Exclusão nada remota

Reportagem da revista RADIS (Ensp/Fiocruz) mostra como desigualdades sociais e digitais dificultam a garantia do direito à educação na pandemia

por Luiz Felipe Stevanim – Revista RADIS (Ensp/Fiocruz)*
 

“NINGUÉM PARA TRÁS”
Para pagar a fatura da internet e manter sua rotina de estudos, Emanoel Obolari Protásio, de 17 anos, precisa colher oito balaios de café. Filho de pais agricultores, o estudante estava sem acesso à internet em casa há um ano, por conta de dificuldades financeiras, e precisou encontrar uma solução com o início da pandemia de covid-19 para continuar se preparando para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Sem aulas presenciais desde que foram adotadas medidas de distanciamento social com o novo coronavírus, o jovem agora divide seu tempo entre o trabalho na lavoura, para ajudar na renda familiar, e os estudos, enquanto aguarda o retorno ainda não previsto das aulas na Escola Estadual Fazenda Paraíso, na zona rural de Espera Feliz — município mineiro na região da Serra do Caparaó, conhecido pela produção cafeeira.

“A escola era o lugar mais apropriado que eu tinha para estudar. Depois da paralisação, tive que trabalhar muito para conseguir colocar internet na minha casa e continuar meus estudos”, conta. O sonho de ingressar numa universidade, que parece distante para os estudantes rurais, precisou esperar um pouco mais com a pandemia. “Entre trabalho e estudos, minha rotina passou a ser bem mais cansativa e essa também é a realidade de muitos estudantes que vivem no campo. No contexto de incertezas que estamos passando, a gente começa muitas vezes a duvidar se esses sonhos são possíveis”. Emanoel explica que, em sua escola, os estudantes encontram dificuldades para acompanhar as aulas remotas e manter o cronograma de estudos, por conta da exclusão digital ou pela ausência de espaços apropriados para estudar em casa. “No campo, boa parte dos estudantes não têm acesso a essas tecnologias, seja porque têm falta de recursos em casa ou por morarem em lugares onde não pega internet”.

Como era o caso de Emanoel até recentemente, 4,8 milhões de crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos, no Brasil, vivem em domicílios sem acesso à internet — o que corresponde a 18% dessa população. Se levar em conta a forma de acesso, 58% dos brasileiros nessa faixa etária acessam à internet exclusivamente pelo celular — o que pode dificultar a execução de tarefas relacionadas a aulas remotas emergenciais durante a pandemia. Os dados, divulgados em junho de 2020, são da pesquisa TIC Kids Online Brasil 2019, que busca entender como os jovens brasileiros utilizam a internet — o levantamento é feito desde 2012 pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), com apoio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e outras instituições.

Entre pressões para o retorno das aulas presenciais e a implementação do ensino remoto emergencial, alunos e trabalhadores da educação se deparam com uma realidade: a exclusão digital, que dificulta a adoção de medidas como aulas e avaliações pela internet. “Feito às pressas, o ensino remoto esbarra na falta de acesso à internet e a dispositivos tecnológicos por parte de estudantes e professoras e professores e na impossibilidade de estudo e planejamento por parte do corpo docente sobre aulas à distância que não reforcem um modelo tradicional de ensino”, aponta Luísa Guedes, diretora do Sindscope (Sindicato dos Servidores do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro) e professora dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Para ela, o retorno às atividades presenciais depende de investimento e de medidas sanitárias efetivas.

Com o calendário escolar interrompido pela covid-19, estudantes de Ensino Médio enfrentam dificuldades para se preparar para o Enem, principal forma de ingresso nas universidades públicas. Mesmo com o crescimento do número de casos do novo coronavírus pelo país, no fim de março, o Ministério da Educação bateu o martelo: as datas das provas estavam mantidas para novembro. Jovens com celulares de última geração, notebooks e espaço adequado para estudos apareciam na publicidade do MEC — ainda sob gestão de Abraham Weintraub. “A vida não pode parar”, afirmava um deles no vídeo. O recado estava dado: os estudantes deveriam “se virar”.

