COP30: não basta saber ler sobre a crise climática, é preciso compreender quem por ela sofre e qual a posição dos que com ela lucram

Por Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, uma das organizadoras do estudo “Trilha da Educação para a Justiça Ambiental: a educação democrática como raiz de uma Educação Ambiental crítica e do enfrentamento à crise climática”.
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Lançamos, durante a Cúpula dos Povos e a COP30, o estudo “Trilha da Educação para a Justiça Ambiental: a educação democrática como raiz de uma Educação Ambiental crítica e do enfrentamento à crise climática”. Acesse o estudo aqui, e veja os debates do evento aqui.
“Assim, é preciso explicar aos que veem nossas imagens e ouvem nossas vozes de longe sem ainda compreendê-las: ‘Os Yanomami querem continuar a fazer dançar os espíritos. Não deixem que seja enviada até eles a gente de Deus que quer pô-los em fuga. Esses espíritos são deles. Eles os conhecem. Só eles sabem inalar o pó yãkoana a para chamá-los e fazer ouvir seus cantos’. (...) Que os xamãs deles continuem, portanto, a combater as doenças, que continuem a segurar o céu e a repelir o espírito da fome!”, nos ensina Davi Kopenawa.
Paulo Freire ensinou que não basta saber ler que ‘Eva viu a uva’, é também preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho.
E é no sentido de que todos estudantes possam compreender mais não só sobre os Yanomami - e todos os povos que protegem nossas águas, campos e florestas -, mas também o porquê da necessidade de mantê-los continuando a “fazer dançar os espíritos”, a “segurar o céu”, a “combater as doenças” e a “repelir o espírito da fome”, que propomos esse debate por uma educação ambiental crítica e sistêmica.
Trazemos, no livro, um novo olhar sobre a relação entre educação, meio ambiente e justiça climática, reforçando o papel da escola e da universidade como espaços-escola de adaptação, mitigação e transformação social diante da emergência climática.
Nosso esforço integra a agenda de direitos da Cúpula dos Povos, que pressiona a COP30 a firmar acordos ousados entre os países que protejam todas as pessoas – incluindo especialmente aquelas que estão em territórios vulnerabilizados – das consequências da crise climática. É nesse sentido que Maria Homem propõe, no prefácio do livro: “cuidar da nossa casa comum, o planeta Terra, com sua diversidade, construída pacientemente ao longo de milhões, bilhões de anos. É o momento de trabalhar para ampliar a consciência para que este novo paradigma [da igualdade nas diversidades] se torne uma verdade para todos”.
A educação ambiental crítica precisa ser priorizada como política transversal e reconhecer a escola como infraestrutura de, mais que resiliência, de resistências comunitárias (abrigo, informação, coordenação local). Promover Educação Ambiental crítica é colocar em prática algo muito diferente de campanhas pontuais ou de atividades em datas comemorativas.
Ela vai além do “plantar uma árvore” uma vez por ano ou do “fazer coleta seletiva” em uma semana específica. Seu papel inclui articular ciência e saberes tradicionais, analisar estruturas de poder e as cadeias produtivas que causam degradação ambiental, denunciar o racismo ambiental e propor mudanças em políticas e práticas escolares e comunitárias.
Segundo o Informe Especial sobre Emergência Climática e Direitos Humanos nas Américas (CIDH/REDESCA), de 2025, na América Latina, 169 milhões de meninas e meninos vivem em áreas com pelo menos dois riscos climáticos e/ou ambientais; 47 milhões (1 em cada 4) vivem sob quatro ou mais riscos. Todos os anos, 40 milhões têm a escolarização interrompida por eventos extremos, com efeitos cumulativos em evasão, saúde mental, insegurança alimentar e violência, especialmente para meninas e grupos racializados.
As posições recentes da Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação (Clade) e do Grupo Regional de Educação para América Latina e Caribe (GRE-LAC) reforçam que a educação deve assegurar continuidade em crises, formação docente, infraestruturas resilientes e participação efetiva das populações em situação de vulnerabilidade nas decisões, deslocando a educação do plano do adorno para o centro da resposta.
O material reforça que enfrentar a crise climática exige redistribuição de poder e voz, reconhecendo comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas e periféricas como lideranças dos caminhos para a proteção dos biomas.
A “trilha” proposta é tanto pedagógica quanto política: convoca a educação brasileira a se colocar no centro da justiça ambiental e a repensar currículos, infraestruturas e processos participativos à luz da emergência climática.
Nada disso se sustenta sem direitos e sem democracia. A educação é o espaço onde podemos aprender a reconstruir o planeta juntos, com justiça, escuta e participação.
