Desigualdades e interseccionalidades: Se não é inclusiva e transformadora, não merece ser chamada de educação
Embora as desigualdades do acesso à educação tenham sido atenuadas na América Latina e no Caribe nos últimos 20-30 anos, os efeitos da pandemia ameaçam aprofundar as injustiças estruturais, reduzindo as possibilidades de capacitação e desenvolvimento humano para milhões de estudantes.
Quais grupos sofrem mais? Como seguir em frente? Essas são questões intimamente relacionadas, que são respondidas por meio do conceito e da ferramenta da interseccionalidade.
Acontece que a região não é somente a mais desigual do mundo em termos socioeconômicos, mas também existem grupos humanos em cujos corpos se cruzam múltiplas desigualdades.
À tremenda violação dos direitos humanos básicos que a pobreza confere - que na maioria das vezes é estrutural e multidimensional, afetando não apenas a renda, mas outros indicadores de deterioração da qualidade de vida -, somam-se a discriminações e a violências de gênero, origem cultural, segregação e invisibilidade das pessoas com deficiência, ou ainda as condições que os migrantes devem enfrentar.
Pandemia e violência contra mulheres
A importância da educação como fiador de outros direitos básicos, como o direito à inclusão, socialização, participação ou alimentação, hoje é restringida pelo fechamento de instituições de ensino em decorrência do surto pandêmico. A CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) estima que mais de 160 milhões de alunos tiveram suas trajetórias educacionais interrompidas. Simultaneamente, 85 milhões de meninas e meninos pararam de receber os alimentos a que tinham acesso no sistema escolar.
A crise da saúde expôs as lacunas existentes nos diferentes países em termos de infraestrutura de saúde e educação, ao mesmo tempo que tornou visíveis as lacunas no acesso à tecnologia e conectividade dentro dos países. Essa disparidade afetou fortemente as possibilidades dos setores vulneráveis, pois os sistemas de ensino utilizam métodos de ensino virtuais.
Da mesma forma, a precarização do emprego em grandes setores, no contexto de acentuada deterioração da economia, suscita preocupações quanto ao aumento da evasão escolar. As meninas, especialmente, podem ser afetadas por terem de cuidar das tarefas de cuidado familiar no lugar de suas mães ocupadas em busca de renda. Esse dever social de responsabilidade feminina no trabalho de cuidado, cunhado em matrizes sociais patriarcais, continua a ser um dos principais entraves à aspiração de sociedades igualitárias.
O contexto da pandemia tem exacerbado a violência contra as mulheres, que sofrem diariamente com relações sistêmicas de opressão nos níveis social, familiar e interpessoal.
Povos indígenas: entre a segregação e o risco de pandemia
De forma diferente, mas igualmente dolorosa, persiste a desigualdade estrutural que permeia a vida dos mais de 800 povos indígenas da região latino-americana. O distanciamento, a discriminação e a erosão das bases materiais e culturais de sua existência por sociedades ancoradas em matrizes de tipo colonial negaram a essas comunidades, antes da pandemia, grande parte dos seus direitos humanos.
Devido aos altos índices de desnutrição e à precariedade da infraestrutura, os 60 milhões de indígenas da América Latina - 10% da população total - viram sua situação piorar com a situação de risco à saúde produzida pela Covid-19.
O sistema educacional, longe de atuar como equalizador, aprofundou as desigualdades por meio da segregação cultural, sem permitir que essas nações se desenvolvessem de acordo com seus próprios valores e cosmogonias, nem contribuindo com sua riqueza de conhecimentos para o conhecimento comum.
Longe disso, a história que se ensina no sistema escolar tradicional fala pouco da infinita violência contra os indígenas ou da brutalidade contra os negros escravizados da África. Violência e exploração que são a marca indelével sobre a qual a desigualdade atual foi construída.
Além de políticas públicas de apoio decisivo, deve haver uma educação verdadeiramente inclusiva, que utilize modelos pedagógicos diferenciados de acordo com os contextos em que vivem as comunidades indígenas e em cujo desenho possam participar jovens e mulheres dessas comunidades.
Pessoas com deficiência e educação virtualizada
As pessoas com deficiência são outro grupo que se encontra estruturalmente isolado no modelo de um padrão educacional rígido e capacitador, que não as concebe como parte do corpo discente regular.
