Antídoto para veneno da discriminação é uma comunicação acessível, diz Claudia Werneck em evento internacional sobre inclusão
Claudia Werneck, idealizadora da Escola de Gente, e Alan Thomas, analista de programas e projetos da entidade, participaram do Global Disability Summit Side Event (Evento Paralelo da Cúpula Global da Deficiência), em 17 de fevereiro.
Com título “Construindo uma educação para todos: Aprendendo com experiências inclusivas”, o debate com líderes de organizações e movimentos ligados ao direito à educação expôs boas práticas educacionais na perspectiva inclusiva.
Claudia e Alan apresentaram o projeto APA - Agentes de Promoção da Acessibilidade que reúne jovens com e sem deficiência para tratar de mecanismos de participação política na sociedade a partir da inclusão. No ambiente virtual, o projeto migrou para o aplicativo VEM CA, primeiro aplicativo de cultura acessível do Brasil, que usa a metodologia do APA.
A Escola de Gente foi indicada pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação para participar do evento que foi organizado pela Campanha Global pela Educação (CGE), Clade (Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação) e a Rede Regional pela Educação Inclusiva (RREI).
Os outros debatedores eram:
Madeleine Zúñiga (Vice-Presidente da CGE)
Gordon Porter (Inclusive Education, Canada)
Nguyen Thi Kim Anh (Associação Educação para Todos do Vietnã)
Nguyen Tuan Linh ( (Associação Educação para Todos do Vietnã)
Traore Tahirou (Coalition Nationale pour l’Education Pour Tous du Burkina Faso)
Belén Arcucci (Moderadora - RREI)
Veja o vídeo do debate aqui e leia a abaixo a transcrição das falas de Claudia Werneck e Alan Thomas.
(Imagem: Reprodução/YouTube)
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GDS 2022 - Global Disability Summit | Cúpula Global da Deficiência
Agentes de Promoção da Acessibilidade (APA): um projeto que faz inclusão
Bom dia! Meu nome é Claudia Werneck. Como aqui não há audiodescrição, vou me descrever: sou uma mulher de 64 anos, pele branca e cabelos grisalhos. Também vou descrever a frase que estamos mostrando na tela. Ela diz: “Nós treinamos jovens líderes em acessibilidade e inclusão”.
Vou apresentar o projeto Agentes de Promoção de Acessibilidade, da ESCOLA DE GENTE, ONG que fundei há 20 anos no Brasil.
Esse projeto, que chamamos de APA, capacita jovens líderes com e sem deficiência em inclusão e acessibilidade. O projeto foi replicado em quatro favelas do Rio, entre 2011 e 2017 e já formou 252 Agentes na faixa etária de 14 a 29 anos; 35 com deficiência.
Após um curso de 45 horas sobre inclusão, acessibilidade, não discriminação e direitos, jovens se tornam Agentes de Promoção da Acessibilidade. O curso utiliza múltiplos recursos de comunicação acessível, como linguagem simples, audiodescrição, legenda, Língua de sinais, materiais em mídia digital, braille e letra ampliada, entre outros. O certificado de APA agrega valor às vidas profissionais da juventude que faz o curso. Muitas dessas pessoas se tornaram consultoras de acessibilidade em governos, empresas e ONGs.
Segundo a ONU, mais de 80% das pessoas com deficiência vivem abaixo da linha da pobreza em países em desenvolvimento. Existe uma relação viciosa entre pobreza e deficiência que reforça o histórico ciclo de não participação. Uma vez que pessoas com deficiência não têm acesso a serviços, bens e direitos, elas são mantidas em casa. Como resultado, não são percebidas pela comunidade como parte dela. A exclusão aumenta. O isolamento se perpetua.
E, como esse ciclo da não participação se inicia já na infância, jovens com e sem deficiência perdem desde muito cedo a capacidade de acreditar que são partes intrínsecas de uma única e mesma geração.
Então, como quebrar esse ciclo de não participação?
Como jovens com e sem deficiência provam para si que pertencem à mesma e indivisível geração?
Como educar as novas gerações para reconstruir a lógica do mundo contemporâneo, que é tão rápido para discriminar e tão lento para encontrar soluções inclusivas?
Como ajudar jovens a expandirem seus modelos de representação humana para se reorganizarem como pais, mães, pessoas cidadãs e trabalhadoras?
Seria possível desenhar uma metodologia com insumos tão complexos?
Sim.
A ESCOLA DE GENTE criou a metodologia APA. É uma metodologia simples, de baixo custo e inovadora, que funciona extraordinariamente bem por dois motivos: estabelece um canal de comunicação entre jovens com e sem deficiência; e passa a reeducar a juventude que participa da formação na perspectiva de uma sociedade inclusiva, impactando suas vidas familiar, estudantil e profissional.