Como resposta, surgiu a campanha #AdiaEnem, promovida pela União Nacional dos Estudantes (UNE) e pela União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), para que nenhum estudante tivesse seu ingresso na universidade prejudicado pela pandemia. Emanoel também fez parte do movimento. Com caneta verde, ele escreveu a frase “Agricultores também querem entrar na universidade!” e tirou uma foto sua, que foi compartilhada nas redes sociais. “A juventude quer ter acesso a uma educação igualitária para todos os estudantes brasileiros, seja da periferia, das comunidades tradicionais ou rurais”, ressalta. Além de garantir que “os sonhos de estudantes por todo o Brasil não fossem interrompidos”, a campanha #AdiaEnem levantou a pauta da democratização do acesso à internet no Brasil, pontua Emanoel. “Essa é uma luta que terá de ser travada urgentemente entre as entidades estudantis e os governos por todo o Brasil para garantir uma educação inclusiva para todos”.

O movimento dos estudantes saiu vitorioso com o adiamento do Enem, em maio. O MEC, no entanto, anunciou as novas datas para janeiro de 2021, sem que haja previsão de condições adequadas para o retorno às aulas até lá. Entre a lavoura de café e a escola, Emanoel pontua que as desigualdades sociais em relação a grupos específicos — como estudantes negros, indígenas, moradores de periferia e do campo — são obstáculos à garantia do direito à educação. “Quando falamos de comunidades LGBTs, rurais, pessoas de periferia e quilombolas, elas têm nítidas desvantagens sobre a juventude de grandes cidades, privilegiadas”, reflete.

O jovem conta que seus pais eram empregados nas fazendas de café da região, até que em 2008 conquistaram a própria terra, em um assentamento por meio do crédito rural. Eram tempos difíceis, em que iam para a lavoura a pé ou de bicicleta. Durante três anos, a família morou na tulha usada para armazenar grãos e contava com energia elétrica precária. Na Escola Fazenda Paraíso, Emanoel foi presidente do grêmio estudantil e ressalta que “a juventude tem que começar a ocupar espaços políticos, porque só assim ela vai conseguir elaborar projetos que favoreçam os jovens”. “Ainda faltam muitos espaços para os estudantes serem ouvidos”, avalia. Sobre sonhos e projetos, ele cita que tem desejos muito mais coletivos do que individuais, como o fortalecimento de uma educação pública de qualidade. Costuma usar uma frase para definir sua trajetória: “Carrego no peito os mais belos sonhos de toda uma juventude”.

“NÃO É SÓ ENTREGA DE CONTEÚDO”
A pandemia não dificulta o ensino apenas pelos problemas de acesso à tecnologia digital por uma parcela dos estudantes — também o papel da escola como espaço de interação e desenvolvimento é afetado. “A escola é um lugar importantíssimo de socialização de crianças e jovens na sociedade em que vivemos”, afirma Luísa Guedes. Por isso, não basta pensar alternativas para a “entrega de conteúdo” aos estudantes, como se somente isso garantisse o processo de aprendizagem — a escola é também “um lugar que proporciona debate, de encontro com a pluralidade de ideias e com realidades diferentes, de produção de pensamento e contato com as artes”, define a professora do Colégio Pedro.

Para a educadora, a pandemia criou um cenário propício para a ampliação da modalidade de Educação a Distância (EaD) no Ensino Básico e implementação do homeschooling ou educação domiciliar — que já eram projetos defendidos pelo governo federal antes da chegada do novo coronavírus. O perigo, segundo ela, é transformar em “novo normal” o modelo de ensino precário adotado de forma emergencial na pandemia. “É importante lembrar que já havia um projeto por parte do governo federal sustentado por um discurso de ‘inovação’ e de ‘modernização’ do sistema educacional, mas que, na verdade, se traduz em menos investimentos do poder público na educação”, analisa.

Diante da impossibilidade de retorno às aulas presenciais, as propostas de ensino remoto ganharam força — primeiro entre as instituições particulares e depois mesmo para as públicas. “As escolas particulares, rapidamente, se reorganizaram para dar conta dessa demanda, como medida para garantir o pagamento das mensalidades”, constata Luísa. O resultado, porém, tem sido prejudicial, na sua avaliação, para a saúde física e mental dos estudantes, de suas famílias e dos educadores, que tiveram que se adaptar a uma atividade para a qual não foram capacitados. Ainda há o risco de exposição e de perseguição para os docentes, principalmente para aqueles que se posicionam criticamente em relação às desigualdades sociais, de gênero e raciais. “O ensino remoto emergencial ainda traz um prejuízo à autonomia do trabalho de professoras e professores que, expostos nas redes sociais, perdem o controle sobre a autoria do seu trabalho, estando sob o risco da sua fala ser reproduzida de maneira descontextualizada”, considera.

