As diferentes influências do capital privado na governança global da educação são tema de seminário internacional
Há similaridades nas formas de negação do direito à educação em diversos países. Os efeitos do neoliberalismo na educação podem ser vistos desde a escala internacional (instâncias de governança, como as da ONU) à local (da disputa de escolas contra a precarização do ensino). As lutas para barrar o avanço da privatização na educação também têm convergências entre as organizações da sociedade civil internacional – elas têm a digitalização da educação e a governança multissetorial como seus maiores embates.
Essa foi a tônica do primeiro dia do Seminário Internacional "Tendências globais na educação: o impacto das estruturas de governança, da privatização e da digitalização", evento que aconteceu nos dias 25 e 26 de setembro, no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP), e foi organizado por Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e parceiros (conheça-os abaixo).
Com o tema "Governança global hoje: desafios, poder e privatização na complexa esfera internacional e da digitalização", especialistas de renome e de atuação internacional – seja na pesquisa acadêmica, seja no ativismo – expuseram como o poderio econômico de países do Norte Global e conglomerados privados não pode se imiscuir dentro de redes de influência para definir rumos da educação de outros países.
O diretor e professor do IRI-USP, Pedro Dallari, abriu o evento ressaltando a importância desta discussão como um sinal de amadurecimento.“Não há governança setorial que não seja de dimensão internacional. As políticas públicas se tornaram internacionais e a ação de gestão nos diferentes campos se tornou internacional”, afirmou.
Andressa Pellanda, que finaliza doutorado no IRI-USP com pesquisa sobre governança global na educação, realiza o seminário em parceria com o Instituto, com a Faculdade de Educação da USP, com o Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (Portugal) e com o Transnational Institute (TNI), que é também apoiador da iniciativa.
“É um momento de troca para pensarmos juntos sobre a agenda global para educação, que reverbera no Brasil [na] influência de atores privados da educação, principalmente na agenda de digitalização – já que o Programa Escolas Conectadas foi lançado essa semana pelo próprio presidente Lula [PT] e a cadeira da sociedade civil é representada por uma organização relacionada com o setor privado", alertou Pellanda, complementando que essa agenda é “um tema muito importante, mas pouco evidenciado”.
Ao lado de Pellanda na mesa de abertura, Cristiane Lucena Carneiro, professora do IRI-USP, foi quem fez a introdução e mediação do primeiro dia de evento. “No âmbito da pesquisa em Relações Internacionais, que mais uma vez, andam um pouco desconectadas da prática da política pública, existe um interesse crescente e renovado em olhar para a natureza do problema [a influência do setor privado], inclusive questionando o senso comum [de participação política] no que diz respeito às governanças globais”, disse Carneiro.
Também na mesa de abertura, o presidente da direção do Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, Rui da Silva, classificou o seminário como um momento de avanço em seu trabalho como pesquisador e ativista. “Temos a tendência de olhar só as transferências e influências do Norte Global para o Sul Global, mas viemos falar desses movimentos considerados Sul-Sul também”, diz da Silva, que pesquisa a educação de países de língua oficial portuguesa, especialmente os africanos.
VEJA O SEMINÁRIO INTERNACIONAL NA ÍNTEGRA
Governança multissetorial
A primeira mesa de debate contou com contribuições acadêmicas sobre a governança multissetorial da educação em diversas áreas, a necessidade de uma reforma global da educação e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODSs) na governança global.
Gonzalo Berrón, diretor de projetos na Fundação Friedrich Ebert - Brasil e associate fellow e membro do Corporate Power Team do Transnational Institute (TNI), iniciou o debate falando sobre a governança multissetorial. O diretor fez um panorama sobre a crescente presença do setor privado em instâncias de governança – como as da ONU –, e criticando as atuações de OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), Banco Mundial e Parceria Global para a Educação nesses espaços de decisão, em detrimento da participação dos movimentos sociais e das organizações da sociedade civil.
Berrón explicou que o termo “governança multissetorial” ou multistakeholderism é uma prática política que envolve reunir múltiplas partes interessadas na tomada de decisões. Na teoria, ela parece democrática, mas na prática pode enfraquecer a autonomia dos países em executar suas próprias governanças. Segundo Berrón, o Estado precisa decidir sobre suas políticas, e não ser influenciado pela governança multissetorial. Ele ainda destacou que o termo é falado com uma conotação positiva em discursos, inclusive da ONU, como algo que faz parte do senso comum da governança global, quando na realidade é uma “naturalização de um jargão que enviesa não só os mecanismos de governança, mas também as políticas públicas que emergem do sistema educacional”.
Por sua vez, Frank Adamson, professor da Universidade do Estado da Califórnia - Sacramento (EUA), analisou como a privatização da educação funciona pelas lentes do neoliberalismo. Para isso, apresentou experiências educacionais de vários países e destacou como os processos de privatização impactam essas redes de forma semelhante, gerando desigualdades em sistemas dos Estados Unidos (exemplos de Oakland e Nova Orleans) e da América Latina (Chile). Ele usa a metáfora do fractal nessas análises – objeto geométrico com estrutura parecida em infinitas escalas, não importando se é visto do geral ou do específico. “Muitos em Oakland não sabem das ocupações estudantis em São Paulo que impediram o fechamento de escolas; e muitos em São Paulo provavelmente não sabem que Oakland também sofre com o fechamento de escolas em grande escala, com base nas mesmas ideias de eficiência que são parte dos processos neoliberais”, salienta.
