Análises

Nada vem de graça, nem o pão nem a cachaça: “bad civil society" e tirania no campo da educação

Texto inaugura série de artigos do grupo AGIPE – Atores e Grupos de Interesse em Políticas Educacionais

Texto inaugura série de artigos do grupo AGIPE – Atores e Grupos de Interesse em Políticas Educacionais

 

Quando olhamos para o campo da educação no Brasil, em relação aos atores e disputas que lhes são próprios, o que achamos afinal é uma transformação na predominância dos atores mais presentes e das pautas em enfoque. Esta mudança vem acontecendo desde a década de 1990 e se tornou evidente durante o processo de elaboração do Plano Nacional de Educação 2014-2024, principal política para a educação hoje. Representantes do terceiro setor, tais quais ONGs, fundações filantrópicas e movimentos sociais, assumiram protagonismo diante de atores tradicionais neste cenário, como as organizações acadêmicas e sindicatos.

Considerando que a expansão da participação social por diferentes grupos de interesse é um fator importante para a democracia, este fato é positivo. Afinal, quanto maior a participação de diferentes grupos, mais democrática é a política. Visto assim, o campo da educação e a chegada de novos participantes seria um exemplo de como a política nacional vinha consolidando os ideais democráticos sacramentados na Constituição de 1988.

Mas, como dizem, o diabo mora nos detalhes. Nem todos os novos participantes agem espontaneamente para realização de interesses altruístas. Ao contrário, muitos são representantes de fundações filantrópicas vinculadas às principais empresas e bancos nacionais e visam a concretização de uma agenda para os direitos sociais voltada a uma ideia de educação mais restrita, mais focada no seu pilar utilitário para o desenvolvimento que para a formação integral dos indivíduos, inclusive para a cidadania. Novamente, poderíamos considerar que estamos procurando pelos em ovos ou fazendo uma crítica com poucos fundamentos em vez de atentar para as grandes conquistas produzidas por estes novos participantes.

Permitam-me mais um ditado de botequim: nada vem de graça, nem o pão, nem cachaça. A presença desses atores tem inviabilizado a participação de muitos outros, especialmente por seu poder de influência e o modus operandi – a forma – que atuam. Digamos que é mais produtivo marcar jantares em restaurantes caros em vésperas e dias de votações importantes com aqueles que tomarão as decisões sobre os rumos da educação do que convocar suas redes para um boicote ou para o avanço de determinada pauta da política educacional.

A expansão da participação tem então, um efeito perverso, ou seja, nem sempre o associativismo produz resultados políticos democráticos. O conceito de “bad civil society”, apresentado em artigo por Simone Chambers e Jeffrey Kopstein (2001)[1], é uma possível chave interpretativa para analisar este cenário. Segundo os autores, algumas formas de associação não produzem um avivamento da democracia e uma consolidação dos direitos democráticos. Atuam de maneira a reduzir a influência de grupos menores – ou com menor poder econômico –, quando monopolizam redes de influência, ou militam por pautas que implicam na redução de direitos de determinados grupos.

Além desse conceito, a crítica ao modelo de participação predatório exercido pelos filantropos no campo da educação no Brasil pode ser interpretada através da teoria da justiça de Michael Walzer[2]. Embora o autor não se dedique a construir uma teoria sobre associativismo e participação, como é o caso do conceito de bad civil society, seu argumento é importante para compreender o atual cenário.  Walzer, ao construir sua teoria sobre justiça distributiva, defende a necessidade de uma “teoria dos bens”, compreendidos não a partir de um significado de origem natural, mas dos significados compartilhados e concebidos através de processos sociais. Os “bens sociais” estão enquadrados no contexto cultural e social de uma determinada comunidade e não são abstrações. A educação é um exemplo de bem social.

A grande questão proposta por Walzer é: como produzir uma justiça distributiva que considere as particularidades das sociedades? Essas distribuições só podem ser autônomas e, por isso, devem considerar o significado dos bens sociais. Ou seja, a distribuição de um determinado bem social, como a educação, a um indivíduo em função de um bem que possua, como o dinheiro, é uma distribuição injusta. A esse tipo de distribuição o autor conceitua como “predomínio”, que significa o rompimento das fronteiras entre as esferas distributivas produzindo o predomínio de um bem sobre outro.

O predomínio de um bem somado ao seu monopólio produz uma situação de dominação. O uso do monopólio de um bem para adquirir outros bens sociais é, segundo o autor, uma situação de tirania. Walzer recorda o conceito de Pascal de tirania que diz: “A tirania consiste em desejar poder, universal e fora de sua própria esfera”. Considerando que os bens sociais têm significados sociais e que devem ser regidos por princípios internos às esferas a que pertencem, ao converter um bem social em outro, sem que haja ligação intrínseca entre eles, - por exemplo, o dinheiro em educação, caso que estamos tratando aqui - é invadir a esfera apropriadamente governada por outro grupo. Portanto, o uso do poder político e econômico para ter acesso a outros bens é tirânico.

As duas noções, de bad civil society e tirania, permitem identificar que o uso do poder político que esses grupos detêm em outras esferas, relacionados a outros bens sociais, para ter influência sobre a esfera da educação é pernicioso para a saúde democrática. Esse é o caso de braços sociais de empresas e bancos que atuam na influência política em políticas educacionais. Esta reflexão tem por objetivo evidenciar que as relações entre os participantes do campo ou esfera da educação são díspares. E, principalmente, demonstrar que essa disparidade é oriunda da força que esses grupos e atores detêm em outras esferas de influência e como ao possuírem um bem social, como o dinheiro, atuam para ter influência em outras esferas, como a educação.

Este texto é produto de reflexão realizada por pesquisadores membros da rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que se dedicam a realizar uma releitura do campo educacional, compreendendo os atores e suas estratégias e expondo suas nuances. No âmbito da Campanha, esse grupo de trabalho e pesquisa se constituiu em 2019 e se denomina AGIPE – Atores e Grupos de Interesse em Políticas Educacionais.

Esse texto inaugura uma série de artigos produzidos a partir das pesquisas e reflexões do grupo. O objetivo desta coluna quinzenal é compartilhar e democratizar insigths e perspectivas de análise que têm surgido a partir da combinação de participantes de diferentes áreas de conhecimento, como as ciências sociais, a pedagogia e o direito, de forma que mais pessoas possam compreender quais os interesses e motivos por trás das reformas educacionais que temos vivido no Brasil e no mundo.

1. CHAMBERS, S.; KOPSTEIN, J. Bad civil society. Political Theory, Vol. 29, No. 6 (Dec., 2001), pp. 837-865. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/3072607?origin=JSTOR-pdf.
2. WALZER, M. Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

 

Marcele Frossard
Marcele Frossard

É doutoranda em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ, membro do Comitê Rio da rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e é consultora para a plataforma Cada Criança-100 Milhões no Brasil, coordenada pela Campanha.