A exclusão digital é o primeiro obstáculo à implementação das aulas à distância, tanto para alunos quanto para educadores. De acordo com a professora, esse modelo baseado nas tecnologias da informação e comunicação (TICs) surge como “solução salvadora” — mas, por si só, “tecnologia não é sinônimo de inovação”. “A implementação do ensino remoto normaliza um modelo que abre caminhos para a implementação da EaD como modelo de ensino oficial, futuramente”, alerta Luísa. Por trás dessa proposta, aponta, está uma agenda empresarial que apresenta alternativas ao ensino presencial, por meio da venda de pacotes privados de ensino remoto, incluindo plataformas digitais para as redes públicas — o que significa, em outras palavras, “privatização da educação pública”.

Porém, a decisão dos servidores do Colégio Pedro II, votada em assembleia, foi a recusa pelo ensino remoto. “Não havendo acesso igual para todos, não haverá atividade de ensino e, portanto, não haverá contabilização de carga horária letiva”, afirma Luísa. Segundo a educadora, mesmo que contassem com acesso à internet e a dispositivos compatíveis com a proposta de aulas remotas, uma parcela significativa dos estudantes não teria condições de acompanhar as atividades de casa, por não dispor de espaço adequado para estudos ou pela necessidade de compartilhar o equipamento com outros membros da família. A situação é ainda mais complexa quando se trata de crianças, por não terem autonomia para gerir seus processos de ensino-aprendizagem. “Teria que ser garantida a presença de familiares que ajudassem na mediação das tarefas, o que supomos não ser possível de garantir de forma emergencial”.

O acesso à internet é considerado, pela Organização das Nações Unidas (ONU), um direito humano fundamental — não garantido para uma parcela dos estudantes brasileiros, como lembrou Rozana Barroso, presidente da Ubes, em live da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (29/6). “As nossas escolas públicas, em sua maioria, não acompanham o desenvolvimento da tecnologia”, afirmou. Para Guilherme Machado, aluno do 1o ano do Curso Técnico em Biotecnologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), a exclusão digital é uma marca da desigualdade entre os estudantes brasileiros. “Muitos alunos sumiram durante a pandemia, porque não têm acesso ao meio digital. É uma triste realidade”, relata. Segundo ele, aula remota não pode ser sinônimo de “jogar exercício”, pois isso não garante o processo de aprendizado.

Adotada de forma emergencial na pandemia, a modalidade de ensino remoto traz consigo, na avaliação de Luísa, os riscos de “uberização do ensino” travestida de “modernização”. “Esse modelo pressiona o sistema educacional a assumir um caráter tecnicista que reduz a educação à entrega de conteúdos, que é o que tem de mais tradicional no ensino”, aponta. Segundo a educadora, outra ameaça que ronda nesse contexto é a proposta de homeschooling [ou ensino domiciliar], com a substituição integral da frequência à escola pela educação doméstica. “A educação domiciliar, especificamente, atende a uma agenda liberal/conservadora que visa reduzir não só investimentos na educação, mas também a participação do Estado nas esferas sociais, além de restringir a formação de crianças e jovens aos valores da família”, critica. Restritos ao ambiente doméstico e com o espaço físico escolar substituído por um ambiente virtual, os estudantes deixariam de se confrontar com outras realidades — além de conviver e de ocupar as ruas.

“SOMOS INVISÍVEIS”
O sonho de Eriki Terena de estagiar num escritório de advocacia e se preparar para a defesa dos direitos de seu povo teve de ser adiado. Quando chegaram as notícias dos primeiros casos de covid-19 em Campo Grande, onde ele mora para cursar a faculdade de Direito na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), o indígena da etnia terena não hesitou: era a hora de retornar para sua terra e cumprir o distanciamento social na aldeia. “Se eu ficasse lá [em Campo Grande], durante a pandemia, corria o risco de ficar muito mais tempo sem ver minha família”, conta à Radis. As aulas na universidade, porém, continuaram por ensino remoto. E três meses depois, Eriki enfrenta a dificuldade de acesso à internet para acompanhar o cronograma do curso e entregar as atividades em dia.