Como funciona a metodologia APA?
Ela é inspirada e sustentada pelo que chamamos de “dilemas comunicacionais”. Vou explicar. A ESCOLA DE GENTE acredita que as formas mais sérias de discriminação acontecem no processo de comunicação pela falta de recursos de acessibilidade. Portanto, o antídoto para esse “veneno da discriminação” deveria ser…: mais comunicação; mas uma comunicação acessível!
Assim, em 2011, decidimos que era urgente que jovens experimentassem a vida como ela deveria ser, com todas as formas de comunicação interagindo em tempo real o tempo todo. Essa é a razão pela qual o projeto APA sempre oferece comunicação plenamente acessível. O objetivo é provocar a juventude a “descobrir” o óbvio: que todos os tipos de comunicação são legitimamente humanos e têm o mesmo valor para a sociedade.
É por esse motivo que, no projeto APA, a juventude é desafiada pela metodologia a encontrar coletivamente soluções para diferentes “dilemas comunicacionais”, criando soluções práticas e originais para resolvê-los. Podem imaginar o quão é instigante e incrível ensinar audiodescrição para uma turma em que há estudantes com deficiência visual de origens diversas ou deficiência total auditiva, e os demais grupos são de jovens sem qualquer deficiência?
Mas qual é o valor mais importante do programa de formação do APA?
Quem é a juventude que se forma como Agentes de Promoção da Acessibilidade?
São jovens com conteúdo e experiência para intervir sempre que o direito de comunicação e participação de pessoas com deficiência estiver sendo violado, com a responsabilidade de encontrar soluções para reverter a situação.
Conceitualmente, o direito de participação é sempre violado quando não há recursos de comunicação acessíveis disponíveis para que as pessoas possam se comunicar e serem comunicadas. E isso se aplica a qualquer situação presencial ou virtual. Por exemplo, uma de nossas Agentes é sempre chamada pelo hospital público local para interpretar a Língua de sinais brasileira para pacientes que necessitam da Libras, pessoas surdas, pois não há intérpretes disponíveis.
Mas agora vou chamar Alan Thomas, coordenador deste projeto, para falar sobre as grandes novidades que trazemos hoje.
Bom dia! Sou o Alan, um jovem de 26 anos, pele branca, cabelo preto e olhos castanhos escuros. No momento uso uma camisa roxa.
O projeto APA foi interrompido pela pandemia. Então, em resposta a isso, a ESCOLA DE GENTE refletiu sobre qual seria o melhor meio de transpor a metodologia APA para o mundo digital, mantendo todas as acessibilidades: língua de sinais, audiodescrição, linguagem simples e legendagem, como era feito presencialmente.
A decisão de transpor a metodologia APA para o nosso aplicativo VEM CA, lançado em 2019, foi tomada com a ajuda de dados da pesquisa TIC 2020, do Comitê Gestor da Internet. A pesquisa aponta que, no Brasil, 99% da população com mais de 10 anos de idade utiliza o aparelho celular como principal meio de acesso à internet, considerando diferentes classes sociais. E que 58% dessas pessoas usuárias acessam a internet SOMENTE pelo celular, principalmente entre aquelas pertencentes às classes sociais mais empobrecidas.
Desde então, a ESCOLA DE GENTE tem trabalhado para preparar o app VEM CA, primeiro aplicativo de cultura acessível do Brasil, para que hospede a metodologia do APA. O VEM CA tem mais de 20 mil downloads e acaba de ser reconhecido pela ONU como uma das 400 melhores práticas no mundo na direção das SDGs. O VEM CA também é um dos vencedores do Zero Project Award 2022, prêmio que a metodologia APA igualmente recebeu, em 2019.
Ao unir dois de seus projetos premiados, a ESCOLA DE GENTE estará atingindo três grandes objetivos:
1. Na pandemia, pessoas com deficiência passaram a enfrentar a pior exclusão de suas histórias, quando o fluxo de informações migrou abruptamente para um mundo virtual sem acessibilidade. O aplicativo VEM CA e o projeto APA, juntos, terão mais força para ajudar a neutralizar esse efeito.
2. Será possível disseminar a metodologia APA para todo o território brasileiro, e em outros países, aumentando seu impacto social.
3. A ESCOLA DE GENTE vai avançar ainda mais no que tem sido o seu lema desde 2020: nós trabalhamos para que o maior legado da pandemia seja um mundo digital democrático, inclusivo, gratuito e livre.
Inclusão é um processo sistêmico e não polarizado de encontrar soluções para novos e velhos dilemas sociais. Nós somos inevitavelmente um único sistema. Quando perdemos essa noção, perdemos também a capacidade de acreditar e trabalhar por um mundo inclusivo.