Nota Técnica: Programas de alimentação escolar e assistência à saúde do educando devem ser financiados com recursos suplementares à MDE como determina a CF 1988

Leia documento produzido pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação e Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (FINEDUCA)

                                                           

 

NOTA TÉCNICA (PDF)

 

PROGRAMAS DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR E ASSISTÊNCIA À SAÚDE DO EDUCANDO DEVEM SER FINANCIADOS COM RECURSOS SUPLEMENTARES À MDE COMO DETERMINA A CF 1988: “Os programas suplementares de alimentação e assistência à saúde previsto no art. 208, VII, serão financiados com recursos provenientes de contribuições sociais e outros recursos orçamentários”

Nota Técnica da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (FINEDUCA)[1]

 

Brasil, 16 de outubro de 2023

 

A Campanha Nacional pelo Direito à Educação e a Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (FINEDUCA) apresentam esta Nota Técnica a respeito da opinião publicada no site Conjur pela presidenta do FNDE e pelo procurador-chefe do FNDE [2]. 

O principal aspecto deste posicionamento conjunto diz respeito à falta de comprometimento com a garantia dos preceitos legais, como a Constituição Federal de 1988 (CF/1988) e também à interpretação falaciosa do artigo 208 da Carta sobre a Política Nacional de Alimentação Escolar e outros programas relacionados com a garantia do direito à educação, como o de transporte, material didático-escolar e assistência à saúde. 

O enquadramento (ou não) das despesas com programas suplementares em Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE) não guarda relação com a fundamentalidade dos bens e objetivos jurídicos resguardados por estes programas, mas a uma definição constitucional e legal de quais atividades podem ser enquadradas diretamente com o ensino. Tal definição não tem como decorrência minimizar a relevância dos programas suplementares não financiáveis no âmbito da MDE, que são realmente fundamentais ao desenvolvimento da atividade de ensino, mas o contrário. Ou seja, resguardar o financiamento da MDE frente à necessária ampliação dos programas suplementares de alimentação e saúde escolares, evitando que a necessária ampliação de aportes nestes programas venha a prejudicar as demais atividades. Nesse sentido, a argumentação em favor da contabilização de despesas com alimentação e saúde escolares em MDE tem como propósito prático a redução dos recursos vinculados para o ensino em todos os entes federativos, o que afastaria o Estado brasileiro do cumprimento dos dispositivos constitucionais inscritos nos artigos 205, 206 e 208. 

De fato, os quatro programas constituem o que a Constituição nomeia como suplementares, ou seja, são ações de assistência ao educando que oferecem apoio às atividades precípuas da educação, ou seja, à aquisição de saberes em sentido amplo. Em outros termos, são todos eles suplementares à educação oferecida nas instituições educacionais públicas. 

Por que, então, não recebem o mesmo tratamento no que concerne às fontes que os financiam? Foi uma escolha política basicamente oriunda de decisões políticas.

Durante a formulação da Constituição Federal, em 1987-88, foi consolidada a concepção de programas suplementares à educação, tendo sido debatido o tema das fontes de financiamento dos programas. Por dificuldades de consenso quanto à cobertura ou não dos programas com recursos da receita resultante de impostos vinculada à MDE, a conciliação possível foi a determinação de que dois deles, a alimentação escolar e a assistência à saúde, contassem com outros recursos (PINHEIRO, 1991; FARENZENA, 2001) [3]. A definição quanto ao transporte escolar e material didático foi postergada, quer dizer, remetida à formulação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996). 

No processo de tramitação da LDB (1988-1996), a inclusão ou não dos programas suplementares como despesas a serem financiadas com a receita de impostos vinculada à MDE foi tema recorrente, seguindo, portanto, as contínuas inclusões/exclusões que vinham desde a Constituinte. A decisão final foi a de respeitar a Constituição em relação aos programas de alimentação escolar e assistência à saúde do educando.