Um mapa coletivo para a justiça ambiental
Ondas de calor, enchentes e queimadas interrompem aulas e agravam desigualdades, atingindo sobretudo crianças, adolescentes e grupos historicamente vulnerabilizados.
O estudo configura-se como um “mapa coletivo”, construído para apoiar escolas, universidades e comunidades a reconhecer e enfrentar os desafios impostos pela crise climática, que afeta diretamente a garantia do direito à educação a todas as pessoas.
Veja as recomendações do estudo, abaixo.
RECOMENDAÇÕES
PODER LEGISLATIVO
1. Aprovar um novo Plano Nacional de Educação (PNE) 2024-2034 ousado e com metas vinculantes: Incorporar as propostas da sociedade civil, em especial o Objetivo 19 dedicado à Educação Ambiental e Qualidade de Vida, com metas para formação de professores, infraestrutura escolar resiliente e inclusão da dimensão climática e de justiça ambiental de forma transversal em todos os níveis de ensino.
2. Constitucionalizar o Custo Aluno-Qualidade (CAQ) adequadamente: Garantir o financiamento necessário para que todas as escolas públicas tenham infraestrutura adequada, incluindo itens essenciais para a justiça ambiental, como áreas verdes, saneamento básico, acesso à água, eficiência energética e sistemas de captação de água da chuva, entre outros.
3. Acompanhar a implementação do Sistema Nacional de Educação (SNE): com o SNE já aprovado, o desafio passa a ser o de monitorar sua efetiva execução e assegurar que o regime de colaboração entre União, estados e municípios funcione de modo articulado, democrático e territorialmente sensível, integrando políticas educacionais, inclusive as de enfrentamento à crise climática, às realidades de cada bioma e contexto local.
4. Rejeitar propostas que representem retrocessos: Combater projetos de lei como os de autoria da bancada do agronegócio que buscam influenciar currículos e materiais didáticos (ex.: “Escola Amiga do Agro”), entre outras políticas educacionais; e revogar leis desfavoráveis ao meio ambiente, como o “PL da Devastação”.
5. Fortalecer marcos legais existentes: Assegurar a plena implementação da Política Nacional de Educação Ambiental (Lei 9.795/1999) e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental, utilizando as atualizações da Lei 14.926/2024 como diretrizes para a ação parlamentar.
PODER EXECUTIVO
1. Priorizar o financiamento educacional e ambiental: Destinar recursos orçamentários robustos e estáveis para implementar o CAQ e as metas do novo PNE, assegurando que as verbas para educação ambiental e adaptação climática nas escolas sejam prioridade.
2. Implementar políticas intersetoriais: Articular as pastas de Educação, Meio Ambiente, Saúde, Assistência Social, Defesa Civil e Direitos Humanos para criar programas integrados que:
• Desenvolvam planos de contingência nas escolas para situações de emergência climática.
• Promovam a formação continuada de professores em educação ambiental crítica e mudanças climáticas.
• Identifiquem e priorizem investimentos em infraestrutura verde e resiliente nas escolas localizadas em áreas de risco e com maior vulnerabilidade socioambiental.
3. Fortalecer a gestão democrática: Fomentar a participação efetiva de estudantes (por meio de grêmios e coletivos), famílias, comunidades e profissionais da educação na elaboração e monitoramento dos Projetos Político-Pedagógicos (PPPs) das escolas e dos Projetos Pedagógicos Institucionais (PPI) da universidade, garantindo que a justiça ambiental seja um eixo estruturante.
4. Proteger e valorizar os saberes tradicionais: Criar programas e editais específicos, inclusive nas universidades, que reconheçam e financiem experiências de educação ambiental crítica lideradas por povos indígenas, comunidades quilombolas, assentamentos da reforma agrária e populações tradicionais, tratando-as como referências nacionais.
5. Incentivar a produção de materiais didáticos críticos: Orientar o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e outras políticas de material educativo a incorporarem pautas como racismo ambiental, justiça climática, agroecologia e saberes tradicionais, com revisão crítica de conteúdos que perpetuem visões distorcidas ou superficiais sobre a questão ambiental.
ÓRGÃOS DE CONTROLE E JUDICIÁRIO
1. Fiscalizar o cumprimento da legislação: O Ministério Público, os Tribunais de Contas e as Controladorias-Gerais da União, Estados e Municípios devem monitorar ativamente a implementação da Política Nacional de Educação Ambiental, a aplicação dos recursos do Fundeb e a consecução das metas do PNE, com foco na garantia de infraestrutura escolar adequada e no enfrentamento das desigualdades.
