Posicionamento Público: O Fundeb em novo cenário – a pandemia da COVID-19

Campanha pede maior complementação da União, proteção do CAQ e aponta "armadilha para estados e municípios" com salário-educação

Considerando os efeitos da pandemia de COVID-19, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, em acordo com seu Comitê Diretivo composto por dez entidades (veja abaixo), anuncia posicionamento público sobre o novo cenário de votação da PEC 15/2015, a PEC que reformula o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação).

Com o objetivo de proteger o direito à educação, a Campanha pede maior complementação da União ao fundo, defende outras fontes para essa complementação e pede garantia para constitucionalização do parâmetro do Custo Aluno-Qualidade (CAQ). Entre outros pontos, o posicionamento também alerta para o risco orçamentário de programas essenciais como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), com o uso de recursos do salário-educação, em que não haveria complementação real de 20% e implicaria na extinção, ou significativa redução, de programas suplementares destinados à educação básica.

Leia o posicionamento abaixo e, também, em PDF.

 

Posicionamento Público

O Fundeb em novo cenário: a pandemia da COVID-19

Brasil, 12 de maio de 2020.

Posicionamento público sobre o cenário de votação do novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) considerando os efeitos da pandemia de COVID-19.

A rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação defende a votação do novo Fundeb, mas manifesta a necessidade imperativa de modificações no texto do Substitutivo de autoria da deputada Profa. Dorinha Seabra Rezende (DEM-TO), sob pena de gerar impactos drásticos no financiamento da educação básica, especialmente em programas sociais que se tornam ainda mais essenciais em um momento de crise sob os efeitos da pandemia de COVID-19, enfermidade decorrente da infecção pelo novo coronavírus.

Em posicionamento publicado no dia 20 de fevereiro deste ano, após a leitura de parecer do substitutivo na Comissão Especial do Fundeb na Câmara dos Deputados, a Campanha se manifestou  na defesa de que o novo Fundeb deve ser capaz de  1) universalizar o direito à educação, 2) valorizar os educadores, 3) melhorar as condições de ensino-aprendizagem nas escolas públicas de educação básica, 4) promover justiça federativa e 5) consagrar o princípio da exclusividade de aplicação de recursos públicos em escolas públicas.

O texto do Substitutivo ainda não converge com esses princípios pois, ao incorporar o salário-educação à complementação da União ao Fundeb, realiza, na prática, uma manobra, pois reduz os recursos necessários para a área e coloca em risco orçamentário programas essenciais, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), que nesse momento de pandemia, se torna ainda mais relevante, tendo em vista que seguirá sendo essencial para enfrentar os efeitos da COVID-19 após a quarentena, especialmente nas famílias em maior situação de vulnerabilidade, que estão ainda mais expostas ao desemprego, à pobreza e à fome. Há necessidade, inclusive, de torná-lo mais robusto, a fim de suplementar o decréscimo de recursos dos estados e municípios, já delineado como consequência da crise sanitária.

Em segundo lugar, no Substitutivo, a constitucionalização do Custo Aluno-Qualidade (CAQ) está pautada na equivocada expressão “condições indispensáveis de oferta”. Sem qualquer base técnica e jurídica, a expressão – em vez de colaborar – desqualifica e contradiz o conceito constitucional de padrão mínimo de qualidade, reforçado pela Emenda à Constituição 14/1996, que instituiu o Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério).

Em terceiro lugar, em vez de avançar na linha da verdadeira equidade, o relatório cede à pressão de parlamentares comprometidos com a reforma empresarial da educação e decide transferir recursos para redes públicas por meio da aferição de desempenho dos estudantes. No mundo todo, isso resultou em maior desigualdade entre redes e escolas públicas. Como solução para amenizar esse efeito, o texto constitucionaliza o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb), instituído no Plano Nacional de Educação (Lei 13.005/2014) por proposição da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e do Centro de Estudos Educação e Sociedade (Cedes), sediado na Universidade de Campinas. E embora a constitucionalização do Sinaeb seja um alento, ela não resolve o problema.

Ademais, a Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), integrante do Comitê Diretivo da Campanha, em notas publicadas em 01/03, 26/03, e 09/04, demonstra com inúmeras simulações os seguintes pontos:

1. A Complementação da União em 40%, patamar proposto na minuta de relatório de setembro de 2019, viabiliza uma média de valor por aluno mensal 26% superior ao estimado para o Fundeb em seu formato atual, contra apenas 10% de acréscimo neste indicador com a Complementação da União no patamar de 20%.

2. Com 40%, a distância entre o maior e o menor valor aluno ficaria em 3,7 vezes, contra 4,7 vezes com a complementação de 20%.

3. Em 2019, a contribuição do salário-educação distribuiu para a educação básica um montante de R$ 21,4 bilhões, destinando R$ 12,9 bilhões (60%) pela cota estadual e municipal e R$ 8,5 bilhões (40%) sob a gestão do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), por meio de programas suplementares.

4. As despesas com programas suplementares realizadas pelo FNDE, no período de 2014-2019, decresceram, no total, em R$ 3,34 bilhões ou 33,9%, mas destaca-se a redução de 

  • R$ 924 milhões, ou 18,9%, no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE); 
  • 61,9% no Programa Dinheiro Direto nas Escolas (PDDE) (R$ 1, 7 bilhão); 
  • 41,7% no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) (R$ 619,6 milhões a menos); e 
  • 13% no Programa Nacional de Apoio ao Transporte do Escolar (PNATE), mantendo o investimento em torno de 700 milhões de reais em 2018 e 2019. 

