“A crise não é causada pela pandemia - é por decisões políticas que não priorizam a justiça social e os direitos humanos”, diz coordenadora da Campanha na ONU em NY
Diretamente de Nova York (EUA), a Campanha Nacional pelo Direito à Educação participa do Fórum Político de Alto Nível 2022 (HLPF, na sigla em inglês, High Level Political Forum) na sede da Organização das Nações Unidas (ONU) como parte da delegação da sociedade civil brasileira.
Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha, representa a entidade no evento, sendo parte do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 (GT Agenda 2030), da Campanha Global pela Educação (CGE), da Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação e como integrante da Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala no Brasil, organizações também presentes na ocasião.
O HLPF é o fórum da ONU que faz monitoramento da implementação da Agenda 2030 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
“A crise pela qual passamos não é causada pela pandemia - é causada por decisões políticas que não priorizam a justiça social, a democracia, os direitos humanos. E é isso que estamos trazendo para o Fórum Político de Alto Nível 2022”, salienta Pellanda.
Relatório Luz da Sociedade Civil 2022 - Brasil
Por sua vez, o GT Agenda 2030 produz periodicamente o Relatório Luz, que é a única publicação nacional que apresenta um panorama em 360 graus da implementação dos 17 ODS da Agenda 2030 no Brasil, cobrindo as áreas sociais, econômicas e ambientais. A Campanha coordena o Grupo de Trabalho do ODS 4 (educação).
Com versões disponíveis em português e inglês, o novo Relatório Luz será lançado internacionalmente em evento paralelo ao Fórum Político de Alto Nível, na quarta-feira (06/07), online.
Lançado nacionalmente na última quinta-feira (30/06) em audiência pública na Câmara dos Deputados, o Relatório Luz revela um cenário alarmante: o país não avançou em 80,35% das 168 metas analisadas e outras 14,28% tiveram apenas progresso insuficiente. Não há dados referentes a 4,76% das metas. (Veja mais sobre o Relatório Luz abaixo).
Retrocessos na educação
O ODS 4 (educação) prevê a cada país “assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todas e todos.”
A exemplo dos últimos anos, os retrocessos no ODS de educação se mantêm. Em 2020, 6,4 milhões de estudantes (13,9% do total) não tiveram acesso às atividades escolares no Brasil. A exclusão escolar de meninas, pessoas negras, com deficiência e de povos originários também piorou.
“Entre as mais de 6 milhões de pessoas fora da escola em 2020, o número de negras e indígenas é três vezes maior do que o número de brancas”, aponta o relatório.
O orçamento educacional da União vem minguando ano após ano. Em 2022, a dotação é inferior à de 2019 e evidencia a continuidade do retrocesso.
“A descontinuidade dos investimentos em infraestrutura básica nas escolas - água potável, adaptações de acessibilidade para estudantes com deficiência, acesso a computadores e internet etc. - configuram mais uma violação de direitos. Esse contexto, aliado à não regulamentação do Custo Aluno-Qualidade (CAQ), manteve em retrocesso a meta 4.a”, diz o relatório.
A meta 4.a é “construir e melhorar instalações físicas para educação, apropriadas para crianças e sensíveis às deficiências e ao gênero, e que proporcionem ambientes de aprendizagem seguros e não violentos, inclusivos e eficazes para todos.”
O Relatório Luz 2022 reforça como sua primeira recomendação a suspensão da Emenda Constitucional 95/2016 (Teto de Gastos) - medida que congela despesas primárias no orçamento federal e atinge negativamente as áreas sociais, como a educação - e seguimento do Plano Nacional de Educação 2014-2024.
Outra recomendação é a a regulamentação e a implementação do Custo Aluno-Qualidade (CAQ), do Sistema Nacional de Educação (SNE) e do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb) - pautas que a Campanha Nacional pelo Direito à Educação considera centrais para as políticas educacionais brasileiras após a conquista do novo e permanente Fundeb.
Abertura do HLPF 2022
Para Andressa Pellanda, o discurso de abertura de Collen Vixen Kelapile, presidente do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (UN/ECOSOC), ofereceu o caminho óbvio mas vazio da "vontade política e investimentos”, frente a desafios globais duros e complexos.
"Viemos aqui com o propósito comum de nos comprometermos novamente com a Agenda 2030”, afirmou no evento o presidente do ECOSOC.
Amina Mohammed, secretária-geral adjunta da ONU, listou como principais desafios para que Estados alcancem os ODS: conflitos, pandemia, crise ambiental, pobreza, inflação, insegurança alimentar, vulnerabilidades diversas (especialmente para mulheres, crianças e jovens) e exclusão escolar.
Para Mohammed, progresso em agricultura, economia digital, legislação contra violência doméstica, sistemas educacionais são caminhos positivos dos últimos anos no mundo. E são necessários financiamento, produção de dados, acessibilidade, engajamento, atuação nacional e subnacional para atingir os objetivos da Agenda 2030.
