Leia a Carta à Sociedade Brasileira sobre o segundo Parecer ao PL 2614/2024 do novo Plano Nacional de Educação

Moses Rodrigues e Tábata Amaral não aceitam emendas ao PNE sobre 10% do PIB para a educação pública, entre outras

 

Carta à Sociedade Brasileira sobre o segundo Parecer ao PL 2614/2024 do novo Plano Nacional de Educação 

Moses Rodrigues (União/CE) e Tábata Amaral (PSB/SP) não aceitam emendas ao PNE sobre 10% do PIB para a educação pública, fator amazônico, não retrocesso a direitos humanos, desmilitarização, superação do racismo estrutural e ambiental, a educação para prevenção ao abuso sexual, entre outras; e incorporam propostas que aprofundam privatização da educação (PDF)

 

Belém, 10 de novembro de 2025.

É com profunda preocupação que alertamos sobre os rumos do processo de construção do novo Plano Nacional de Educação (PNE) neste processo do segundo Substitutivo apresentado pela Comissão Especial. A abertura para a apresentação de emendas ao substitutivo do PL 2614/2024, embora em tese um mecanismo democrático, revelou-se, na prática, uma etapa de legitimação de um texto previamente fechado, onde contribuições da sociedade civil organizada, de especialistas e de instituições educacionais importantíssimas foram sumariamente rejeitadas.

O paradoxo e a grave inconsistência técnica e jurídica residem na justificativa empregada para a exclusão de centenas de propostas: a alegação de “inconstitucionalidade”. Tal argumento, no entanto, demonstra-se frágil e equivocado quando confrontado com o conteúdo das emendas rejeitadas, muitas das quais, em realidade, buscam precisamente adequar a linguagem e as estratégias do PNE ao arcabouço legal vigente, incluindo tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, a Constituição Federal de 1988 e a legislação infraconstitucional.

Dentre as rejeições, destacam-se a previsão de aumento do financiamento público exclusivamente para a educação pública, o alinhamento explícito com a recentemente aprovada Lei do Sistema Nacional de Educação (SNE), especialmente no que tange à implementação efetiva do Custo Aluno-Qualidade (CAQ); a priorização de programas de fortalecimento da educação superior pública em detrimento de subsídios ao setor privado; a incorporação do fator amazônico como critério de equidade; a garantia explícita do princípio de não retrocesso em direitos humanos; a desmilitarização das escolas, conforme recomendação formal do Comitê de Direitos das Crianças da ONU ao país; e a superação do racismo estrutural e  ambiental; a educação para prevenção ao abuso sexual; entre outras.

Diante do exposto, esta introdução serve como um alerta solene: o atual texto em tramitação não apenas omite consensos fundamentais da área educacional, mas, ao fazê-lo, afasta-se de seu propósito maior de ser um plano ousado, inclusivo e constitucionalmente alinhado, capaz de guiar o Brasil na superação de suas históricas desigualdades por meio de uma educação pública de qualidade socialmente referenciada.

Listamos, abaixo, os principais pontos de avanços, potenciais retrocessos e o que foi, inadmissivelmente, rejeitado:

Inclusões novas ao texto que apresentam avanços conceituais e de mérito:

- adequação do PNE à nova Lei do Sistema Nacional de Educação no que tange os sistemas de avaliação;

- acesso a materiais para jogos e esportes na educação básica, desde a educação infantil;

- valorização, formação e condições de trabalho para todas as profissionais da educação infantil, inclusive auxiliares;

- garantia de matrícula, permanência e certificação nos ensinos fundamental e médio regulares para adolescentes e jovens em cumprimento de medida socioeducativa;

- garantia da implementação da Educação Ambiental e da Lei 11.645/2008 nos ensinos fundamental e médio;

- educação em tempo integral sendo harmonizada na linguagem para educação integral em tempo integral;

- garantia de monitoramento e avaliação das políticas de educação integral em tempo integral;

- estímulo à formação de profissionais da educação básica para a integração de forma segura, responsável, ética, crítica e criativa das TDICs ao processo de ensino-aprendizagem, e seleção e avaliação de soluções digital com parâmetros de segurança e proteção de dados, com aquisição de ferramentas não discriminatórias;

- fomento de produção de soluções digitais, preferencialmente públicas, livres e abertas (apesar da inclusão do “preferencialmente”);

- preservação do Objetivo 8, novo, sobre Educação Ambiental e Sustentabilidade Socioambiental, alinhando explicitamente à Política Nacional de Educação Ambiental e às diretrizes curriculares do Conselho Nacional de Educação;

- abertura da aplicação dos recursos do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima no desenvolvimento de ações de educação ambiental e de enfrentamento às mudanças do clima nas instituições públicas de ensino;

- instituição de diretrizes curriculares nacionais para a formação inicial e continuada de professores com ênfase na educação especial na perspectiva inclusiva e na educação bilíngue de surdos;

- busca ativa de jovens, adultos e idosos para fins de levantamento de demanda, assim como campanhas de comunicação para estímulo à matrícula;

- estímulo à internacionalização da pós-graduação;

- inclusão explícita do CNPq entre as entidades a terem ampliada atuação articulada;

- inclusão explícita da Lei nº 14.644, de 2 de agosto de 2023, dos Conselhos Escolares como referência para a meta 18b; e

- garantia, até o final do terceiro ano de vigência deste PNE, as condições mínimas de infraestrutura de funcionamento e salubridade de todas as instituições públicas de educação superior, com vistas à superação de situações críticas.