Encerrando a primeira mesa, Camilla Croso, diretora da divisão de iniciativas da Open Society Foundations, também tratou da governança multissetorial e a classificou como um “fenômeno pouco estudado e problematizado”. “Quando a gente olha o papel do setor privado e corporativo dentro do multistakeholderismo, a gente não deve só olhar o número de assentos que tem do setor privado, mas também a proliferação desse setor em outras instâncias, e como o setor privado participa com outro ‘chapéu’, às vezes como ONG, às vezes como agência das Nações Unidas. E entender de fato como eles se transvestem, ou se fazem parecer, para que a gente possa compreender melhor essa influência, sem esquecer do âmbito local”, destacou Croso.
A influência da privatização na educação
A segunda mesa contou com Roberto Leão, trazendo uma perspectiva global dos trabalhadores da educação. O secretário de relações internacionais da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) ressaltou que cada vez mais esses projetos de privatização estão enriquecendo os ricos e, fazendo uma linha do tempo, mostrou que não é mais uma questão de suposto investimento filantrópico, mas investimento feito de forma proposital com o foco no lucro.
“Os investimentos dos fundos públicos de educação, ainda que consideremos que são poucos para a necessidade da educação, são muitos para a gula daqueles que querem se apropriar deles para aferir lucros. E cada vez mais a gente tem visto isso acontecer nos órgãos de governança global. E nós sabemos os interesses com que eles governam”, frisou Leão.
“Devemos construir uma nova governança global mais democrática e participativa.” Esse é um dos pontos centrais da apresentação de Marcelo Di Stefano, representante da Public Services International (PSI) e co-presidente da PSI Educação. Falando sobre ameaças aos serviços públicos, o argentino Di Stefano analisou a educação mundial após a Covid-19 e como a pandemia afetou ainda mais a influência do setor privado. “Existe um enfrentamento do poder corporativo dos organismos internacionais e um bloqueio das políticas progressistas. A pandemia nos desmobilizou e o cenário global foi ocupado pelo poder corporativo”, disse. Ele conclama os movimentos sociais do Sul Global a formarem uma aliança estratégica para combater as políticas privatistas e de austeridade fiscal.
David Archer, chefe de programas e influência do Secretariado Global da ActionAid e veterano ativista do direito à educação no âmbito internacional, examinou a Cúpula da Educação Transformadora, destacando a influência negativa da privatização em todos os setores, principalmente da educação, que prejudica o financiamento de forma sistêmica. “A gente nunca vai conseguir lutar contra a privatização de maneira efetiva se não barrarmos esses investimentos também em outros setores, como a saúde”, ressaltou.
Archer apontou que as avaliações de larga escala, tal qual a do Pisa (Programa Internacional para Avaliação de Alunos), feito pela OCDE, são um “atalho” para que políticos e tomadores de decisão privatistas não precisem cumprir o direito à educação a todas as pessoas plenamente, e possam ter uma imagem positiva em suas negociatas com a obtenção de resultados dos testes.
Para ele, a luta por justiça climática pode ser um motor para a urgência da concretização do direito à educação no mundo, com a possibilidade de maior pressão pela garantia de financiamento adequado.
María Ron Balsera, diretora de Programa do Centro de Economia e Direitos Sociais (CESR), também falou sobre as ameaças aos serviços públicos no pós-pandemia e afirmou que devemos parar de pensar que não existe dinheiro suficiente para financiar adequadamente a educação. “Precisamos de soluções sustentáveis. (...) Aumentar os recursos domésticos por meio de uma tributação progressiva para financiar os serviços públicos é o melhor jeito de melhorar a governança, aumentar o controle dos investimentos públicos e a participação popular. É a única forma de cumprir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”, afirmou.
Finalizando a segunda mesa do primeiro dia do seminário, Priscila Gonsales, pesquisadora e diretora-fundadora do Instituto Educadigital, discutiu a digitalização da educação na governança global. Priscila apresentou um cenário sobre o que é de fato a tecnologia (não apenas um dispositivo, mas uma rede de relações) e o uso dela na educação.
“Temos um olhar ultrapassado sobre o uso da tecnologia. Ele virou privatizado. [No passado], como a gente acessava qualquer tipo de conteúdo e de forma livre… Isso já não existe mais”, avisa a pesquisadora. Hoje, segundo Gonsales, há uma visão equivocada da educação estando a serviço dos produtos das grandes empresas, ditando como deve ser o uso de dados de estudantes – frequentemente, em serviços da inteligência artificial – para que eles se adaptem às necessidades impostas por uma suposta inovação.
“Há a ideia de que se deve sair do ‘se’ usar a tecnologia na educação para o ‘como’ usá-la. Não. Para a gente pensar em governança, a gente tem que pensar em ‘qual’ tecnologia e ‘por que’ usá-la”, concluiu Gonsales.
No fim de cada mesa, como aconteceu ao longo de todo o seminário, os especialistas responderam a diversas perguntas do público presencialmente e online. Convidamos a todos a assistir a todo o seminário no canal da Campanha no YouTube.
(Fotos: Campanha Nacional pelo Direito à Educação)
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