Com relatos impactantes, quilombolas e indígenas vão ao Congresso defender mais recursos para a educação
“Em Altamira (PA), conversei com muitas pessoas, mas uma mãe de um jovem em situação de presídio insistia comigo o tempo inteiro: ‘Eu quero a cabeça do meu filho’. Porque os meninos foram degolados e o corpo do filho dela chegou sem cabeça, e quando mandaram a cabeça do corpo, era a cabeça trocada. E a mãe se recusou a enterrar o filho sem cabeça. Ela dizia: ‘Se ele não tivesse sido expulso da escola, talvez ela não estaria procurando pela cabeça dele', relata Benilda Britto, pesquisadora membro da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras, como parte de fala realizada nesta terça-feira (26/11), em audiência pública da Comissão de Educação do Senado Federal, que debateu o novo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação).
“Garantir o Fundeb para a gente significa muitas coisas, mas [significa] principalmente a possibilidade de manter as cabeças nos pescoços”, afirmou Benilda, explicando que a exclusão escolar é um dos principais motivos pelos quais adolescentes negros estão em situação de vulnerabilidade e violência no país.
Foi com falas impactantes como essa que representantes de organizações quilombolas e indígenas - convidadas pelo Capítulo Brasileiro da Rede Gulmakai do Fundo Malala - acenaram apoio ao modelo de Fundeb debatido atualmente no Congresso Nacional que oferece mais recursos para uma educação básica de fato inclusiva a todas e todos estudantes, professores e profissionais da educação brasileiros.
O evento foi liderado pela Rede Gulmakai e apoiado pela Ação Educativa (SP), Associação Nacional de Ação Indigenista (Anai-BA), Centro de Cultura Luiz Freire (PE), Mirim Brasil (PE) e Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Na audiência, compuseram a mesa de debate o antropólogo Gersem Baniwa, representante do Fórum Nacional de Educação Indígena; Givânia Nascimento, representante da Comissão Nacional de Comunidades Quilombolas (Conaq) e Heleno Araújo, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e meninas indígenas da Rede Gulmakai.
Para Givânia Nascimento, a qualidade corretiva do fundo tem de ser priorizada. “Temos que pensar em arranjos específicos, considerando as regiões e as questões culturais. Não dá para o Brasil ser uma toalha que cobre uma cama. Nós somos muitos, muitos espaços, territorialidades. Na questão negra, nós fomos praticamente destituídos da estrutura do Estado nestes últimos dois anos”, afirmou.
A professora Maria José Sousa Silva, representante dos quilombolas de Mirandiba (PE), questionou: “Existe esse apartheid dentro das escolas. Se nós estamos em um município onde a maioria da população é negra, por que ainda não existe um olhar específico para resolver essa questão?”
Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), a partir da análise de dados do Censo Escolar de 2015, o país conta com 2.235 estabelecimentos declarados em áreas remanescentes de quilombos e com outros 552 estabelecimentos não localizados em áreas quilombolas que recebem estudantes oriundos destas áreas. Quanto aos estabelecimentos, 88,3% estão em prédio próprio, mas algumas funcionam em condições não convencionais, como templos ou igrejas; salas de outras escolas; ou na casa de professores. Há ainda escolas que funcionam em local ou abrigo destinado à guarda ou ao depósito de materiais.
Heleno Araújo, por sua vez, também apoiou o aumento de complementação da União dos atuais 10% para 40% do total das receitas dos fundos estaduais e municipais.
“O verdadeiro pacto federativo deve se dar pela maior e melhor distribuição das riquezas nacionais entre os entes federados e a população, com garantia de melhor atendimento da sociedade. E o Fundeb é um dos mecanismos que mais promovem a equidade e a qualidade na educação”, avaliou.
Vamos pintar as universidades de jenipapo e urucum
Clarisse Alves Rezende, jovem do grupo indígena Pataxó Hãhãhãe, localizado no sul da Bahia, também fez um relato pessoal.
'Vou me formar na escola da terra indígena Caramuru, mesmo lugar onde meu tio Galdino saiu há mais de 20 anos para lutar pelo meu povo e foi queimado vivo na cidade onde agora estou também'. O índio Galdino foi carbonizado e morto em um ponto de ônibus de Brasília, em 1997.
'É com as lutas e conquistas dos meus ancestrais que vou fazer um curso de Direito em uma universidade pública. Não vamos recuar e nem desistir. Vamos pintar as universidades de jenipapo e urucum. Vamos dançar nosso toré no chão da aldeia, da escola, das universidades', acrescentou a jovem de 16 anos, representante de grupo de meninas indígenas apoiado pela Rede Gulmakai, que apresentou nota técnica em defesa de modelo de Fundeb apoiado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
Caso o Fundeb não seja renovado, “imagine como vai ser o futuro das meninas e meninos que irão cursar a educação básica?”, indagou Clarisse. “Não vamos deixar que isso aconteça. Peço aos senhores [parlamentares] que façam o mesmo. Que lutem por nossa educação.'
