Desigualdade em tempos de crise
Qual o papel da filantropia familiar e da elite econômica na educação?
Dando continuidade à série de análises publicada nesta seção, pretendo abordar uma questão controversa e complexa, que vem mobilizando cada vez mais pesquisadoras e pesquisadores na área da educação: a significativa presença de frações das elites brasileiras na agenda educacional nacional através da filantropia.
Meu objetivo, neste texto, é tratar de um tipo específico de elite: a elite econômica. E para construir essa linha de raciocínio é preciso olhar para o topo da pirâmide, ou seja, olhar para os mais ricos.
A pirâmide vista de cima
Afirmar que o Brasil é um país extremamente desigual não é nenhuma novidade. Tanto é que a presença das palavras “recorde” e “desigualdade” em uma mesma frase já causa pouca estranheza. Foi assim, de forma quase naturalizada, que recebemos a notícia de que a desigualdade de renda no país alcançou novo patamar recorde em 2018, desde que a série histórica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNADC) começou a ser divulgada, em 2012.
Em meio à crise econômica de mais longa duração da história do nosso país, os dados oficiais nos revelam que os 30% mais pobres viram seus rendimentos diminuir 3,2%, enquanto os ganhos do 1% mais rico aumentaram 8,4%. Trocando em miúdos, enquanto o 1% mais rico tem rendimento médio mensal de R$ 27.744,00 os 50% mais pobres sobrevivem com R$ 820,00 mensais per capita. Os dados oficiais nos comprovam o que a composição de Chico Science já reverberava: o de cima sobe e o debaixo desce.
A desigualdade fica ainda mais gritante quando colocamos nossas lentes de análise nos bilionários. Sobre esse grupo, em especial, as informações são escassas e o acesso limitado, afinal qual bilionário exporia sua rotina, sua fonte de renda e estratégias de acumulação de patrimônio sem reservas? Exato: nenhum.
A Revista Forbes, entretanto, nos dá algumas pistas para tirarmos uma fotografia da elite econômica do país. Em ranqueamento anual em 2019 a revista celebrou a inclusão de novos bilionários na sua seleta lista e manteve, durante todo o ano, um certo frisson em torno da disputa pelo primeiro lugar entre Joseph Safra e Jorge Paulo Lemann. Este último ainda detém o posto de homem mais rico do país, com patrimônio de R$ 104,71 bilhões.
Tanto a “disputa” pelo posto de “bilionário n.1” como seu resultado reverberaram em boa parte da imprensa nacional e a festa em torno da acumulação não foi ofuscada pelo atual cenário social, político e econômico em que a pobreza absoluta avança, fazendo com que 13,5 bilhões de brasileiros vivam com menos de R$145,00 por mês.
Bilionários com causa?
A edição especial n. 71 da revista Forbes nos apresenta alguns nomes e sobrenomes um tanto familiares: Lemann, Telles, Diniz, Moreira Salles, Marinho, Villela, Setubal, Maggi, Horn e Leal, por exemplo, integram os mais de 200 postos da elite econômica made in Brazil. Para além das suas trajetórias individuais de cada um dos bilionários ranqueados, o que me interessa neste momento é identificar o que esses indivíduos e suas famílias têm em comum. E um desses pontos é a filantropia: direta ou indiretamente esses grupos estão ligados a ações filantrópicas.
De acordo com o Relatório Filantropia no Brasil, produzido pela Alliance, Wings e Rede de Filantropia para a Justiça Social em 2018, o cenário para a filantropia familiar no Brasil é auspicioso, sendo o segmento que mais cresce entre as Organizações Não Governamentais (ONGs), muito em razão da inspiração das ações capitaneadas pela família Lemann.
Segundo levantamento do Censo Gife atualmente 22% dos seus associados são caracterizados como fundações e institutos familiares, sendo que 80% deles escolhe a Educação como prioridade para seu investimento.
Aproximadamente 60% dos respondentes do Censo investem em seus próprios projetos e entre as razões para tal escolha estão: desconfiança em relação a outras ONGs, desejo de exercer controle direto sobre recursos e abatimento em impostos. Com a crescente desigualdade e surgimento de novos bilionários no país, o Relatório Filantropia no Brasil também indica que ainda há um significativo espaço para a filantropia familiar se desenvolver, já que os valores envolvidos são considerados baixos.
Esses números são importantes para compreendemos o contexto da atuação da filantropia familiar na Educação, mas não dão conta de explicar a totalidade do fenômeno. Se há margem para maior destinação de recursos há também espaço para que essas famílias construam uma noção de legado, isto é, um conjunto de valores que passam de geração em geração e que tem como perspectiva a solução e envolvimento com problemas sociais. Mas, claro, sem esquecer o negócio: a filantropia familiar também é vista como alternativa para alavancar seu capital humano, social e financeiro, além de ser uma alternativa para aumentar a reputação do próprio negócio familiar.
Em tempos de crise e de crescimento da desigualdade social, ideias como inovação, aceleração, investimento de impacto e de resultados são associadas à noção de legado familiar e inseridas na agenda pública como receitas de sucesso para solução de problemas sociais e educacionais complexos.
