Setor privado limita garantia do direito à educação na primeira infância, diz Relatoria da ONU
A participação do setor privado na educação para a primeira infância "limita a realização de muitos direitos humanos àqueles que não podem pagar [por isso], fomentando divisões dentro da sociedade, em vez de repará-las".
Quem diz isso é Koumbou Boly Barry, Relatora Especial da ONU para o Direito à Educação até este ano, em novo relatório sobre o direito à educação na primeira infância que foi transmitido à Assembleia Geral da ONU, em setembro - último publicado em seu mandato.
A Campanha Nacional pelo Direito à Educação colaborou com análises e sugestões ao texto.
“A abordagem de conceber o status de direito à educação para a educação na primeira infância, que vai além da assistência e além do cuidado, é muito importante e é um debate que fazemos há muito tempo no Brasil, que reconhece a educação infantil como direito desde o nascimento e temos a educação obrigatória como responsabilidade do Estado em nossa Constituição no Brasil desde a pré-escola. Essa emenda constitucional foi aprovada em 2009 após nosso trabalho de advocacy como sociedade civil e avançamos muito em termos de diretrizes e conceitos dessa agenda aqui. Acho que o documento tem muito a contribuir nesse sentido” analisa Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha, uma das especialistas consultadas para aprofundamento do relatório.
A primeira infância no Brasil compreende o período do nascimento até os 6 anos de idade da criança. No Relatório, é usado o intervalo de zero a 8 anos, trazendo também os primeiros anos do ensino fundamental nessa perspectiva.
“Os Estados precisam reverter os altos níveis de inserção do setor privado na oferta [da educação na primeira infância] ao implementar progressivamente uma educação pública, livre e fundamentada nos direitos humanos”, aponta a Relatora.
Alguns dos direitos citados no relatório são a saúde, moradia e desenvolvimento pessoal, “bem como os direitos de brincar e de participar livremente da vida cultural e artística”. Esse quadro de direitos precisa estar de acordo com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4 (ODS 4, de educação) da Agenda 2030 da ONU.
Boly Barry alerta que o esforço na garantia desse direito não pode se restringir apenas aos potenciais benefícios econômicos que isso gerará aos países. “Esse é o começo de um processo que forja as identidades de vidas inteiras por meio do acesso a recursos culturais e da oportunidade de desenvolvimento pessoal”, ressalta Barry.
“O direito pleno à educação na primeira infância trata da oportunidade de cada criança em atingir o seu potencial, com total equidade, em vez de beneficiar apenas aqueles que podem pagar por isso.”
O texto destaca que, a nível global, o investimento em educação na primeira infância é geralmente inferior ao de outras etapas de ensino, apesar das evidências da sua importância para a educação e desenvolvimento das crianças.
Como resultado, a educação para a primeira infância continua sendo predominantemente oferecida pela iniciativa privada, tornando impossível o acesso a esse direito pelas crianças de famílias mais pobres, que são as que mais precisam. Por exemplo, aponta o texto, o gasto com educação para a primeira infância é 17% do consumo anual para os mais pobres em Gana, e 21% na Etiópia.
Os países pobres investem, em média, 2% do orçamento em educação na primeira infância, enquanto que os países ricos gastam 9%.
“No Brasil, além de termos o provimento da creche sendo realizado em taxas altíssimas pelo setor privado, ainda estamos distantes de uma legislação que regulamente a atuação do setor na educação”, comenta Pellanda, que escreveu artigo na revista da Fineduca em co-autoria com Barry, analisando a falta de regulação da legislação brasileira para esta etapa em termos de financiamento, em comparação com os Princípios de Abidjan.
Em 2021, o Governo Bolsonaro destinou menos de 1% do orçamento federal à primeira infância.
Embora não seja recomendada pela Relatoria, a participação privada na oferta dessa educação “tem o seu lugar”, mas deve seguir totalmente as obrigações ligadas aos direitos humanos instituídas nas leis locais e a “plena observação aos Princípios de Abidjan”.
Os Princípios de Abidjan são, conforme diz o seu título completo, princípios orientadores sobre as obrigações dos Estados em matéria de direitos humanos de fornecer educação pública e de regular a participação do setor privado na educação.
Esse marco regulatório internacional estabelece e esclarece a obrigação dos Estados de regulamentar os atores privados, de limitar a oferta privada suplementar que viole o direito à educação e de garantir que todas as pessoas envolvidas na educação estejam alinhadas com o objetivo comum de realizar o direito à educação.
A Campanha Nacional pelo Direito à Educação é apoiadora dos Princípios de Abidjan e participou da elaboração do documento junto de especialistas e representantes de organizações do direito à educação de todo o mundo em um processo que culminou com seu lançamento em fevereiro de 2019, em Abidjan, na Costa do Marfim. Na ocasião, participaram Daniel Cara e Andressa Pellanda, então coordenador-geral da Campanha e atual coordenadora geral da Campanha, em representação da entidade, e Fernando Cássio, professor da UFABC e atual membro do Comitê Diretivo da Campanha, integrando o grupo de especialistas que formulou a versão final do documento.
(Foto: Rodolfo Loepert/Prefeitura do Recife)