Análises

O canto da sereia filantrópico: da sedução à privatização

A relação entre o discurso da ajuda filantrópica desinteressada e a noção de “filantropização via privatização”

A relação entre o discurso da ajuda filantrópica desinteressada e a noção de “filantropização via privatização”
 

Entre as agendas de trabalho e pesquisa do AGIPE – Atores e Grupos de Interesse em Políticas Educacionais está a análise crítica da presença cada vez maior de representantes do terceiro setor no campo da educação pública brasileira. Para citar apenas um caso recente, o processo de formulação da BNCC - Base Nacional Comum Curricular desvelou um certo protagonismo de diversas ONGs, instituições filantrópicas, fundações empresariais e movimentos sociais na disputa e formulação da política pública educacional nacional.

Para nós, pesquisadoras e pesquisadores dessa área, um dos mais interessantes desafios de trabalho é qualificar tal presença, sendo impossível colocar num único balaio o que denominamos de “terceiro setor”, composto por organizações com origens, formatos e interesses muito diversos. Em um campo tão heterogêneo, o que observamos, na prática, é a disputa entre novos atores, gestados e fortalecidos principalmente nas duas últimas décadas, e atores tradicionais do campo educacional, como sindicatos, universidades, organizações acadêmicas e o próprio professorado. 

Essa batalha, entretanto, não começa de forma justa: como, por exemplo, um movimento de base comunitária ou acadêmico conseguiria disputar o protagonismo da política pública com instituições empresariais de atuação nacional, que contam com robustos orçamentos, com apoio das elites econômicas e com ampla articulação política? Numa conjuntura extremamente complexa, em que os recursos financeiros, políticos e simbólicos se concentram ainda mais nas mãos de poucos grupos filantrópicos, a presença e participação de muitos outros segmentos acaba por ser invisibilizada, quando não totalmente inviabilizada. 

Por isso mesmo é preciso problematizar o senso comum – e ingênuo - de que a crescente participação dos mais diversos tipos de atores sociais na esfera da formulação da política pública traria, por si só, um ganho em termos de qualidade democrática, como já foi debatido neste espaço anteriormente. O que acontece, de fato, é exatamente o contrário. 

Para avançarmos neste debate, apresento algumas notas iniciais para análise da relação entre o discurso da ajuda filantrópica desinteressada e a noção de “filantropização via privatização”, bandeira inserida na agenda de financiamento da filantropia e que ainda é muito pouco discutida. 

Meu objetivo, neste breve artigo, é trazer para o debate uma ideia que se apresenta como alternativa de geração de fundos para o setor filantrópico e mapear seus possíveis impactos na tomada de decisão democrática e participativa sobre o acesso a fundos públicos. Trago também algumas pistas sobre possíveis desdobramentos na formulação de políticas educacionais. Meu ponto de partida analítico é uma narrativa discursiva filantrópica que prega uma “ajuda desinteressada”, mas que se materializaria em práticas pouco democráticas e participativas. É o canto da sereia filantrópico. 

“Ajuda” filantrópica desinteressada: do descrédito da coisa pública à privatização 
“Contribuir”, “ajudar” e “apoiar” são verbos muito utilizados por representantes de um segmento filantrópico específico - mais conhecido por “nova filantropia” - quando se trata de atuar com o poder público. Se no nível do discurso o tom é o de ajuda desinteressada embalada por uma suposta competência técnica quase asséptica, na prática o cenário é outro. 

Tais grupos assumem características de reformadores empresariais e passam a orientar suas ações considerando eventuais “janelas de oportunidade”, como também já foi explorado nesta seção e como vasta bibliografia aponta. Trata-se de um grupo filantrópico com origens no mundo corporativo, assentado no investimento de risco e de impacto, na lógica empresarial e cujas intervenções encontram lastro em uma suposta ideia de ineficiência da coisa pública, discurso que, por sinal, é pavimentado diariamente nos meios de comunicação de massa. 

A projeção e até mesmo a legitimação de iniciativas capitaneadas pela nova filantropia se apoiam em uma suposta descrença generalizada nos governos, cenário que abriria caminho para o crescimento do setor, considerado um campo com potencial de expansão no Brasil. A ineficiência e incapacidade do poder público em lidar com questões estruturais é vastamente ventilada e a título de exemplo trago a sinalização do IDIS – Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social, na sua publicação comemorativa de 20 anos:  

“A descrença na capacidade do governo de suprir as demandas sociais leva a população a assumir a responsabilidade por suas próprias necessidades e a fazer diferença em suas comunidades – um contexto extremamente fértil para a filantropia, para a transformação social e para o fortalecimento das organizações da sociedade civil. Este é um campo em desenvolvimento no Brasil e no mundo” (p. 113). 

No nível discursivo, portanto, o que observamos, é a reiteração da noção de “auxílio desinteressada” pavimentado pela ideia da descrença no governo: ora, se os problemas sociais são históricos e ainda mais agravados em razão da pandemia e da crise econômica que vivemos, como poderíamos solucionar esse quadro? A resposta para essa pergunta parece encontrar elementos nas atuais formas de articulação da filantropia aliada ao mercado. 