Os quatro programas são idênticos no que concerne ao seu caráter suplementar à educação. A exclusão de dois deles da fonte “receita resultante de impostos vinculada à manutenção e ao desenvolvimento do ensino” não os posiciona como ações que nada tem a ver com a educação, mas sim garante a cobertura das ações de assistência à saúde por fontes da área da saúde e a cobertura da alimentação escolar por fontes adicionais, como a contribuição social do salário-educação. 

Não é verdade que a Constituição dá tratamento igualitário aos referidos programas meramente por aglutiná-los em um mesmo inciso do art. 208. Há duas disposições normativas distintas. O art. 208 estipula expressamente os programas suplementares, no caso da alimentação e assistência à saúde, a previsão é complementada no §4º, do artigo 212, da Constituição, que determina: 

Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.

§ 4º Os programas suplementares de alimentação e assistência à saúde previstos no art. 208, VII, serão financiados com recursos provenientes de contribuições sociais e outros recursos orçamentários. (CF/1988)

Diante dessa evidente ausência de “tratamento igualitário” na Constituição o texto opinativo/parecer argumenta: 

Porém, é possível que vozes possam argumentar pela inviabilidade da nossa proposta, apresentando, para tanto, a regra prevista no §4º, do artigo 212, da Constituição.

No entanto, parece-nos que esse argumento não merece acolhida, uma vez que não há qualquer vedação no texto constitucional à utilização da receita decorrente de impostos para aplicação na alimentação escolar. Ao contrário, o texto autoriza a utilização adicional, como fonte de custeio, de recursos provenientes de contribuições sociais e outros recursos orçamentários para financiamento de programa suplementar de alimentação.

 

Aqui o texto opinativo opera um falso silogismo: a) A CF/1988 não proíbe custear alimentação escolar com receitas decorrentes de impostos (correto) + b) Os percentuais de gasto mínimo em MDE referem-se à receita resultante de impostos (correto) = c) O custeio de programas suplementares de alimentação escolar com impostos pode ser contabilizado para efeito de comprovação do gasto mínimo constitucional em MDE (falso). 

Ou seja, reposta a boa técnica jurídica, o art. 212 tem como objeto estabelecer o regime constitucional da fonte vinculada Manutenção e Desenvolvimento do Ensino, definindo o que nela pode ser contabilizado (§§ 1º a 3º), o que nela não pode ser contabilizado (§§ 4° e 7º) e sua fonte adicional obrigatória, oriunda de outro tipo tributário, a contribuição social do salário-educação (§§ 5° e 6º).  Nesse regime, despesas com receitas de impostos em programas suplementares de alimentação escolar e assistência à saúde do educando não podem compor os gastos classificados como MDE para efeito de cumprimento dos mínimos constitucionais, por definição da própria Constituição. 

É falso afirmar que a redação do artigo 208, VII, foi dada pela Emenda Constitucional nº 59/2009, já que esse é um dispositivo oriundo do Constituinte originário. A Emenda referida não alterou o conteúdo dos programas suplementares previstos, mas apenas adequou o seu escopo ao conceito de educação básica obrigatória inserido na nova redação do inciso I do art. 208. Portanto, tanto a redação do art. 208, VII, como do art. 212, § 4°, são oriundas do constituinte originário. 

Nesse sentido, já que o texto reitera as “históricas palavras de Ulysses Guimarães, em seu discurso na promulgação da Carta Cidadã” seria importante verificar qual o propósito dos constituintes ao redigir tais dispositivos. 

A primeira incorporação da ideia de programas suplementares, no processo Constituinte, se dá já na primeira fase do processo legislativo, no Anteprojeto do Relator da Subcomissão de Educação, Cultura e Desporto, constituinte João Calmon, nos seguintes termos:

 

AUXÍLIO SUPLEMENTAR AO EDUCANDO

Sobre o tópico do auxílio suplementar ao educando temos as sugestões dos nobres Constituintes Asdrubal Bentes (no, 229-1), Amilcar Moreira (no, 297-6), Carlos Virgílio e Virgílio Távora (no, 315-8), Solon Borges dos Reis (no, 651), Roberto Freire (no, 884-2) e Florestan Fernandes.