Esta situação de nem presença nem pertença ganha relevância ainda maior no quadro de uma educação virtualizada devido à emergência pandêmica. Além das barreiras usuais, existem dificuldades de acesso a tecnologias adequadas e dinâmicas de aula a distância que não contemplem necessidades particulares. Além da falta de pessoal de apoio, tem ocorrido o desligamento de muitas pessoas com deficiência da atividade educacional.
Em contrapartida, a situação permitiu a visibilidade das pessoas com deficiência, possibilitou um trabalho de agrupamento dos alunos de acordo com as suas necessidades, ajudou a pensar novas formas de avaliação e possibilitou a alternância entre o síncrono e o assíncrono.
Da mesma forma, deixou claro o papel fundamental da família como ator central no processo educativo, de lado a lado com a escola e os próprios alunos, ao mesmo tempo em que colabora para um ensino mais reflexivo e para a recriação das formas de interagir.
Situação precária dos migrantes diante da crise sanitária, educacional e econômica
A condição de migrante é outra das circunstâncias em que a desigualdade se multiplica. Grande parte dessas pessoas vive a atual crise de saúde em um ambiente precário, ao qual se soma a crise educacional. O migrante é visto como força de trabalho e não como um ser educador.
Muitos migrantes não possuem conexão fixa com a internet, não possuem equipamentos adequados ou condições de moradia com privacidade adaptadas às modalidades educacionais virtuais. Soma-se à vulnerabilidade econômica, agravada pelo desemprego alarmante, dificuldades linguisticas e tecnológicas, a falta de recursos para o apoio pedagógico aos filhos migrantes.
Os Estados devem desenvolver políticas públicas com compromisso social e ético, com ênfase na diversidade e no multiculturalismo. É necessário produzir livros e pedagogia para a pluralidade, abandonando uma tradição educacional assimilacionista.
Em direção ao futuro
É essencial aproveitar a pós-pandemia para repensar o significado e a finalidade da educação em direção a um modelo heterogêneo, diverso, inclusivo, solidário e acessível a todos.
É preciso sair de uma matriz educacional concebida no período industrial para disciplinar, padronizar, reificar. Um esquema cuja raiz íntima é naturalizar a desigualdade.
É preciso resistir às pressões de comercialização e privatização do serviço público e, em particular, do espaço educacional, que afrontam diretamente a possibilidade de reduzir as injustiças e promover uma crescente equidade.
Isso corresponde a abordar sem demora uma forma de educação intercultural, emancipadora, aberta ao outro, ao diferente. Construa um horizonte de treinamento transformador, não um reprodutor de desigualdades.
Desenvolver um modelo que ajude a desmontar o pilar cultural do patriarcado, que concebe a proteção da igualdade como um bem comum, como uma noção profunda de aplicação cotidiana.
A luta pela mudança educacional não começa nem termina no campo educacional, mas é uma luta política, nas relações interpessoais e intrafamiliares para modificar as relações de poder.
Nessa luta, a educação deve estar ao lado dos historicamente excluídos, pois uma educação que não é inclusiva não merece ser chamada de educação.
As sucintas lições expressas nesta nota foram parte do aprendizado coletivo da Quarta Sessão da XI Assembleia da Campanha Latino-americana pelo Direito à Educação, que desenvolveu o tema “Desigualdades, inclusão e educação: interseccionalidades”.
O evento foi co-organizado em parceria com a Campanha Boliviana pelo Direito à Educação (CBDE), Oxfam IBIS e Rede de Educação Popular entre Mulheres da América Latina e Caribe (REPEM) e contou com a participação no painel Karina Batthyany (Secretária Geral do CLACSO), Vernor Muñoz (Diretor de Políticas do CME), Mónica Novillo (Coordenadora da Rede de Educação Popular para Mulheres), Celeste Fernandes (Coordenadora da Rede de Educação Inclusiva), Libertad Pinto, (representando a FILAC) e Handerson Joseph (Coordenador do Programa Fronteras da Universidade do Amapá, do Brasil).
Nota produzida pela Pressenza sobre evento da CLADE (Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação).
Tradução: Renan Simão
Foto: CLADE