Programa Escolas Conectadas: pela segurança, responsabilidade e princípios de direitos humanos

Nota técnica produzida pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação e pela Iniciativa Educação Aberta foi apresentada em reunião do Comitê Executivo da Estratégia Nacional de Escolas Conectadas do governo federal

 

Leia abaixo a Nota Técnica produzida pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação e a Iniciativa Educação Aberta sobre a Estratégia Nacional de Escolas Conectadas, do governo federal. O documento foi apresentado pela Campanha na 4ª Reunião Ordinária do Comitê Executivo da Estratégia Nacional de Escolas Conectadas, que aconteceu na última sexta (03/05).
 

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Nota Técnica [1]
Programa Escolas Conectadas: pela segurança, responsabilidade e princípios de direitos humanos (PDF)



Brasil, 30 de abril de 2024



O cenário retratado na Cartilha [2] da Estratégia Nacional de Escolas Conectadas ressalta um desafio significativo de disparidade no que diz respeito à conectividade e ao acesso à tecnologia nos sistemas escolares brasileiros. Os dados mostram nitidamente que muitas instituições educativas enfrentam obstáculos em relação a infraestruturas básicas que são necessárias para a integração eficaz da tecnologia no ambiente de ensino-aprendizagem - desde ausência de electricidade até ausência de dispositivos ou conectividade à Internet, assim como a falta de adequação. Os números sublinham o vasto alcance deste problema em milhares de escolas em todo o país.

Este cenário sublinha a necessidade urgente de políticas e iniciativas que abordem estas discrepâncias, que devem garantir que todos os estudantes e educadores tenham o mesmo direito de acesso a ferramentas e recursos com qualidade, incluindo acessibilidade. Essas são questões sobre as quais a Campanha Nacional pelo Direito à Educação se debruça há muitos anos, no estudo e nas lutas pela implementação do Custo Aluno-Qualidade, hoje referencial na Constituição Federal de 1988, e também sobre as quais alertamos desde o início da pandemia. É nesse sentido que reconhecemos a iniciativa do Governo Federal em criar a Estratégia Nacional de Escolas Conectadas.

A Estratégia Nacional de Escolas Conectadas é um avanço na busca pela paridade e qualidade na educação brasileira, articulando a crescente onipresença da tecnologia na era e na sociedade atuais. No entanto, para efetivamente alcançar seus objetivos, é fundamental garantir uma conectividade significativa, conforme apontado pelo mais recente estudo do Cetic.br, que ressalta a importância de considerar não apenas a disponibilidade de conexão, mas também a qualidade da mesma, o tipo de dispositivo utilizado, a acessibilidade financeira (incluindo o conceito de zero rating não restrito a redes sociais privadas) e os ambientes de uso.

Uma questão crítica a ser levantada é a natureza dos ambientes de uso proporcionados pela conectividade. Devemos questionar o acesso apenas a plataformas comerciais e devemos incentivar a exploração não só de uma gama mais ampla de recursos, como o uso de plataformas públicas (como a MEC-Red, o AVA-MEC e a Conferência Web, da RNP) levando em consideração tanto a qualidade pedagógica quanto a independência tecnológica. De que forma o MEC pretende investir e promover a plataforma MEC-Red, por exemplo, que foi construída a partir de uma demanda do Plano de Ação de Governo Aberto 2016-2018? Como ela pode se tornar de fato uma referência para sistemas de ensino buscarem bons recursos digitais?

O site do Ministério da Educação (MEC) pinta um quadro onde as ferramentas tecnológicas estão nas mãos de professores e alunos, mas oferece apenas um vislumbre da modelagem de ambientes de integração digital. Com esta abordagem, somos levados a perguntar: Que recursos digitais específicos chegam às instalações das nossas escolas? E, por sua vez, como é que estes ambientes tomam forma para facilitar o uso significativo de tecnologia no processo educativo? As escolas estão trilhando o caminho da mera adoção de ferramentas e plataformas comerciais prontas para uso? Ou irão reunir a curiosidade para trilhar águas desconhecidas que abrigam recursos educacionais abertos e alternativos, juntamente com soluções de código aberto?

Assim, deve-se considerar, ainda, a qualidade pedagógica dos recursos, de modo que estes sejam adequados às necessidades específicas de cada escola. Da mesma forma, esta perspectiva também implica em autonomia tecnológica para as escolas; ou seja, as instituições escolares não devem tornar-se totalmente dependentes de fornecedores de ambientes digitais, sendo capazes de gerir o ambiente que utilizam por si mesmas. Desse modo, o MEC precisa fornecer detalhamentos [3] sobre os equipamentos e os ambientes de integração digital das escolas e precisa garantir apoio efetivo à diversificação e qualidade de ambos, possibilitando, assim, a real integração digital de maneira pedagogicamente eficaz e autônoma.

Outra questão que precisa ser ponderada é a distinção entre o conceito de "Recursos Educacionais Digitais" e "Recursos Educacionais Abertos”, conforme a Portaria 451/2018 [4], que o deixa claro. Embora os primeiros abranjam todos os instrumentos – gratuitos e pagos –, aplicações e plataformas digitais que podem ajudar o professor e o aluno no processo de ensino-aprendizagem, os REA são abertos, ou seja, podem ser livremente utilizados, adaptados e compartilhados por professores, estudantes e qualquer pessoa interessada, promovendo, assim, a experimentação, o uso público e gratuito, a coletividade, a inclusão e a autonomia. Devem, portanto, ser incentivados e receber investimento para que possam ser adotados por docentes e estudantes, que invariavelmente são atraídos pela comodidade das empresas comerciais, mas que acabam entrando num ciclo de dependência que vai de encontro aos princípios de uma educação libertadora. Uma iniciativa essencial tem sido a do foco no G20 Brasil 2024 nesse tema dos REA, o que temos acompanhado e cuja discussão pretendemos adensar a partir do lugar de co-facilitação do GT de Educação e Cultura do C20.