Na aldeia, a internet é escassa. Não há torre de celular por perto, o que significa que os indígenas não contam com rede 4G. O único acesso à internet possível é por rede wifi, em apenas alguns pontos. “A exclusão digital é ainda uma barreira para a sociedade brasileira em geral, não seria diferente para os povos indígenas”, afirma o estudante de 22 anos. Oriundo da Terra Indígena Taunay/Ipegue, no município de Aquidauana, no Pantanal Sul-mato-grossense, Eriki Paiva é também biólogo e reforça que a luta pelo direito à educação entre os povos indígenas é uma estratégia de sobrevivência. “Quando entramos numa universidade, buscando conhecimento técnico, esse conhecimento volta para a aldeia quando cada de nós se formar e estiver pronto para atuar, como médico, advogado ou professor, garantindo a existência e a resistência de nosso povo”, pontua.

A desigualdade de acesso à tecnologia digital e à internet é mais um obstáculo na trajetória de estudantes indígenas que sonham em se formar na universidade — e essa realidade se agravou com a pandemia de covid-19, com a implementação das aulas à distância. “O ensino remoto nas universidades e nas escolas brasileiras desconsidera a diversidade de alunos que temos. As universidades públicas têm sobretudo a missão de serem inclusivas. Quando elas decretam o ensino remoto, deixam de pensar nesse propósito de inclusão, porque excluem pessoas que não têm acesso”, avalia. Além de escassa, a internet na aldeia também é inconstante, porque a energia elétrica ou o próprio sinal caem com frequência. “Teve dias que não consegui mandar trabalho na data estipulada. Quando chove demais e a internet fica inconstante, também deixei de fazer algumas atividades”, ressalta Eriki.

Se as barreiras digitais aumentam as desigualdades entre os estudantes brasileiros, para a juventude indígena a internet é também ferramenta de luta, por meio do exercício do direito de expressão e comunicação. “Nela nós podemos ser ouvidos. A gente pode expor nossas opiniões e obter parceiros em nossa luta. Para um jovem indígena, é realmente uma estratégia de vida e de sobrevivência”, ressalta. O indígena terena integra o grupo que monitora a presença da covid-19 nas aldeias. Na terra de seu povo, eles mantêm a fiscalização sobre quem entra e sai. “A covid-19 escancara o quanto somos invisíveis aos olhos do Estado, o quanto o Estado brasileiro é genocida e legisla a favor da nossa morte. Quando nós temos a negação do acesso à água potável por parte do presidente, quando temos negado o direito a leitos hospitalares, quando temos os jornais noticiando pouco tudo o que tem acontecido nos territórios”, pontua. Para ele, “território também é saúde” e a não garantia desse direito aos povos indígenas aumenta a negligência no contexto da pandemia.

“CRISE DENTRO DA CRISE”
O cenário da educação brasileira na pandemia é de “uma crise dentro da crise”, na avaliação de Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Segundo ela, as desigualdades estruturais “emergiram à superfície nesse momento de pandemia”. “As políticas adotadas para a educação, como a implantação de educação remota mediada por tecnologias, foram pensadas de forma alheia a essa desigualdade, sem trazer caminhos de solução dos problemas estruturais. E elas não deram certo”, avalia. Em um momento em que se exige a manutenção dos estudos em casa, estudantes brasileiros convivem com problemas de saneamento e acesso a água e alimentos, ausência de um ambiente de qualidade para estudos e falta de apoio dos pais e responsáveis, que por vezes também não tiveram garantido o direito à educação ou precisam trabalhar em cargas horárias exaustivas, aponta.

Os países que melhor responderam aos desafios da pandemia, de acordo com Andressa, foram aqueles que destinaram financiamento adequado e implementaram políticas com gestão democrática e cooperação. “O Brasil não só é um mau exemplo no primeiro ponto, por conta das políticas de austeridade ainda vigentes e da falta de investimentos adequados, como também do segundo ponto, já que as decisões foram tomadas de forma verticalizada e descoladas da realidade do país”, analisa. Segundo ela, durante a pandemia, o Brasil não tem investido na formação de professores e em insumos adequados para a qualidade na educação, seja para implementar as atividades remotas ou para a reabertura segura com condições sanitárias. “Professores e estudantes, sujeitos nucleares do direito à educação, não foram ouvidos por boa parte das redes de ensino antes de serem implementadas as políticas emergenciais e não estão sendo ainda. O resultado disso é um aprofundamento das discriminações e da exclusão escolar.”