As sugestões ora explicitaram mais, ora menos este auxílio, tratando-se prevalentemente de alimentação, transporte, vestuário, material escolar e serviço médico-odontológico. Uma sugestão (do Senhor Constituinte Asdrubal Bentes) estendeu o auxílio suplementar ao aluno da pré-escola, embora a maioria dos Senhores Constituintes se tivesse atido ao suprimento das condições indispensáveis ao desenvolvimento do alunado da escola fundamental e obrigatória de 1º, grau. Sem este auxílio, permanência e o aproveitamento do aluno no ensino básico estariam comprometidos.

As entidades ouvidas em audiências públicas que se referiram ao tópico foram: a AEC, as signatárias da proposta do Fórum em Defesa do Ensino Público e Gratuito na Constituinte e mais o CEAB, a CNBB, a FENEN, todas propuseram a realização dos mesmos programas sociais, citados nas sugestões dos senhores Constituintes, incluindo-se também as bolsas de estudo entre as medidas destinadas a expandir a gratuidade de forma ativa e eficaz.

As signatárias da proposta do FORUM [4] Insistem, porém, em que tais programas sejam orçamentados no seu setor específico, com verbas próprias, desvinculadas dos recursos destinados à educação 'stricto sensu', embora gerenciados por órgãos da área educacional (Carta de Goiânia).

Dada a unanimidade das sugestões, optou-se por uma formulação de dispositivo que incluísse todos esses aspectos, deixando, contudo, para a legislação ordinária as modalidades concretas de gerenciamento dos recursos. (...) 

 

É na fase de consolidação do Anteprojeto da Subcomissão de Educação, Cultura e Desporto, após a apresentação de emendas e sob a mesma relatoria de João Calmon, que o caráter de suplementaridade dos programas passa a ser expresso, em técnica e redação similares ao que viria a ser o inciso VII do art. 208: “garantia de auxílio suplementar ao aluno do ensino fundamental através de programas de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência médico-odontológica e psicológica”. 

Portanto, como já foi referido, o inciso VII do Art. 208 afirma o caráter dos programas, de apoio suplementar à educação, mas o custeio dos mesmos ficou em parte resolvido no texto constitucional: alimentação escolar e assistência à saúde do educando devem ser financiados com recursos adicionais à receita de impostos vinculada à MDE; já o custeio dos programas de material didático escolar e transporte escolar não foi resolvido, ficou para a LDB. 

Deste modo, conclui-se que a proposta de incorporar a alimentação escolar na MDE não condiz com a interpretação corrente da Constituição de 1988 sobre os programas suplementares e sua relação com MDE, pois promove brechas que favorecem a agenda de desmonte da vinculação orçamentária para área da educação, estimulando mudanças legais e novas interpretações da lei em desacordo com o estipulado na Constituição. 

Portanto, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação e a Fineduca refutam os argumentos apresentados no citado texto de opinião.


[1] Elaborada por Andressa Pellanda, Coordenadora Geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação,  Marcele Frossard, coordenadora de programa e políticas da Campanha; Salomão Ximenes, membro da Campanha e da Rede Escola Pública e Universidade e Tânia Dornellas, assessora de advocacy da Campanha;;  Nalu Farenzena e Nelson Amaral, da Fineduca.

[2] “OPINIÃO - Federação e colaboração: por uma Política Nacional de Alimentação Escolar”, de 4 de setembro de 2023, por Fernanda Mara Macedo Pacobahyba e Carlos Nitão, respectivamente presidenta e procurador-chefe do FNDE. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-set-04/pacobahyba-nitao-politica-nacional-alimentacao-escolar.

[3] PINHEIRO, Maria Francisca Sales. O público e o privado na educação brasileira: um conflito na Constituinte (1987-1988). Brasília, UNB, 1991 (Tese de Doutorado). FARENZENA, Nalú. Diretrizes da política de financiamento da educação básica brasileira: continuidades e inflexões no ordenamento constitucional-legal (1987-1996). Porto Alegre, UFRGD, 2001, (Tese de Doutorado).

[4] Fórum em Defesa do Ensino Público e Gratuito na Constituinte.

 

(Foto: Carlos Gibaja/SEDUC-CE)