Por justiça fiscal e socioambiental na educação, Clade e Campanha Brasileira participam de Consulta Regional do ODS 4, no Chile, para Reunião Global de Educação 2024
A educação da América Latina precisa ter garantidos recursos públicos suficientes e aplicados de forma equitativa, eficiente e com controle público. Diante de desigualdades de financiamento entre os países, é necessário que os Estados façam reformas tributárias progressivas e não permitam retrocessos. A nível nacional, um exemplo de mecanismo de financiamento em vias de ser implementado no Brasil e indicado como instrumento de gestão eficiente, controle social, qualidade e financiamento, é o Custo Aluno-Qualidade (CAQ), que pode ser tomado como referência por outros países.
Esses pontos foram defendidos por Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha Brasileira pelo Direito à Educação, e Laura Gianecchini, coordenadora de desenvolvimento institucional da Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação (Clade), na Consulta Regional da América Latina e o Caribe da Unesco, realizada no Chile, no início do mês (09/09), em preparação para a Reunião Mundial de Educação 2024, que vai acontecer em novembro, em Fortaleza (CE). Participaram Estados nacionais com representações ministeriais de diversos países da região.
As propostas das entidades serão levadas à Reunião Global a nível nacional e regional.
A Clade integra o Comitê Diretivo Regional do Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 4 – de educação –, entre as quais estão organizações intergovernamentais que atuam na educação, representantes da sociedade civil, docentes, jovens e estudantes, aos quais se somam bancos multilaterais de desenvolvimento. Ainda, ambas integram a Coordenação Global da Consulta Coletiva de ONGs do Mecanismo Global de Monitoramento do ODS 4.
O processo de construção do relatório final da consulta inclui contribuições dos ministérios da educação dos Estados em diferentes momentos.
“Em preparação para a Reunião Global de Educação em Fortaleza, precisamos acelerar o ritmo, sem retroceder no financiamento da educação, e adotar mecanismos que nos permitam assegurar fundos suficientes para garantir a realização do direito humano à educação de forma sustentável, ao mesmo tempo em que reduzimos as lacunas de desigualdade”, enfatizou Pellanda.
“De acordo com a CEPAL [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe], em 2020, enquanto cada criança na América Latina teve acesso a, em média, uma educação de US$ 2.528, nos países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], elas tiveram acesso a uma educação de US$ 11.619. Se as médias são preocupantes, a diferença entre os extremos é inaceitável. Enquanto o Paraguai e a Guatemala gastam cerca de US$ 700 por aluno por ano, Luxemburgo aloca cerca de US$ 25.000, ou seja, 35 vezes mais. Essas diferenças levam a sistemas de educação básica muito diferentes e são um dos fatores que mantêm as desigualdades existentes ao longo da vida”, destacou Gianecchini.
Ela aponta que, para superar esse cenário em nível nacional, o caminho é ampliar as receitas dos Estados por meio de adoção de “reformas tributárias progressivas que reduzam os gastos tributários (isenções e privilégios), priorizem a tributação direta de grandes empresas e da riqueza individual e reduzam ao ponto de eliminar a evasão e a fraude fiscal”.
“Esses esforços poderiam gerar de duas a cinco vezes mais recursos para a educação na Argentina, Colômbia, Guatemala, Honduras, Paraguai, Peru e República Dominicana. Também é essencial facilitar os vínculos com os ministérios das finanças, colocando a educação inclusiva e de qualidade no centro de uma estratégia de desenvolvimento”, pontua Gianecchini.
Em nível regional, é urgente fortalecer a Plataforma Regional de Cooperação Tributária, como um mecanismo para chegar a um acordo sobre políticas regionais que favoreçam a redução da concorrência tributária entre países e a eliminação de fluxos tributários ilícitos.
E, em nível global, é primordial apoiar e promover a Convenção das Nações Unidas sobre Cooperação Tributária Internacional como um mecanismo para uma nova arquitetura financeira global.
CAQ
Pellanda ressaltou que o CAQ, mecanismo de financiamento concebido pela Campanha e constitucionalizado no Novo Fundeb (EC 108/2020), inverte a lógica do financiamento da educação no Brasil.
“[O CAQ] deixa de distribuir recursos com base no número de matrículas e passa a se basear no cálculo de quanto custa uma educação de qualidade por aluno, por etapa e modalidade, para determinar quanto é necessário para oferecer uma educação de qualidade”, explicou Pellanda.
