FUNDEB
A Campanha Nacional pelo Direito à Educação idealizou e coordenou o movimento “Fundeb Pra Valer!”. Esta articulação social e política, além de ter obtido amplas e reconhecidas vitórias de incidência sobre a Emenda Constitucional 53/2006, liderou a inédita intervenção da sociedade civil na tramitação da Medida Provisória (MP) 339/2006, que iniciou o processo de regulamentação do novo fundo da educação básica, finalizado pela aprovação da Lei 11.494/2007.
Fato inédito de incidência política na história da democracia brasileira –nunca as organizações e movimentos sociais tinham protagonizado mudanças em uma MP –, a vitoriosa incidência da rede na construção e elaboração do Fundeb foi reconhecida pelo Congresso Nacional com o agraciamento do Prêmio Darcy Ribeiro 2007, entregue à rede em solenidade ocorrida em 30 de outubro de 2007.
Elegendo focos
Com a consciência de que era preciso eleger um foco específico, objetivos claros e ações concretas, a Campanha Brasileira optou por atuar sobre um tema bastante árido e desconhecido no campo da educação no Brasil naquela época: financiamento, tendo como primeiro foco a derrubada dos vetos ao PNE 2001-2010 (Plano Nacional de Educação). A lei do Plano fora sancionada em janeiro de 2001, definindo um planejamento decenal para a educação no Brasil, com metas e responsabilidades a serem cumpridas pelos governos dos municípios, estados e União. O objetivo da Campanha era a derrubada de nove artigos do Plano vetados pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, sobretudo aquele que impede o comprometimento do poder público de elevar o investimento em educação para um mínimo de 7% do PIB.
A Campanha desenvolveu inúmeras ações visando à derrubada dos vetos, mas não foi bem−sucedida, embora tenha acumulado experiência e outras conquistas no decorrer dessa empreitada, tendo sido a principal delas a visibilidade ao PNE, que era desconhecido pela maior parte das entidades que trabalhavam com educação e a afirmação do financiamento como questão central para o campo educacional.
Naquela época, já entraríamos em quase dez anos de uma onda neoliberal que restringe os problemas da educação à questão da gestão, afirmando que não são necessários mais recursos, mas gestão eficiente. Pautando a questão do financiamento no PNE, a Campanha contribuiu decisivamente para trazer para uma parte da sociedade a visão de que a gestão é importante, mas não se esgota, pois são necessários mais recursos. A discussão do financiamento até hoje é pequena dentro do universo educacional, mas avançou muito e isso foi uma contribuição da Campanha. Mesmo nas universidades, poucos cursos têm disciplinas no campo do financiamento.
Outro foco no campo do financiamento foi a luta pelo cumprimento do valor por aluno pago pelo Fundef (Fundo do Ensino Fundamental). O Fundo foi criado por lei e entrou em vigor em 1998, mas não era devidamente complementado pelo governo federal, que tinha a obrigação de repassar mais verbas sempre que o valor mínimo a ser pago por aluno não fosse atingido. O descumprimento da Lei do Fundef pela União levou a Campanha a entrar com uma representação contra o governo federal junto à Procuradoria Geral da República em 22 de abril de 2004. Em 5 de maio de 2005, a Campanha protocolou, no Supremo Tribunal Federal, uma ADPF (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental) em função do descumprimento da lei do Fundef.
Nesse item, a Campanha também desenvolveu inúmeras ações, mas não conseguiu fazer com que a lei fosse cumprida. No entanto, vários ganhos e aprendizagens podem ser apontados no processo. O principal deles foi abrir o leque para atuar no campo da justiciabilidade. A Campanha passou a ser vista como uma rede que mobiliza, mas que também tem incidência junto ao judiciário. A gente conseguiu mobilizar organizações que nem participavam da Campanha, como a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), que assinou junto conosco a ação judicial que apresentamos ao STF.
Outra aprendizagem veio do erro. A Campanha Brasileira tentou desenvolver uma mini−campanha de popularização do tema, sob o slogan “Fonteles, e o Fundef?”. Naquele momento, pouca gente sabia o que era o Fundef, e muito menos quem era Fonteles. Claúdio Fonteles era o procurador−geral da República e, como tal, seria sua função apresentar o descumprimento de uma legislação por parte do governo federal. Mas a mini−campanha não surtiu os efeitos esperados, pois apenas um círculo muito pequeno de pessoas que já sabia dos dois assuntos poderia entender aquele slogan.
O movimento “Fundeb pra Valer!”
No dia 31 de agosto de 2005, uma “carrinhata” de carrinhos de bebês subiu a rampa do Congresso Nacional brasileiro e circulou pelos corredores daquela casa legislativa, com mães e crianças empunhando chocalhos, cartazes e faixas com o mote “Direito à educação começa no berço e é pra toda vida”, acompanhados por representantes da Campanha Brasileira pelo Direito à Educação e de outras redes e organizações do campo educacional, sindical, empresarial, feminista, além de deputadas(os) e senadoras(es) de vários partidos.