“Soluções trazidas por Amina Mohammed são mais concretas e detalhadas”, comenta Pellanda. “Mas está preocupada com o ‘capital humano’ (nesses termos), sem proposta nova ou antissistêmica.”
“Lideranças seguem reiterando e reiterando a necessidade de ‘crescimento econômico’ a despeito do sistema corrosivo social e ambiental que sustenta esse crescimento, ainda que o objetivo seja a ‘sustentabilidade’. A conta não fecha”, critica Pellanda.
Voz contundente
Valentina Rabanal, jovem feminista chilena, ativista dos direitos digitais, não só fez a fala mais contundente desta manhã sobre violações de direitos em crises globais e sobre o necessário para superar crises, como denunciou o retrocesso em saúde reprodutiva em diversos países, com revogações e retrocessos sobre aborto: "Parece que um homem com uma pistola tem mais direitos que uma mulher com um útero. E isso não é causado por uma pandemia", concluiu.
Rabanal pediu ao final de sua fala uma salva de aplausos para o Chile, com sua constituinte, e para a América Latina.
Atores privados: suposta solução repete-se
Suriya Chindawongse, vice-presidente do UN/ECOSOC, ressaltou a necessidade de "quebrar os silos" e de articulação entre diversos atores para a garantia do cumprimento dos ODS. Esse argumento está no centro da narrativa que sustenta os ODS, que coloca o setor privado como eixo fundamental.
“Por um lado, é importante que setor privado seja transformado para produção econômica sustentável ambiental e socialmente. Por outro lado, se promove com essa narrativa a agenda dos ‘financiamentos inovadores’ (financeirização e mercantilização dos direitos sociais) e se coloca o setor privado no centro da tomada de decisão, abrindo mais espaço para barganhas e aumentando seu poder político - e interessado”, examina Andressa Pellanda, que pesquisa o tema em seu doutorado.
"Acelerar", "eficiência", "tornar a ganhar perdas em capital humano" foram alguns dos termos mais repetidos no discurso da diretora de políticas e parcerias do Banco Mundial, Mari Pangestu. "Essa geração está perdendo trilhões de dólares", disse em seu comentário sobre educação.
Para Pellanda, essa frase “já diz muito sobre sua agenda para a área. Chamou atores do ‘business’ para uma grande coalizão com Estados e a comunidade educacional”.
Mais sobre os resultados do Relatório Luz 2022
Os resultados apresentados na 6ª edição do Relatório Luz indicam um país em decadência, com a pandemia de Covid-19, a recessão e as más decisões sobre as políticas públicas que aprofundam as desigualdades em um grau alarmante.
Em dados gerais, apenas uma (0,59%) das 168 metas analisadas teve progresso satisfatório; 11 (6,54%) metas permaneceram ou entraram em estagnação, 14 (8,33%) estão ameaçadas, 24 (14,28%) tiveram progresso insuficiente e 110 (65,47%) estão em retrocesso. Além disso, também há uma ausência de informações relativas a oito metas (4,76%).
Traçando um comparativo com o último Relatório Luz, publicado em julho de 2021, percebe-se que as metasconsideradas “em retrocesso” aumentaram de 92 para 110 e aquelas que tiveram progresso insuficiente passaram de 13 para 24.
Em resposta ao cenário de terra arrasada apontado pelo Relatório Luz, a sociedade civil traz 116 recomendações (algumas reiteradas desde 2017). “Essas recomendações são parte da nossa contribuição para colocar o país no rumo certo, sem deixar ninguém para trás”, diz a coordenadora técnica e editorial do Relatório Luz 2022, Alessandra Nilo (coordenadora geral da ONG Gestos e cofacilitadora do GT Agenda 2030).
“Por exemplo, o Brasil precisa revogar a Emenda Constitucional 95 [que estabelece limites irreais para os investimentos públicos em áreas importantes, como saúde, educação e assistência social], ou não haverá possibilidade de enfrentarmos nossos grandes desafios históricos ou, muito menos, construir qualquer alternativa de desenvolvimento sustentável”, pontua.
Por fim, Alessandra alerta que “o aumento das violências tem exigido muito mais da sociedade civil e o trabalho de ativistas e defensores/as de direitos humanos precisa ser cada vez mais reconhecido e valorizado; por isso este ano dedicamos o Relatório Luz a Bruno Pereira e Dom Phillips, assassinados brutalmente quando estávamos justamente fechando nossa VI edição”, lamenta.
Ao todo, 101 especialistas de 51 organizações da sociedade civil avaliaram os dados oficiais, utilizando uma metodologia que se tornou referência para entidades do mundo inteiro, a fim de analisar a condução das políticas públicas no Brasil e o cumprimento das metas aplicáveis ao país – inclusive as sete que a partir de 2021 passaram a ser consideradas no Painel ODS Brasil como “não aplicáveis”.
Acesse aqui o 6º Relatório Luz 2022.
(Foto: GT Agenda 2030)