Além de se basear em elementos objetivos e transparentes para calcular o custo por aluno para fornecer todos os insumos de infraestrutura para uma educação de qualidade, incluindo especialmente a valorização dos professores, o CAQ também auxilia na gestão de recursos, pois indica:
- quais insumos precisam de investimento;
- apóia a supervisão social, uma vez que a comunidade educacional pode verificar se as condições de qualidade estão presentes e se o investimento é adequado;
- promove a equidade, pois leva em conta as diversidades das etapas e modalidades de ensino e garante a equalização dos investimentos, independentemente do território;
- promove a justiça federativa, uma vez que cada estado do país deve garantir o investimento equitativo por aluno;
- serve como mecanismo de responsabilização, transparência e fiscalização pública, ao vincular a origem dos recursos diretamente ao local onde devem ser investidos, auxiliando órgãos de controle como o Ministério Público, que é um forte apoiador dessa ferramenta;
- promove as condições básicas para que os professores possam ensinar e os alunos possam aprender e participar da gestão democrática na escola.
Alguns dos insumos utilizados no CAQ são: tamanho das turmas, formação, salários e carreira compatíveis com a responsabilidade dos profissionais da educação, instalações, equipamentos e infraestrutura adequados, e insumos como laboratórios, bibliotecas, quadras poliesportivas cobertas, materiais didáticos, entre outros.
“O cálculo do valor do CAQ mostra que o Brasil precisa de investimentos de cerca de R$ 50 bilhões, ou aproximadamente US$ 9 bilhões, para garantir o nível mínimo de investimento para uma educação de qualidade decente. Isso significaria destinar à educação apenas 0,5% a mais do PIB brasileiro, que é de cerca de R$ 9,9 trilhões. Os maiores beneficiados seriam os municípios de médio porte, que concentram as rendas baixa e média-baixa, nas regiões mais pobres do país, as áreas rurais, a região amazônica, a primeira infância e as populações ribeirinhas, indígenas e quilombolas”, defendeu Pellanda.
“Tudo isso reforça o caráter equalizador do CAQ, que deve ser bem regulamentado e implementado o mais rápido possível para acelerar o ODS 4 no país.”
JUSTIÇA SOCIOAMBIENTAL
No segundo dia da consulta, no grupo de trabalho de educação e clima, as entidades apontaram a necessidade de os Estados garantirem a justiça climática aliando-a aos direitos educacionais.
“A educação deve, com urgência, assumir sua responsabilidade em relação à justiça climática, para além de uma disciplina no currículo”, disseram.
Para Campanha e Clade, é necessário que:
1) todos os educadores integrem essa agenda de forma transversal em suas disciplinas;
2) as instituições de ensino sejam sustentáveis no uso e na gestão dos materiais, desde a infraestrutura até os insumos utilizados, incluindo os recursos naturais;
3) a educação incorpore em suas políticas e estruturas as práticas dos povos e comunidades tradicionais e indígenas, que são agentes de preservação ambiental;
4) é preciso também pensar a educação para além dos professores:
5) é preciso também pensar a educação para além dos professores: gestão escolar, gestão de políticas públicas, etc. e qual é o dever da área de educação na transformação social, na justiça social.
“É essencial elaborar políticas que evitem que a crise climática se torne mais um fator de violação do direito à educação. Um exemplo disso são as enchentes que forçam o fechamento de escolas. Outro exemplo são atores como o agronegócio e a mineração, que agem para fechar escolas do campo e indígenas. Há casos de escolas que são pulverizadas por aviões do agronegócio ou de rios poluídos perto das comunidades escolares devido à mineração. É urgente uma ação estrutural e intersetorial.”
Pellanda lembra que em muitas comunidades, a escola é a presença do Estado, é a garantia de que os direitos chegarão a esses territórios. “Portanto, o papel da autoridade educacional - professores, direção, etc. - é fundamental para a construção do pensamento crítico para além do currículo!”, destacaram.
“Isso mostra que não só a educação deve intervir para garantir a justiça socioambiental, mas também que é fundamental que a educação se envolva de uma vez por todas nesse debate, porque os atores contra a justiça socioambiental são contra o direito à educação, promovendo o fechamento de escolas.”
As entidades recordaram que há uma experiência exitosa em mostrar os desafios para a região e o mundo. A sociedade civil brasileira, reunida em sua comunidade educacional em torno do Fórum Nacional de Educação, realizou a Conferência Nacional de Educação 2024, na qual um dos sete eixos de debate foi justamente “Educação comprometida com a justiça social, a proteção da biodiversidade, o desenvolvimento socioambiental sustentável para a garantia da vida com qualidade no planeta e o enfrentamento das desigualdades e da pobreza”.
O amplo debate envolveu milhares de pessoas, entre estudantes, profissionais da educação, familiares e outros membros da comunidade educacional de todas as unidades federativas do país. No entanto, esse eixo não foi suficientemente considerado no Projeto de Lei que o Ministério da Educação enviou ao Congresso Nacional para o novo Plano decenal de educação nacional.