No momento da pandemia, é preciso ainda garantir proteção social a estudantes, suas famílias e profissionais da educação, na visão da coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação — para evitar situações que comprometam a segurança alimentar, a saúde e outros direitos, como casos de exploração sexual e violência doméstica. “A escola é um dos aparelhos públicos com maior capilaridade do país e por ela também precisam passar estratégias de proteção, com aprofundamento de vínculos entre comunidade escolar e famílias, de forma a prevenir, monitorar e dar encaminhamento adequado para casos de vulnerabilidade e violações”, comenta. A política emergencial de educação deve, segundo ela, levar em conta o cenário de seguridade social em que a população está inserida e atuar como um canal de diálogo, apoio e proteção — e não ser mais um fator de pressão e estresse emocional e psicológico.

A realidade, porém, aponta para um cenário de discriminações e de aprofundamento das desigualdades sociais, educacionais e regionais, como resultado das políticas emergenciais adotadas na educação. Segundo Andressa, esse contexto inclui a tentativa de grupos privados de implantar uma política de educação a distância automatizada, gerando mais exclusão, além da precarização do trabalho dos profissionais do setor. “É um cenário grave de redução do direito à educação e é preciso ter em mente que a causa não é só a pandemia, mas também o interesse privatista de grupos que defendem uma educação pobre para os pobres e que, ainda por cima, dê lucro para eles”, reflete.

E O RETORNO?
A Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) da Fiocruz lançou o “Manual sobre biossegurança para reabertura de escolas no contexto da covid-19” (24/7), que destaca as condições necessárias para o retorno às aulas em segurança — as orientações se referem muito mais a “como” do que “quando retornar”. Em outro documento, a Fiocruz alerta que a volta às aulas pode representar um perigo a mais para cerca de 9,3 milhões de brasileiros que são idosos ou adultos com problemas crônicos de saúde e pertencem a grupos de risco para a covid-19. De acordo com a nota técnica do MonitoraCovid (23/7), isso ocorre porque essas pessoas vivem na mesma casa que crianças e adolescentes em idade escolar (entre 3 e 17 anos) — com base na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS 2013), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Laboratório de Informação em Saúde (LIS) da Fiocruz.

A Campanha Nacional pelo Direito à Educação também publicou um guia com 20 recomendações necessárias para a reabertura das escolas e o retorno às aulas. As orientações enfatizam a necessidade de diálogo com a comunidade escolar e também recomenda a adoção de protocolos sanitários no nível de cada escola, com diagnósticos, financiamento e condições seguras. “Por conta do negacionismo em relação à pandemia, estamos fazendo um processo de volta às aulas muito precipitado e que pressiona para a reabertura precoce das escolas”, avalia Andressa Pellanda. De acordo com ela, sem financiamento adequado e condições de qualidade, o retorno representa “um risco muito grave em termos de contaminação e de mortes”.

Na visão de Luísa Guedes, o fechamento das escolas no início da pandemia deixou evidente para a sociedade a gravidade da situação. “Assim, a volta às aulas tem um peso simbólico para a construção da ideia de que se restaurou a normalidade que sustentaria a posição negacionista tomada pelo governo”, avalia. No entanto, ela considera que não há condições para o retorno às atividades presenciais, sem colocar em risco a vida de estudantes, famílias e trabalhadores da educação. “A construção de uma alternativa para o retorno precisaria de políticas sanitárias e de investimento na educação que não estão sendo construídas”. Para ela, basta olhar para o contexto pré-pandemia: salas de aula com número excessivo de alunos, estruturas físicas precárias, quadro insuficiente de profissionais de educação e pessoal de limpeza, problemas de abastecimento de água e falta de material de limpeza, incluindo sabão para lavar as mãos.

“Como os sistemas de educação vão garantir a oferta de transporte público seguro pra comunidade escolar? Como é que faz para que crianças mantenham o distanciamento umas das outras e de nós professoras e professores e mais, em que concepção de educação caberia um ensino-aprendizagem de crianças pequenas que vão à escola, mas que não podem estar juntas, brincar, abraçar?”, indaga. Segundo Luísa, a pandemia traz a necessidade de olhar para as questões de democratização, igualdade e acesso. “Pensar o projeto de educação pública que se quer é pensar no tipo de sociedade que desejamos construir e essa sociedade que queremos é aquela constituída por pessoas livres, autônomas, portadoras de direitos. E pra que sejam tudo isso, é preciso estarem vivas”.

*Reportagem publicada originalmente em 07 de agosto de 2020 e reproduzida com autorização.