Um campo em expansão 
A noção da filantropia como campo em expansão não é nova e os dados do Censo Gife revelam o crescimento e segmentação do setor nos últimos anos. Aliado a um certo otimismo na potencialidade do setor, há alguns entraves que “impediriam o desenvolvimento da filantropia no Brasil”. A síntese em português do relatório “Filantropia no Brasil”, publicado em 2018, indica que “sob o atual governo a quantidade de dinheiro para causas sociais está diminuindo e a incerteza geral está dificultando o funcionamento de ONGs. Apesar disso, a maioria dos brasileiros ainda acha que o governo deveria prover quando se trata de questões sociais”. 

Ainda que o setor filantrópico seja um campo em expansão, o relatório  também aponta a relutância na doação tanto pessoal como empresarial como um dos fatores de risco para a sustentabilidade do setor, o que promoveria uma certa tentativa de inovação nas modalidades de captação. É nesse contexto que a tradução e publicação do livro “Filantropização via Privatização” (PtP), por iniciativa do IDIS, traz um elemento a mais para compreensão do campo da nova filantropia no país. 

Se para esses grupos a própria pandemia pode ser considerada uma “janela de oportunidade”, cenário que desvela um contexto propício para o crescimento ainda mais agressivo da privatização por desastre em toda América Latina, a própria agenda privatizadora dos atuais governos também passa a ser compreendida como uma brecha. É o que está imbricado na ideia de filantropização via privatização (PtP – do inglês Philanthropication through Privatization). Trata-se de um modelo que garantiria fundos robustos para o setor, garantindo condições de crescimento e sustentabilidade para as suas ações. 

A ideia do PtP é simples: trata-se de um projeto “concebido para explorar e promover as potencialidades para a criação ou reforço de fundos patrimoniais filantrópicos permanentes em países de todo o mundo a partir da captação de parte dos bilhões de dólares aplicados em operações de privatização em andamento nos diversos países, dedicando-a permanentemente para fins sociais culturais e ambientais com o intuito de fortalecer as instituições da sociedade civil” (p. 11). O projeto original é conduzido pelo Dr. Lester M Salomon, professor da John Hopkins University. 

O tema da PtP ganhou fôlego num contexto em que, no Brasil, a agenda econômica governamental envereda pela via da privatização e em que o descrédito da coisa pública e na política tem aumentado. O cenário também guarda correspondência na América Latina e foi ainda mais agudizado com uma das mais complexas e profundas crises econômicas e sociais que vivemos nos últimos 100 anos por conta da pandemia. 

Para os autores da publicação, ao apresentar casos de PtP em curso no mundo, “uma espécie de alquimia filantrópica está em curso, por meio da qual a privatização de ativos públicos ou quase públicos tem deixado como subproduto depósitos substanciais de ouro para a filantropia” (p.20). O que está proposto, na prática, é “uma série de transações em que os ativos essencialmente públicos ou quase públicos são transformados no todo ou em parte em fundos patrimoniais para fins filantrópicos sob o controle de instituições filantrópicas significativamente autônomas”, o que só seria possível, obviamente, se a agenda privatizadora estiver em curso (p. 51) e também se tivéssemos uma estrutura jurídica e legal facilitadora. 

Neste quesito, vale lembrar que a recente aprovação da criação dos Fundos Patrimoniais no país pode pavimentar o avanço da discussão sobre a PtP. Num espaço curto de tempo a Coalizão pelos Fundos Filantrópicos reuniu grupos filantrópicos empresariais, grupos advocatícios e captadores de recurso para o advocacy pela aprovação da Lei dos Fundos. 

Além da legislação facilitadora, para os defensores da proposta de PtP, a “necessidade de neutralizar a oposição à privatização” (p. 71) e a “presença de empreendedores e defensores da PtP” (p. 74) são considerados elementos facilitadores para avanço da agenda. 

Diante disso, não há que se negar que alguns debates importantes devem acompanhar a questão da Filantropização via Privatização. A primeira delas é problematizar o próprio modelo de privatização espraiado pela América Latina especialmente na década de 90 e contextualizar seu legado. Embora a própria publicação não questione o modelo de privatização em andamento, considerando-o como dado e inalterável, é importante, em termos de fortalecimento do debate público, discutirmos coletiva e democraticamente a questão. O segundo ponto é a concepção de quem e quais atores devem protagonizar e participar da política social: caberia ao Estado ou a grupos filantrópicos privados a execução de programas sociais? Por fim, é necessário apontar a necessidade de transparência e debate democrático sobre o acesso de grupos privados na gestão de fundos públicos. Daí a relevância de identificarmos a proposição e emergência de novos modelos de financiamento da nova filantropia que, sob pretexto de apoiar o poder público, encampa novas formas de privatização. 

De fato, o que observamos em nossas pesquisas e monitoramento da nova filantropia é, em âmbito geral, a diminuição da qualidade democrática e transparência na disputa pelo protagonismo da formulação da política pública e no que diz respeito à política pública educacional, em especial, sinalizamos riscos significativos na garantia do direito humano à educação. 

Apreender um campo de pesquisa tão heterogêneo demanda um esforço teórico que requer análise interdisciplinar e um corpo de pesquisadores de áreas complementares. Este é o esforço de pesquisa do AGIPE. 

Vanessa Pipinis
Vanessa Pipinis

É jornalista, mestre e doutoranda em Educação pela Faculdade de Educação da USP.