CONSULTA REGIONAL
O resultado da consulta regional será um relatório enviado à Secretaria Interinstitucional do Comitê Diretivo de Alto Nível do ODS 4. O relatório se concentrará nas estratégias para a implementação dos compromissos da Cúpula da Educação Transformadora e da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Os relatórios resumidos das consultas também serão publicados no site da Reunião Global de Educação 2024 e servirão como insumo-base para a elaboração da Declaração de Fortaleza.
A Reunião Global de Educação será realizada nos dias 31 de outubro e 1º de novembro em Fortaleza (CE), em seguida da reunião dos Ministros da Educação do G20.
A Unesco, em consulta com o Comitê Diretor de Alto Nível do ODS 4 da ONU, convoca reuniões globais regulares sobre educação para todos para analisar o progresso do ODS 4 e compartilhar os resultados com os mecanismos de monitoramento global da Agenda 2030.
A Reunião Global de Educação (GEM 2024) fará um chamado à ação entre atores multilaterais e intersetoriais, assim como para aumentar e melhorar o financiamento da educação até 2030. Além disso, a GEM 2024 vai instar a comunidade internacional a se unir em torno das áreas estratégicas que poderiam desbloquear o progresso no ODS 4 e estabelecer a visão para a agenda educacional pós-2030.
Leia a declaração conjunta de Campanha e Clade feita na mesa “Investir de forma mais equitativa e eficiente na educação” do evento.
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LAURA GIANECCHINI
Bom dia a todos e muito obrigado pelo convite para este importante painel sobre financiamento. Acreditamos que, para transformar a educação pública em uma educação gratuita, inclusiva, ao longo de toda a vida, para todos, e transformá-la em um horizonte de dignidade humana universal, justiça social e ambiental, é essencial ter recursos públicos suficientes, aplicados de forma equitativa, eficiente e com controle público.
Os indicadores disponíveis mostram que, embora alguns países da região estejam se aproximando ou cumprindo pelo menos uma porcentagem dos compromissos de Incheon, os valores são insuficientes para cobrir as necessidades de financiamento do DUS. De acordo com a CEPAL, em 2020, enquanto cada criança na América Latina teve acesso a uma educação média de US$ 2.528, nos países da OCDE, elas tiveram acesso a uma educação de US$ 11.619. Se as médias são preocupantes, a diferença entre os extremos é inaceitável. Enquanto o Paraguai e a Guatemala gastam cerca de US$ 700 por aluno por ano, Luxemburgo aloca cerca de US$ 25.000, ou seja, 35 vezes mais.
Essas diferenças levam a sistemas de educação básica muito diferentes e são um dos fatores que mantêm as desigualdades existentes ao longo da vida.
Como podemos superar esse cenário e obter mais recursos públicos para a educação pública, considerando que os Estados são os garantidores do direito à educação e devem investir progressivamente e sem retrocessos até que a educação universal e de qualidade seja alcançada?
Em consonância com o que propõe o TES, a CLADE considera que o principal - e mais sustentável - caminho é a adoção de mecanismos para ampliar a base tributária dos Estados e, a partir daí, ter mais recursos disponíveis para financiar a educação e fechar as profundas lacunas. A pesquisa realizada pela CLADE em parceria com a Latindadd e a Tax Justice Network continua a produzir informações que indicam a urgência de uma ação coordenada em diferentes áreas:
Em nível nacional, é necessário adotar reformas tributárias progressivas que reduzam os gastos tributários (isenções e privilégios), priorizem a tributação direta de grandes empresas e da riqueza individual e reduzam ao ponto de eliminar a evasão e a fraude fiscal. Esses esforços poderiam gerar de duas a cinco vezes mais recursos para a educação na Argentina, Colômbia, Guatemala, Honduras, Paraguai, Peru e República Dominicana.
Também é essencial facilitar os vínculos com os ministérios das finanças, colocando a educação inclusiva e de qualidade no centro de uma estratégia de desenvolvimento.
Além disso, é importante definir objetivos claros para o financiamento da educação, com a participação dos cidadãos, que permitam o investimento de acordo com as expectativas das comunidades educacionais e reduzam as desigualdades dentro dos sistemas, priorizando os grupos historicamente excluídos. E adotar mecanismos rigorosos de gestão, monitoramento e controle social com base no cálculo dos insumos necessários para alcançar uma educação de qualidade em todo o ciclo educacional e modalidades para todos.