Inclusões novas ao texto que apresentam riscos potenciais de retrocessos:

- estabelecimento de índice de qualidade para a educação infantil, caso possa abrir margens para avaliação de aprendizagem na etapa;

- restrição da consideração de diversidades territoriais, de raça/cor, de nível socioeconômico nas metas de alfabetização e aprendizagem em matemática para o genérico “desigualdades educacionais”;

- elaboração e seleção de materiais didáticos para a educação básica tem a nova afirmação de assegurar “qualidade de seu conteúdo” e prevenção de “disseminação de erros factuais”, aparentemente adequado, mas reproduzindo preocupação e discurso do lobby do agronegócio ao PNLD; e

- educação digital somente alinhada à BNCC, simplista em termos de direitos digitais.

Proposições de emendas que não foram aceitas, sem justificativa plausível:

Transversal a vários artigos e objetivos:

- adequação do PNE à nova Lei do Sistema Nacional de Educação no que tange o Custo Aluno Qualidade;

- regulação da oferta pelo setor privado;

Entre as diretrizes:

- aumento do investimento público em educação pública;

- planejamento educacional com ênfase na promoção de avaliações institucionais e autoavaliações participativas;

- superação do racismo;

- pluralidade no debate educacional de acordo com premissas científicas, em acesso amplo à cultura, ao pensamento, à arte e ao saber;

Sobre o Inep:

- garantia de financiamento e infraestrutura, inclusive de quadros técnicos adequados;

Sobre o Programa Nacional de Infraestrutura Escolar:

- avanços a patamares superiores de infraestrutura seguem condicionados unicamente a resultados de acesso e rendimento escolar;

Sobre princípios do PNE:

- inclusão do princípio de vedação de retrocesso em direitos humanos (art 5º, caput e XXXVI, da Constituição Federal de 1988)

Educação Infantil:

- expansão de 50% da oferta nas redes públicas;

- regulação da oferta pelo setor privado;

- supressão da possibilidade de multietapas;

- educação para a prevenção e enfrentamento do abuso sexual infantil;

- inclusão da educação infantil nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Indígena, garantindo as especificidades culturais e sociais dos respectivos povos e etnias em seus territórios;

Ensino Fundamental e Médio:

- qualidade do ensino em todas as áreas do conhecimento;

- propostas curriculares e pedagógicas adequadas para o atendimento socioeducativo;

- garantia de que as matrículas do ensino médio com educação profissional sejam na forma integrada;

- educação para a prevenção e enfrentamento do abuso sexual infantil;

- qualificação da avaliação da educação básica, incluindo todas as áreas do conhecimento e componentes curriculares, assim como a amplitude de dimensões – cognitivas, emocionais, artísticas, científicas e tecnológicas;

Educação Integral:

- complexificação das dimensões do mundo do trabalho para além do “empreendedorismo”, que segue sendo a única explicitamente citada;

TDICs e Educação Digital:

- integração pedagógica das TDICs e que sirvam também ao exercício pleno da cidadania, inclusive digital;

- garantia de estratégias pedagógicas com atenção especial à garantia dos direitos humanos e do bem comum, e às relações entre as tecnologias e a cidadania;

- construção de plataformas educacionais digitais e de inteligência artificial nacionais, abertas, livres, seguras, éticas, responsáveis na educação garantindo-se fins pedagógicos, sem substituição da educação presencial;

Educação Ambiental e Sustentabilidade Socioambiental:

- enfrentamento ao racismo ambiental por meio de ações educacionais;

Educação Escolar Indígena, Educação do Campo e Educação Escolar Quilombola:

- garantia da oferta de educação de jovens, adultos e idosos na educação do campo, escolar indígena e quilombola;

- direito ao multilinguismo e à interculturalidades nas escolas indígenas, garantindo permanência, qualidade, conclusão da educação básica e o fortalecimento das identidades culturais e o bem-viver dessas populações;

- ampliação de oferta de cursos de doutorado para estudantes e profissionais da educação dessas populações;

- seleção de profissionais em concursos provenientes das comunidades respectivas, preferencialmente formados na interculturalidade indígena, educação do campo e pedagogia da terra, respectivamente;

- obrigatoriedade da participação de representações desses povos nos Conselhos de Educação, de Alimentação Escolar e de Acompanhamento e Controle Social do Fundeb;

Educação Especial na Perspectiva Inclusiva:

- supressão da possibilidade de diversificação das formas do AEE, para além do contraturno, para atendimento também no turno da escolarização;

Educação de Jovens, Adultos e Idosos:

- expansão do atendimento das matrículas em EJAI para mais de 20% da população com 18 anos ou mais que não concluiu a educação básica;