Com referência ao quadro geral da estratégia do MEC, parece haver uma falta de clareza em relação ao tipo de recursos digitais que estão sendo implementados nas escolas. Quando o próprio MEC menciona “recursos alinhados à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), diversificados e de qualidade” [5] , não se pontua se esses são recursos são abertos ou fechados, o que os distingue fortemente em termos de diversidade, acessibilidade, flexibilidade, autonomia dos sujeitos da educação na relação com o material. Além disso, a despeito de a afirmativa de que os recursos seriam complementares a outros, analógicos, não se indica como será garantido tal uso como uma das ferramentas e não como meio principal pedagógico.

É preciso também considerar os perigos associados ao alinhamento da educação ao novo contexto de plataformização e da inteligência artificial, fundamentadas em dados. As dependências crescentes de sistemas automatizados e plataformas digitais levam a preocupações quanto à privacidade dos dados dos estudantes e profissionais da educação, sobretudo quando esses dados são comercializados e tratados em data-centers fora do Brasil, e sem o consentimento consciente ou a opção de escolha dos usuários, sujeitos da educação. Isso pode indicar inclusive riscos notadamente à própria soberania nacional (em caso de empresas como a Starlink terem acesso a pontos de dados de comunidades na região amazônica) e à salvaguarda dos direitos pessoais.

Uma questão crucial relacionada a esta diz respeito ao cumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) por parte de empresas como Google e Microsoft, que fornecem muitos dos serviços digitais utilizados nas escolas. Diante de evidências de não conformidade com a LGPD, surge a dúvida sobre o papel do Ministério da Educação (MEC) em garantir o cumprimento da legislação e proteger os dados dos usuários dessas plataformas. É imperativo que exista um mecanismo eficaz de enforcement por parte do MEC para lidar com essas questões e assegurar a segurança e privacidade dos dados dos envolvidos no ambiente educacional.

Estudo realizado pela Iniciativa Educação Aberta sobre os termos de uso e políticas de privacidade dos serviços Google for Education e Microsoft 365 para educação, em 2020 [6] durante a pandemia, e depois atualizado em 2022 [7], mostrou que as empresas não cumprem as determinações da LGPD, ou seja, estamos lidando em nossas escolas com companhias de tecnologia que sequer respeitam as normativas do país.

Embora o Decreto nº 11.713, de 26 de setembro de 2023, que institui a Enec, estabeleça a necessidade de conjugar esforços de diversos atores, incluindo a sociedade civil, para a consecução de seus objetivos, é crucial questionar de que maneira exatamente a participação da sociedade civil está sendo formalmente incorporada e como sua representação está sendo garantida no processo de governança da estratégia. Dada a demora de mais de ano para conseguirmos esse diálogo, depois do envio de uma série de ofícios, temos preocupação quanto a esta questão.

A inclusão da sociedade civil não deve se limitar apenas a um papel consultivo, mas deve ser uma parte integrante e ativa do processo decisório, contribuindo com perspectivas diversas e garantindo que os interesses e necessidades da comunidade sejam adequadamente representados e considerados. Além da Enec, vimos acompanhando outras leis e políticas relacionadas, como o Programa Inovação Educação Conectada (2021), bem como a Política Nacional de Educação Digital (2023), e a Estratégia Brasileira de Educação Midiática em construção. Sabemos que todas são inter-relacionadas em sua concepção e implementação.

Portanto, é essencial que sejam estabelecidos mecanismos objetivos e transparentes para a participação da sociedade civil em todas as etapas da implementação da Enec, garantindo assim uma governança democrática e inclusiva. É importante também ressaltar que a representação real importa e, portanto, é preciso trazer ao diálogo organizações que refletem real e formalmente a comunidade educacional, como representantes dos profissionais, dos estudantes, dos conselheiros e demais grupos da comunidade educacional. Um caminho profícuo seria uma relação direta com o Fórum Nacional de Educação, que compreende essa representatividade e diversidade e tem debatido o assunto, notadamente na Conferência Nacional de Educação, que deve ser a referência para todas as políticas educacionais, inclusive esta. Portanto, enquanto a Estratégia Nacional de Escolas Conectadas representa um avanço significativo, é essencial abordar criticamente esses aspectos para garantir que a integração da tecnologia na educação brasileira seja feita de forma responsável, segura e centrada nos princípios da equidade e da proteção dos direitos humanos.

[1] Elaborada pelo GT de Educação e Tecnologia da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, composto por: Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha e doutora em Ciências (USP); Marcele Frossard, coordenadora de políticas e programa da Campanha; Marina Avelar, professora adjunta da Faculdade de Educação (FaE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Priscila Gonsales, consultora em educação digital e pesquisadora associada do Grupo de Pesquisa CNPq Iniciativa Educação Aberta (UnB).
[2] https://www.gov.br/mec/pt-br/escolas-conectadas/cartilha.pdf
[3] https://www.gov.br/mec/pt-br/escolas-conectadas/ambientes-e-dispositivos
[4] https://educacaoconectada.mec.gov.br/images/pdf/portaria_451_16052018.pdf
[5] https://www.gov.br/mec/pt-br/escolas-conectadas/recursos-educacionais-digitais
[6] https://zenodo.org/record/4005013
[7] https://aberta.org.br/pacotes-education-nao-contemplam-lgpd/

(Foto: Cristiano Andujar/Arquivo/SECOM/SC)