Em nível regional, estima-se que a região perca US$ 500 bilhões com a evasão fiscal e mais US$ 320 bilhões com a sonegação. Isso equivale a 10% do PIB que é perdido em evasão, elisão e incentivos fiscais. Portanto, é urgente fortalecer a Plataforma Regional de Cooperação Tributária, como um mecanismo para chegar a um acordo sobre políticas regionais que favoreçam a redução da concorrência tributária entre países e a eliminação de fluxos tributários ilícitos.
Por fim, em nível global: é urgente discutir regras globais de tributação para empresas transnacionais e de tecnologia que operam em diferentes países, para encerrar os fluxos financeiros ilícitos e os paraísos fiscais, e para gerar uma troca automática de informações fiscais entre os países.
Nesse sentido, é essencial apoiar e promover a Convenção das Nações Unidas sobre Cooperação Tributária Internacional como um mecanismo para uma nova arquitetura financeira global. Ao mesmo tempo, devemos evitar que mecanismos inovadores de financiamento da educação enfraqueçam os sistemas públicos e gerem níveis insustentáveis de endividamento do Estado.
Vou passar a palavra para Andressa Pellanda, que apresentará um exemplo do que pode ser feito em nível nacional, o Custo Aluno-Qualidade do Brasil, adotado após anos de defesa da sociedade civil.
ANDRESSA PELLANDA
Como Laura mencionou, o mecanismo do Custo Aluno-Qualidade inverte a lógica do financiamento da educação no Brasil. Ele deixa de distribuir recursos com base no número de matrículas e passa a se basear no cálculo de quanto custa uma educação de qualidade por aluno, por etapa e modalidade, para determinar quanto é necessário para oferecer uma educação de qualidade. Esse mecanismo foi criado pela sociedade civil e agora está incorporado na emenda constitucional do novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica, o Fundeb. É uma prática bem-sucedida na região que pode ser incluída nas propostas do grupo de financiamento ad hoc que Valtencir e Alejandra mencionaram.
Além de se basear em elementos objetivos e transparentes para calcular o custo por aluno para fornecer todos os insumos de infraestrutura para uma educação de qualidade, incluindo especialmente a valorização dos professores, o CAQ também auxilia na gestão de recursos, pois indica quais insumos precisam de investimento; apóia a supervisão social, uma vez que a comunidade educacional pode verificar se as condições de qualidade estão presentes e se o investimento é adequado; promove a equidade, pois leva em conta as diversidades das etapas e modalidades de ensino e garante a equalização dos investimentos, independentemente do território; promove a justiça federativa, uma vez que cada estado do país deve garantir o investimento equitativo por aluno; serve como mecanismo de responsabilização, transparência e fiscalização pública, ao vincular a origem dos recursos diretamente ao local onde devem ser investidos, auxiliando órgãos de controle como o Ministério Público, que é um forte apoiador dessa ferramenta; e, por fim, promove as condições básicas para que os professores possam ensinar e os alunos possam aprender e participar da gestão democrática na escola, como afirmou Christina, em uma relação de diálogo de construção do conhecimento, como o cerne da educação, como mencionou Alejandra.
O cálculo do valor do Custo da Educação de Qualidade por Aluno mostra que o Brasil precisa de investimentos de cerca de R$ 50 bilhões, ou aproximadamente US$ 9 bilhões, para garantir o nível mínimo de investimento para uma educação de qualidade decente. Isso significaria destinar à educação apenas 0,5% a mais do PIB brasileiro, que é de cerca de R$ 9,9 trilhões. Os maiores beneficiados seriam os municípios de médio porte, que concentram as rendas baixa e média-baixa, nas regiões mais pobres do país, as áreas rurais, a região amazônica, a primeira infância e as populações ribeirinhas, indígenas e quilombolas.
Tudo isso reforça o caráter equalizador do CAQ, que deve ser bem regulamentado e implementado o mais rápido possível para acelerar o ODS 4 no país, juntamente com processos e currículos de qualidade, como o Mauricio estava discutindo anteriormente.
Por fim, um caminho promissor está sendo proposto pelo Ministro da Fazenda do Brasil, Fernando Haddad, no G20, envolvendo a tributação dos super-ricos, em uma proposta de reforma tributária progressiva, caminhando em direção à justiça tributária. É importante observar que a defesa da justiça tributária alinha-se à defesa da garantia de alocação adequada de recursos para a educação, não só garantindo os pisos constitucionais de financiamento, mas também a qualidade e os mecanismos de financiamento como o CAQ.
Em preparação para a Reunião Global de Educação em Fortaleza, precisamos acelerar o ritmo, sem retroceder no financiamento da educação, e adotar mecanismos que nos permitam assegurar fundos suficientes para garantir a realização do direito humano à educação de forma sustentável, ao mesmo tempo em que reduzimos as lacunas de desigualdade.
(Foto: Javiera Garay / UNESCO / CC BY 3.0 IGO)