Desta forma, evidencia-se o corte dos investimentos do governo federal para os programas suplementares a estados e municípios, o que foi agudizado de 2018 para 2019 com um encolhimento de R$ 1,3 bilhão no conjunto dos programas;

5. Da forma como está a redação proposta no Substitutivo, há uma armadilha para estados e municípios: permite-se o uso da cota federal do salário-educação, mas assegura-se a permanência dos gastos nos programas. A conta não fecha: qualquer centavo utilizado da cota federal terá de ser extraído de programas já existentes destinados a estados e municípios. Será que prefeitos e governadores se aperceberam disso? 

6. É defendida a necessidade de outras fontes para a complementação da União, como a taxação das grandes fortunas (tributo previsto na Constituição brasileira de 1988, ainda não regulamentado), recursos da União de royalties, participação especial e fundo social do pré-sal, a cobrança de imposto de renda de pessoa física de juros e dividendos, assim como a revisão do pagamento da dívida pública, considerando que em 2020 está previsto o pagamento pelo Governo Federal de R$ 248,6 bilhões (conforme, Plano Anual de Financiamento da Dívida Pública 2020), montante que se equipara a toda a despesa de R$ 250 bilhões em educação básica dos governos estaduais, municipais e federal (valores estimados a partir dos conforme dados do Siope/FNDE e Finbra/STN referente aos anos de 2017 e 2018);

7. A destinação de uma fração da Complementação da União condicionada à melhoria de gestão; de evolução significativa dos indicadores de atendimento; e de melhoria da aprendizagem com redução das desigualdades é dispositivo de alcance duvidoso, pois, além de carecer de fontes de dados anuais para mensuração dos desempenhos no nível dos municípios, pode prejudicar as redes de ensino das localidades cujos estudantes têm situação socioeconômica mais desfavorável, o que vai na contramão da promoção da equidade. Além disso, diante de uma rede pública de educação básica de vultosas dimensões e de grande complexidade, é muito difícil vislumbrar a definição de critérios e de indicadores e a operacionalização de sistemas de registro que indicaria “melhoria” e “evolução significativa”.

8. Segundo o último relatório, um máximo de 30% da Complementação da União pode ser descontado do total de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino investido pelo governo federal. É o mesmo patamar do Fundeb atual. Se a Complementação dobrar (indo de 10% para 20%) no novo Fundeb, como proposto no último Substitutivo, é urgente que este percentual passe para um máximo de 15%, do contrário poderão ser usados recursos que hoje estão comprometidos com ações em andamento, especialmente na educação superior.

Diante do exposto, a Campanha defende:

1. a incorporação da “garantia de padrão de qualidade” na constitucionalização do parâmetro do Custo Aluno-Qualidade (CAQ), retirando-se a restrição para “condições indispensáveis de oferta”;

2. a necessidade de outras fontes para a Complementação da União, pois, com o uso do salário-educação, não haveria complementação real de 20%, além de implicar na extinção, ou significativa redução, de programas suplementares destinados à educação básica;

3. a destinação de 10% do valor do ICMS vinculado a cada fundo estadual, a serem distribuídos “com base em indicadores de melhoria nos resultados de aprendizagem e de aumento da equidade, considerado o nível socioeconômico dos educandos”, deve ter como parâmetro a perspectiva de auxílio aos municípios com maiores dificuldades educacionais identificados pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do ano anterior

4. os 2,5 pontos percentuais da Complementação da União que estão propostos na PEC como condicionados àqueles municípios e estados que “alcançarem evolução significativa dos indicadores de atendimento e melhoria da qualidade com redução de desigualdades” devem ser referenciados em indicadores que explicitem a ampliação de cobertura e a inclusão no atendimento, considerando-se a exclusão de milhões de crianças pequenas em creches e pré-escolas, crianças e adolescentes no Ensino Fundamental e Médio, e daqueles jovens e adultos que sequer completaram o Ensino Fundamental do acesso e permanência na escola; e que o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb), previsto no art. 11 do Plano Nacional de Educação, seja o parâmetro adotado para tais avaliações, garantindo as condições necessárias para a melhoria da qualidade na educação e  fortalecendo as instâncias de controle interno e externo dos poderes públicos e o controle social;

5. o limite dos recursos advindos da vinculação constitucional da União que poderiam ser utilizados para a complementação ao Fundeb deveria ser fixado em 15% e não nos 30% autorizados no Substitutivo à PEC 15/2015. Pois, ao contrário do que pode parecer, quanto maior esse limite, menor montante de recursos poderá ser destinado ao financiamento de programas que atualmente são mantidos com recursos federais.

Como rede da sociedade civil dedicada ao fortalecimento da democracia, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação permanecerá em seu contínuo exercício cidadão de pressão sobre as autoridades e de controle social, pautada em argumentos técnicos e proposição de alternativas.

Nesse momento de pandemia de COVID-19, em que as desigualdades sociais e educacionais tendem a se aprofundar, a resposta daquelas e daqueles comprometidos de fato com o direito à educação deve ser a aprovação de um Fundeb robusto, com a constitucionalização de parâmetros que garantam a qualidade e com investimento adequado para tal, sem para isso utilizar fontes de recursos que coloquem em risco outros programas essenciais, e sem permissibilidade com mecanismos de avaliação e distribuição de recursos que só pressionem por maiores disparidades socioeconômicas e educacionais.

Diante de todo o exposto e considerando que o texto ainda tem de ser aperfeiçoado na Câmara dos Deputados, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação defende a votação da PEC 15/2015, desde que sejam feitas as imprescindíveis alterações ao Substitutivo aqui apresentadas.

Assina o Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação:

Ação Educativa

ActionAid

Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (FINEDUCA)

Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF)

Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA-CE)

Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE)

Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (Mieib)

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)

União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme)

União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime)