia da capilaridade e da representatividade dessas deliberações e do clamor do campo educacional pela revogação do Novo Ensino Médio. Em que medida o apoio e a mobilização pela aprovação do PL n. 5.230/2023 não estaria em desacordo com os posicionamentos do campo educacional manifestados no Documento Final da CONAE 2024?
É preciso lembrar que o ensino médio no Brasil é, sobretudo, de oferta pública através das redes estaduais de ensino, com cerca de 6,4 milhões de alunos (83,6% do total de matrículas), segundo informa o Censo Escolar da Educação Básica de 2023, e é precisamente sobre esse público, perpassado por desigualdades sociais, territoriais, de raça e etnia, dentre outras, que têm recaído – e continuarão a recair – as piores consequências das fragilidades do NEM. A pior delas: a não garantia de uma formação científica básica de qualidade que lhes permita a continuidade dos estudos ou uma formação profissional consistente, obstruindo os caminhos para futuros mais dignos e menos desiguais.
Segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), menos da metade (46%) dos estudantes das redes públicas que cursaram o 3º ano do ensino médio fizeram o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Embora a redução do número de inscritos seja um problema multifatorial, não é possível ignorar que essa redução em relação aos concluintes do ensino médio nas redes públicas tem relação com o “Novo” Ensino Médio.
Por esses motivos, mesmo reconhecendo a importância de ações recentes por parte do governo federal, como o programa “Pé-de-Meia” e a criação de 100 novos Institutos Federais, é preciso colocar as coisas nos seus devidos lugares: tais iniciativas, em meio aos limites e equívocos do Novo Ensino Médio – alguns dos quais mantidos no PL n. 5.230/2023 e aprofundados no substitutivo de Mendonça Filho –, pouco incidirão na redução das desigualdades e na garantia da oferta de um ensino médio de qualidade para os estudantes das escolas públicas no Brasil. Nesse caso, o ônus da legitimação de um modelo de ensino médio desqualificado e excludente recairá sobre o mandato do Presidente Lula.