2. Agir contra omissões e retrocessos: Atuar para responsabilizar os entes federados por descumprimento de leis e políticas de educação ambiental, inclusive por meio de ação civil pública, quando houver falha na proteção de escolas em áreas de risco ou na garantia de continuidade do ensino durante emergências climáticas.
3. Garantir a priorização orçamentária: Assegurar, por meio de decisões judiciais e pareceres técnicos, que os orçamentos públicos destinem recursos suficientes para a educação, com base no CAQ, vetando contingenciamentos ou desvios que comprometam o direito à educação de qualidade e resiliente ao clima.
4. Proteger comunidades e educadores: Atuar com celeridade para coibir perseguições e violências contra professores, comunidades escolares e povos tradicionais que atuam na defesa do meio ambiente e de uma educação crítica, garantindo a liberdade de ensino e a segurança desses atores.
5. Incorporar a perspectiva de justiça climática e interseccionalidade: Os operadores do direito devem utilizar os conceitos de racismo ambiental e justiça climática em suas decisões, reconhecendo a vulnerabilidade diferenciada de crianças, adolescentes e populações negras, indígenas e periféricas aos impactos ambientais, e determinando medidas reparatórias e protetivas específicas.
PARA CIDADÃOS E COMUNIDADE ESCOLAR
(Estudantes, Famílias, Educadores e Pessoas Individuais)
1. Mobilizar-se no território da escola e da universidade:
a. Participar ativamente da construção do Projeto Político-Pedagógico (PPP) e da escola e no Projeto Pedagógico Institucional (PPI) da universidade, exigindo que a justiça ambiental e climática seja um eixo central, com temas como racismo ambiental, mudanças do clima e sustentabilidade sendo tratados de forma transversal em todas as disciplinas.
b. Envolver-se nos conselhos escolares e universitários e incentivar a criação e o fortalecimento de grêmios estudantis, coletivos, e centros e diretórios acadêmicos, pressionando por uma gestão verdadeiramente democrática e participativa.
2. Exercer a participação e o controle social:
a. Estudantes: Engajar-se em projetos de transformação, como os incentivados pelo Criativos da Escola, criando soluções para problemas socioambientais da comunidade. Participar de coletivos juvenis e estudantis e usar as redes sociais para pautar a crise climática e cobrar ações de gestores públicos.
b. Familiares e Responsáveis: Acompanhar a vida escolar, cobrar das secretarias de educação a implementação de infraestruturas verdes (como hortas, captação de água da chuva e arborização) e a existência de planos de contingência para emergências climáticas.
c. Educadores: Buscar e promover formações em educação ambiental crítica, incorporando essas perspectivas em suas aulas e práticas pedagógicas. Denunciar casos de censura, perseguição ou desmonte das políticas educacionais.
3. Engajar-se no controle social e na política:
a. Acompanhar o trabalho de legisladores (vereadores, deputados, senadores) e cobrar posicionamento e votos favoráveis a um PNE robusto, ao CAQ e a leis que fortaleçam a educação ambiental e o enfrentamento da crise climática.
b. Participar de audiências públicas, conferências livres e consultas públicas sobre educação e meio ambiente, garantindo que a voz das comunidades mais afetadas seja ouvida.
c. Participar de redes e organizações da sociedade civil, como a própria Campanha Nacional pelo Direito à Educação - saiba como aqui.
4. Agir localmente e multiplicar saberes:
a. Promover ações concretas na sua casa, prédio, bairro e comunidade, como mutirões de plantio de árvores, criação de hortas comunitárias, compostagem e campanhas de conscientização sobre consumo e resíduos.
b. Compartilhar informações confiáveis e combater a desinformação sobre racismo ambiental e crise climática em seus círculos sociais, valorizando os saberes tradicionais e locais.
FICHA TÉCNICA DO ESTUDO
Trilha da Educação para a Justiça Ambiental: a educação democrática como raiz de uma Educação Ambiental crítica e do enfrentamento à crise climática
Organização e pesquisa: Andressa Pellanda, Danielle Bambace e Marcele Frossard
Colaborações de especialistas: Alva Rosa, Avanildo Duque da Silva, Carlos Alberto Marques, Dionara Soares Ribeiro, Katerina Volcov, Letícia Carneiro, Luana Pommé Ferreira da Silva, Maria Homem, Priscila Gonsales, Rosana Gemaque Rolim, Salomão Antônio Mufarrej Hage e Valter de Jesus Leite