2º dia de Seminário Internacional: especialistas do direito à educação discutem estratégias da sociedade civil nos níveis regional e nacional para governança global da educação

Impactos da privatização e da digitalização na educação foram detalhados nos contextos de África, Ásia, América Latina e países de língua oficial portuguesa, também com análises detidas sobre Brasil, Chile e Moçambique

 

Territorializar as discussões acerca das políticas de privatização na governança global da educação. Esse foi o mote do segundo dia de debates do Seminário Internacional “Tendências globais na educação: o impacto das estruturas de governança, da privatização e da digitalização”. 

O evento foi organizado por Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, em parceria com o Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP), com a Faculdade de Educação da USP, com o Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (Portugal) e com o Transnational Institute (TNI), que é também apoiador da iniciativa. 

Especialistas de vários continentes discutiram estratégias da sociedade civil nos níveis regional e nacional para a garantia do direito à educação, especificando os casos de África, Ásia, América Latina e países de língua oficial portuguesa, contando também com análises detalhadas de Brasil, Chile e Moçambique.

Foram apresentados recortes territoriais sobre como se dá a penetração da tecnologia na educação e como os interesses das empresas multinacionais big tech são incorporados no discurso e na prática por atores privados em instâncias de governança global, impactando negativamente o direito à educação.

Pellanda, idealizadora do seminário que tem consonância com o tema de sua pesquisa de doutorado no IRI/USP, fez a abertura do segundo dia de evento. Pellanda reiterou a importância de territorializar as discussões, uma vez que existe o mau hábito dentro das relações internacionais de não levar as discussões a nível regional, sendo comum a atenção apenas ao âmbito global. “Aqui [no seminário] vamos, politicamente, ter a defesa de trazer para o regional e o nacional essa discussão”, disse.

Cristiane Lucena Carneiro, professora do IRI-USP, fez a apresentação das primeiras falas. Entre elas, a de Carlota Boto, professora titular e diretora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), que expôs para apreciação crítica dos presentes o relatório da Unesco “Reimaginar nossos futuros juntos: um novo contrato social para a educação”. Para a professora, o documento propõe um novo contrato social para a educação, que visa reconstruir inter-relações: conosco, com o planeta e com a tecnologia.

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Mediador da primeira mesa do dia, Luis Eduardo Murcia, professor da Universidade de Manchester (Reino Unido), fez uma apresentação sobre o uso da tecnologia na educação. Propôs que todos questionemos se o discurso de empresas edtech se importa de fato com fins pedagógicos ou se têm como principal objetivo seus negócios. “[Precisamos de] controle social sobre os contratos públicos com empresas edtech. Professores, estudantes, escolas e famílias não fazem parte dessa conversa. Ela acontece entre os governos e as empresas, e não sabemos como isso vai afetar o financiamento sustentável da educação”, alertou.

“Até que ponto nós podemos avaliar como a penetração da tecnologia na educação pode criar novas opções para privatização e comercialização da educação?”, questiona. Ele diz que o problema não é a tecnologia na educação em si, mas como seus fornecedores estão executando sua implementação e sugerindo usos para qualquer problema da educação sem analisar contextos com base em diversos fatores, como a inclusão digital.

Desafios da digitalização da educação na África, Ásia, América Latina e países lusófonos

Rene Raya, analista filipino e líder de políticas da ASPBAE (Asian South Pacific Association for Basic and Adult Education), abriu a segunda mesa do evento analisando experiências e lições do ensino a distância, na perspectiva da Covid-19 na região da Ásia e do Pacífico. Raya destacou que a “digitalização acelerada e a privatização da educação são o caminho errado a seguir”. Raya aponta que a inclusão digital precisa sempre considerar o contexto e o território para ser efetiva e equitativa.

Trazendo a visão da América Latina e do Caribe, Nelsy Lizarazo, coordenadora geral da Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação (CLADE), apresentou as linhas de atuação da rede em relação ao tema, principalmente sobre a construção de narrativas para a incidência política e mobilização. Lizarazo destacou que estudos da entidade sobre privacidade e transparência no uso de dados pessoais são essenciais para o enfrentamento à privatização e à comercialização da educação no contexto de pós-pandemia como o início do processo de posicionamento da CLADE frente às políticas de privatização. 

Ela também lembrou que foi a produção de conhecimento sobre a justiça fiscal dos países latino-americanos que fortaleceu propostas de maior financiamento à educação a nível regional e nacional. “Temos que aproveitar a oportunidade para apresentar os dados e fazer alianças para o fortalecimento e o impulsionamento das discussões sobre a privatização”, alerta.  

Solange Akpo, gerente de capacitação e coordenadora regional da ANCEFA (Rede Africana Campanha pela Educação para Todos), falou da governança global e da digitalização como novo impulso para a privatização da educação africana. Akpo aponta que diversos países do continente sofrem com a falta de financiamento adequado para a educação, tendo também acesso limitado às novas tecnologias.