O grupo ocupou o hall principal do Congresso com um varal de fraldas pintadas em um ato público que teve “chocalhaço” e uma grande ciranda pela educação básica pública e de qualidade, exigindo, especificamente, que os deputados e as deputadas melhorassem o texto da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) que criaria o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação).
Esse foi o ato fundador do movimento “Fundeb pra Valer!”, liderado pela Campanha Brasileira pelo Direito à Educação e que reuniu diversas instituições e articulações da sociedade civil comprometidas com a educação pública. O movimento começou a ser concebido desde junho de 2005, quando o Poder Executivo Federal apresentou ao Congresso a proposta de criação do novo Fundo, com várias e graves limitações à expansão e à melhoria da qualidade da educação básica no Brasil. A Campanha influenciou o Fundeb desde as discussões sobre sua criação, em 2004, no MEC (Ministério da Educação).
Prêmio Darcy Ribeiro 2007
Desde então, a atuação do movimento “Fundeb pra Valer!” configurou−se como uma bem−sucedida ação de pressão política e controle social. Reunindo estratégias diversas, o movimento obteve conquistas significativas na tramitação e na criação no Fundeb, que se iniciou em março de 2004, com a discussão da proposta pelo MEC, e se concluiu em 30 de maio de 2007, com a aprovação da lei que regulamentou o novo fundo.
No dia 30 de outubro de 2007, em sessão solene no Salão Nobre da Câmara dos Deputados, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação recebeu a medalha de ouro do Prêmio Darcy Ribeiro, o mais importante prêmio concedido pela Câmara dos Deputados em nome do Congresso Nacional na área de educação, em reconhecimento por sua atuação e incidência política no processo de criação, tramitação e aprovação do Fundeb.
Estratégias de incidência
Entre as estratégias adotadas pela Campanha na operação do movimento “Fundeb pra Valer!”, merecem destaque a produção de pareceres técnicos, as ações de pressão sobre as autoridades, as atividades de mobilização social e a articulação com a imprensa. Em linhas gerais, o diferencial em relação a outros movimentos sociais de educação brasileiros foi a opção por não criar uma oposição global entre sociedade civil e Estado. Desde a apresentação da PEC do Fundeb pelo Governo Federal o movimento analisou o texto, formulou críticas e estratégias de incidência, nunca apresentando propostas substitutivas globais para a matéria, como era a tradição. Procurou, portanto, agir sobre pontos nevrálgicos do texto, como a exclusão das creches na proposta inicial, a determinação de uma contribuição da União ao fundo, o estabelecimento do piso salarial nacional dos profissionais da educação e a menção a um referencial de qualidade. Em todos esses pontos, obteve conquistas consideráveis.
A relação com as autoridades públicas foi subsidiada e legitimada por atos de mobilização inovadores (cirandas, fraldas pintadas, carrinhata, chocalhaço, entrega de bolas a parlamentares com a inscrição “Fundeb Já − Faça um Gol pela Educação”, durante a Copa do Mundo), concebidas a partir de uma mescla de intencionalidade político−comunicativa, alto grau de conhecimento técnico, humor e arte popular que geraram, nos ativistas, vontade de participar e pertencer ao movimento e ampliaram, perante comunicadores, a possibilidade de abertura de espaços nos veículos de comunicação.
Ao mesmo tempo, a Campanha era incansável na pressão sobre as autoridades, exercendo vigilância permanente sobre cada passo dado pelos Poderes Legislativo e Executivo no tocante ao Fundo. Nesse sentido, foi com grande intensidade e agilidade que produziu e enviou cartas, posicionamentos públicos, ofícios e outros documentos especialmente a deputados e senadores, além de ter realizado ações pontuais de pressão virtual (envio de mensagens que lotaram os correios eletrônicos do Congresso). Mobilização social inovadora e advocacy crítico e propositivo resultaram em compromissos públicos, principalmente, por parte dos parlamentares.
Destaca−se, ainda, entre as estratégias, a articulação político−institucional que caracterizou o movimento “Fundeb pra Valer!”, que soube reunir em torno de uma mesma causa atores sociais distintos, com interesses diferentes, certamente não sem tensões e conflitos.
A Campanha Nacional pelo Direito à Educação acredita que a construção do movimento “Fundeb pra Valer!” representou um importante passo rumo a uma articulação inédita, profícua e inovadora entre os movimentos e entidades de educação. As conquistas obtidas especialmente no Congresso Nacional durante a tramitação do Fundo e, na sequência, durante sua regulamentação, marcaram avanços significativos na relação entre o Poder Público e a sociedade civil e estão no marco da luta pela consolidação de uma nova democracia no Brasil, menos formal e institucional e mais densa, diversa e efetivamente cívica.