A construção dessa agenda, por sua vez, tem sido objeto de trabalho para profissionais cada vez mais especializados: se nos EUA instituições que orientam construção do legado familiar já são muito comuns, no Brasil instituições com a mesma natureza começam a se consolidar. É um mercado que se abre e que apresenta consigo novas configurações para orientação e definição do investimento social privado.
É importante termos em mente que a crescente presença de grupos das elites brasileiras na esfera da sociedade civil envolve muitas nuances. Neste mesmo espaço já abordamos o conceito de bad civil society que nos ajuda a compreender que “algumas formas de associação não produzem um avivamento da democracia e uma consolidação dos direitos democráticos”. Pelo contrário.
Quando colocarmos em perspectiva o crescimento da presença de grupos filantrópicos familiares na esfera pública é possível identificarmos o que o pesquisador Stephen Ball denomina de “nova filantropia”, isto é, um movimento que guarda relação direta com uma nova forma de doação e/ou investimento por resultados, tendo por eixo o envolvimento direto de doadores em ações filantrópicas e comunidades políticas.
Esta “nova” filantropia seria caracterizada, entre outros elementos, pela prevalência da perspectiva empresarial sobre questões sociais complexas. Trocando em miúdos, problemas sociais e educacionais, que demandam soluções igualmente complexas e intersetoriais (inclusive envolvendo mecanismos de transferência de renda) tendem a ser compreendidos sob o prisma da lógica empresarial.
Trabalhos que avançam nesta perspectiva crítica tomam corpo em todo mundo. Nos Estados Unidos, por exemplo, temos todo o trabalho de análise feita por Megan E. Tompkins-Stange e Diane Ravitch, entre outros. Na obra “Vida e Morte do Grande Sistema Escolar Americano”, Ravitch analisa a presença de grupos filantrópicos no processo de construção do Common Core (uma espécie de Base Nacional Comum Curricular estadunidense) entre outras políticas públicas. Entre os grupos identificados, está a Fundação Bill e Melinda Gates.
Questionado sobre suas ações filantrópicas, em entrevista a Revista Forbes, Bill Gates, um dos filantropos de maior projeção internacional, problematizou o que seria uma certa dúvida em relação à filantropia dos bilionários e afirmou: “A filantropia está lá porque o governo não é muito inovador, não tenta iniciativas arriscadas e, principalmente, não dá espaço para pessoas com experiência no setor privado, e opta por grandes equipes para experimentar novas abordagens”. Segundo Gates, caberia à filantropia a ocupação de um espaço que, em tese, não seria ocupado – ou seria mal ocupado – pelo Estado.
Essa visão, bastante comum entre os filantropos de alta renda, traz um elemento importante para nossa análise: como Stephen Ball indica, esses atores estariam assumindo deveres sócio morais que até então seriam exclusivos de organizações da sociedade civil, de agências e entidades de Estado e governo. Dessa forma, as relações estabelecidas por e entre tais grupos garantiriam a eles a participação na esfera pública, seja incidindo na formulação e direcionamento das políticas públicas, seja no acesso aos fundos públicos.
Na nossa realidade, exemplos não faltam. Para ficar em apenas um deles, o Movimento pela Base, iniciativa organizada desde 2013 com objetivo incidir no processo de construção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), apresenta no seu quadro de apoio institucional 7 organizações ligadas a grupos familiares, além de uma organização empresarial e banco.
(Fonte: Reprodução da página movimentopelabase.org.br/quem-somos)
A aglutinação de movimentos e organizações específicas em torno da aprovação da BNCC é um dos movimentos que demandam atenção e esforço de análise por parte de pesquisadores e também por aqueles que defendem uma educação democrática, laica, inclusiva e pública, inclusive em sua gestão.
As aproximações entre todos esses grupos são repletas de camadas, mas é possível verificar posicionamentos no campo: de um lado a articulação entre movimentos empresariais, bancos, fundações e institutos familiares privados, e de outro, mas sem a mesma capacidade financeira e de mobilização de recursos simbólicos, órgãos representativos, sindicatos, especialistas, pesquisadores e principalmente o professorado. Ambos os polos configuram uma complexa teia que disputa a formulação e implementação de políticas públicas em educação no país.
A identificação desses cenários e a localização de cada um desses atores no campo são movimentos essenciais para a construção e consolidação de uma capacidade de efetiva disputa e proposição, já que até o momento a atual conjuntura nos revela que o topo da pirâmide segue ganhando cada vez mais espaço.
Por isso mesmo analisar as articulações e os interesses dos atores que hoje disputam o campo da educação, entre eles as organizações filantrópicas familiares, é uma das missões do grupo de trabalho e pesquisa AGIPE – Atores e Grupos de Interesse em Políticas Educacionais.
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Referências bibliográficas:
BALL, Stephen J. Educação Global S/A: novas redes políticas e o imaginário neoliberal. Ponta Grossa: UEPG, 2014.
É jornalista, mestre e doutoranda em Educação pela Faculdade de Educação da USP.