“Os sistemas de educação já eram fracos antes da pandemia em razão da pobreza, das políticas de austeridade e dos ataques terroristas. Os sistemas enfrentam ainda as drásticas consequências da Covid-19 e, consequentemente, as populações marginalizadas, que já são excluídas da educação, encaram esses desafios com pouco acesso a informações”, afirma Akpo. 

Ela reitera a falta de coerência dos tomadores de decisão do poder público com as políticas de digitalização, que foi apresentada como um instrumento para fortalecer os sistemas educacionais, mesmo com a internet na África chegando a apenas 43% da população, e em muitos casos com baixa qualidade de conexão.

Fechando as discussões da primeira mesa, Rui da Silva, presidente da direção do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, falou sobre os impactos das estruturas de governança, da privatização e da digitalização no contexto dos países lusófonos - países falantes da língua portuguesa.

Ele elaborou um mapa dos países financiados pelo Global Partnership for Education (GPE) e os requisitos para que cada país receba seu financiamento. O mapa mostra que muitos países da África Subsaariana recebem esse financiamento, mas estão longes de terem uma educação de qualidade a todas as pessoas. Ele destaca que empresas multinacionais recebem financiamento do setor privado, mas de uma maneira "oculta".

"Há um discurso e uma crença de que o setor privado vai apoiar o GPE como fundo, 

 mas nos relatórios financeiros nós não vemos essa tendência", diz da Silva. "E depois, quando vemos os relatórios, vemos que empresas como a Microsoft apoiaram o GPE. Mas como? Apoiaram em fornecer software aos países, sem eles pagarem. Mas todos nós sabemos o que acontece quando instalamos os aplicativos."

Brasil, Chile e Moçambique

Isabel da Silva, secretária-executiva do MEPT (Movimento de Educação para Todos), de Moçambique, iniciou a segunda mesa do dia com uma análise sobre os impactos da privatização na educação de seu país. Isabel apontou como esse processo é evidenciado se os Estados tomarem por base os Princípios de Abidjan – um dos principais marcos regulatórios internacionais da atuação do setor privado na educação, do qual a Campanha participou da construção coletiva.

Segundo pesquisa do MEPT, 87% das escolas do país africano não possuem sala de informática; 47% das escolas não têm computador. 

Na sequência e trazendo uma perspectiva do Chile, Diego Parra, pesquisador do Centro ALERTA e do Observatório Chileno de Políticas Educativas (OPECH) da Universidade do Chile, comentou o processo de privatização na agenda da nova direita na educação chilena. Parra fez uma linha do tempo listando a falta de garantias para o direito à educação dentro da constituição federal do país.

“O Chile é um dos poucos países do mundo que utiliza o mecanismo de subvenção à demanda”, diz Parra. Essa política é um modelo de financiamento das escolas públicas por meio de vouchers (vales), isto é, recursos distribuídos pelo Estado às famílias para que elas paguem diretamente pela educação de seus filhos, em escolas públicas ou particulares. Essa é uma política de privatização da educação.

Para Parra, os efeitos negativos da privatização são o favorecimento de quem tem mais, e não de quem necessita mais, gerando uma situação dramática de aumento das desigualdades educacionais. O sistema de vouchers demonstrou ser uma política extremamente prejudicial à aprendizagem.

Daniel Cara, professor da FE-USP e membro do Comitê Diretivo da Campanha, falou do contexto brasileiro, especificamente sobre a economia da educação e a trajetória de fragilidade no cumprimento dos direitos educacionais na escala global.

“O direito à educação passa a ser tensionado por dois organismos internacionais: o Banco Mundial, no ano de 1944, que se estabelece como mecanismo para o financiamento global, e ao mesmo tempo, a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Ambos tratam a educação como tema prioritário e vão encontrar no debate econômico uma referência fundamental de estruturação que é a teoria do capital humano, que trabalha com a ideia do quarto fator de produção: a qualificação do trabalho. Ou seja, ela torna a educação – que é um direito – em um fator econômico”, explica Cara.

Ele chama a atenção para a influência de representantes empresariais na gestão da educação brasileira, em vez de docentes, pesquisadores, estudantes e movimentos sociais e de classe que realmente conhecem e lutam pelo direito à educação. “A gente tem que lutar por uma política de educação gerida por educadores com uma compreensão efetiva das ciências da educação. Já que a economia coloniza a educação, a gente precisa fazer o caminho inverso: a gente tem que colonizar a economia e fazer uma economia que esteja a serviço dos povos, e não termos os povos a serviço da economia”, defende. 

No fim de cada mesa, os especialistas responderam a diversas perguntas do público. Você acessa o conteúdo completo aqui.

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(Fotos: Campanha Nacional pelo Direito à Educação)