- admissão por concurso para profissionais da EJAI, garantindo condições de trabalho, carreira, valorização e lotação em uma única escola;

- garantia de salas de acolhimento com profissionais qualificados para os filhos de mães, pais ou responsáveis que estudam na EJAI;

- fortalecimento do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), com recomposição orçamentária;

Educação Profissional e Tecnológica:

- garantia de matrículas da educação profissional prioritariamente na forma integrada;

- aumento de garantia de expansão no segmento público de 50% para 80%;

- regulação da oferta pelo setor privado;

- expansão prioritária em instituições públicas;

- restrição dos incentivos governamentais e parcerias com instituições privadas credenciadas, inclusive em oferta de cursos de maior complexidade e alto custo;

- restrição do financiamento estudantil para cursos nas redes privadas;

- abrangência dos referenciais de qualidade e sistema de avaliação também na Formação Geral Básica quando articulada ao Ensino Médio;

- garantia de participação de instituições formadoras públicas – e não públicas ou privadas, como está hoje na redação – para participação na comissão tripartite;

- complexificação das dimensões do mundo do trabalho para além do “empreendedorismo”, que segue sendo a única explicitamente citada;

Ensino Superior e Pós-Graduação:

- aumento do acesso da população de 18 a 24 anos com acesso à graduação de 40% para 50%;

- reavaliação do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), de forma a garantir que recursos públicos sejam direcionados para o investimento em educação superior pública, com ampliação do acesso, interiorização, permanência, qualidade e conclusão;

- promoção de cursos superiores em alternância por meio do Procampo e do Pronera;

- regulação da oferta pelo setor privado;

- ampliação dos incentivos para acesso e permanência dos professores da educação básica na pós-graduação das IES públicas, em articulação com as redes de ensino;

- ampliação da oferta de pós-graduação stricto sensu em regime de alternância;

- promoção de bolsas de mestrado e doutorado para programas de pós-graduação para docentes e egressos da educação do campo, escolar indígena e escolar quilombola;

Formação e Valorização dos Profissionais da Educação:

- equiparação do rendimento médio dos profissionais do magistério de nível superior  a um Salário-Mínimo Necessário calculado pelo Dieese até o quinto ano do PNE;

- aumentar de 70% para 90% dos profissionais do magistério e profissionais da educação com vínculo estável;

- fortalecimento da iniciação à docência com menção explícita ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID-CAPES);

- não explicitação da necessidade de regulamentação do piso salarial e instituição de planos de carreira para profissionais da educação que são muitas vezes invisibilizados como os que exercem suporte pedagógico à docência, administração, planejamento, supervisão, inspeção e orientação educacionais, assim como para os das funções de suporte técnico e administrativo, nos termos da Lei 12.014/2009;

- garantia de módulos obrigatórios sobre educação para as relações étnico-raciais em cursos de formação inicial e continuada de profissionais da educação;

Participação, Controle Social e Gestão Democrática da Educação:

- adequação da seleção de diretores de escola em processos públicos, democráticos e transparentes em vez de critérios meritocráticos;

- garantia de financiamento público regular e contínuo para o funcionamento de fóruns de educação;

- garantia de grêmios estudantis em todas as escolas públicas de ensinos fundamental e médio;

- desmilitarização de escolas públicas, com promoção do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, em consonância com as recomendações do Comitê sobre os Direitos da Criança da ONU;

- adequação da terminologia, de “projeto pedagógico” para “projeto político-pedagógico”;

- fomento à criação de comitês ou conselhos de equidade racial nas escolas e redes de ensino;

- garantia de financiamento por aluno sensível para a implementação da educação escolar indígena, quilombola e da educação antirracista;

- garantia de incrementação da complementação da União via VAAT-CAQ;

- garantia explícita do fator de custo adicional amazônico; e

-  fontes explícitas de financiamento público da educação pública.

Diante do exposto, concluímos este alerta reafirmando que a supressão de debates fundamentais e a exclusão de pautas estruturantes representam um grave risco de descaracterização do PNE como instrumento de transformação social.

Depositamos, contudo, nossa esperança nos próximos trâmites democráticos do processo legislativo. Conclamamos aos membros da Comissão Especial, aos honorários deputados e deputadas do Plenário da Câmara, e posteriormente aos senadores e senadoras da República, que corrijam estas distorções e aproveitem as etapas deliberativas remanescentes para restituir ao texto a sua necessária ambição, coerência jurídica e legitimidade social.

Esperamos que a votação subsequente seja pautada pelo diálogo amplo e pela serena análise técnica, incorporando as contribuições que, até o momento, foram injustamente preteridas. Colocamo-nos inteiramente à disposição dos Parlamentares, das Comissões e de todos os atores envolvidos para subsidiar tecnicamente estes debates com estudos, dados e experiências concretas, na firme convicção de que a construção de um Plano Nacional de Educação à altura dos desafios do país é um compromisso inadiável com o presente e o futuro da Nação.

Subscrevo-me, da capital temporária do país durante a COP30:

Andressa Pellanda
Coordenadora Geral
Campanha Nacional pelo Direito à Educação

(Foto: Thiago Stille/Seduc-CE)