Para o antropólogo Gersem Baniwa, do Foro Nacional de Educação Escolar Indígena, o Fundeb garantiu a abertura de mais escolas para os índios, mas a distribuição dos recursos seria influenciada por um “racismo geográfico”.
“O aluno no extremo norte da Amazônia dificilmente terá o seu direito assegurado. E não é só porque ele é índio, quilombola ou de comunidade tradicional. É simplesmente porque ele nasceu numa região de tremendas dificuldades. Existem alunos que têm de arrastar canoas horas e horas, passar por cachoeiras para poder chegar a uma escola”, ressaltou.
Respondendo a questionamento de Baniwa, Daniel Cara, coordenador geral da Campanha, apontou baseando-se em parâmetros de qualidade do Custo Aluno-Qualidade (CAQ) que o custo aluno-ano de estudantes quilombolas, indígenas e do campo dos anos iniciais do Ensino Fundamental deveria ser cinco vezes maior do que o pago em 2018.
Cara reforça a necessidade de correção de desigualdades no Fundeb. 'A gente quer um Fundeb que consiga reconhecer que atravessamos um grande processo, criando matrículas e escolas; e que a gente tem que complementar com um Fundeb como mecanismo de justiça. Esse é o Fundeb que está posto tanto na Câmara quanto no Senado Federal', afirmou.
“É inaceitável escola que não tem banheiro. [Algo que está previsto no estudo de Custo Aluno Qualidade-Inicial (CAQi).] O que é o CAQi? É garantir que cada escola tenha banheiro, laboratório de ciências e de informática, bibliotecas, quadra poliesportiva coberta, internet banda larga, alimentação escolar nutritiva, transporte escolar, professor bem remunerado, com piso salarial, política de carreira e número adequado de alunos por turma. Tem gente que diz que isso não garante [educação de] qualidade. É fácil dizer isso na avenida Paulista debaixo de um ar-condicionado. Agora, para estudar em uma escola sem ar-condicionado, é difícil dizer que isso não garante qualidade', pontuou Cara.
Segundo dados do Censo Escolar de 2017, 256 mil estudantes são atendidos por 3.345 escolas indígenas no país. Entre essas escolas, 59% não conta com tratamento de água, 57% com esgoto sanitário e 32% sequer possui energia elétrica. Cerca de 30% não funciona em prédios escolares e quase metade (46%) não utiliza material didático específico para educação indígena. Quase totalidade não tem biblioteca (3.077) nem banda larga (3.083).
Malala apoia um Fundeb pra Valer
Representantes e parceiros da Rede Gulmakai, do Fundo Malala, entregaram carta da ativista Malala Yousafzai na terça-feira (26/11) em defesa de modelo de Fundeb apoiado pela Campanha nas mãos do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e dos deputados Professora Dorinha (DEM-TO), relatora da PEC 15/2015 do Fundeb, e Bacelar (PODE-BA), presidente da Comissão Especial do Fundeb na Câmara.
Na quarta-feira (27/11), dezenas de políticos e representantes de movimentos sociais fizeram ato público no Salão Nobre da Câmara dos Deputados em defesa do Fundeb apoiado pela Campanha.
O compromisso dos organizadores do ato é com um Fundeb mais inclusivo, vinculado a parâmetros de qualidade, e com mais recursos da União.
Além de dar caráter permanente ao fundo, esse modelo de Fundeb prevê, essencialmente: (1) 40% de complementação de recursos da União; (2) implementação de sistema híbrido de distribuição de recursos; (3) e alinhamento ao CAQ (Custo Aluno-Qualidade). Saiba mais sobre essas questões aqui e aqui.
O endosso dos grupos indígenas e quilombolas a esse modelo de Fundeb tem em comum o entendimento de que o investimento público por aluno deve corrigir desigualdades em territórios vulneráveis.
A nota técnica (acesse-a aqui) apresentada na audiência pela Rede Gulmakai, representada por Denise Carreira, também integrante da coordenação executiva da Ação Educativa, detalha essa necessidade.
A nota reafirma pontos principais do modelo de Fundeb apoiado pela Campanha que está presente em propostas da Câmara - PEC 15/2015, com relatoria da deputada Dorinha Rezende (DEM-TO) - e do Senado - PEC 65/2019, relatado pelo senador Flávio Arns (Rede-PR), vice-presidente da Comissão Especial, que convocou a audiência pública.
A fala de Denise Carreira sobre a nota técnica expôs quatro recomendações para o Novo Fundeb - a serem incorporadas pelas PECs:
1) Reconhecer consórcios públicos intermunicipais e territórios etnoeducacionais como instâncias públicas para acesso aos recursos dos Fundeb, conforme previsto em Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (Resolução CNE/CEB nº 8/2012) e aos Territórios Etnoeducacionais (Decreto 6.861/2009).
2) Corrigir fatores de ponderação das modalidades de educação indígena, quilombola e do campo, promovendo equiparação de pelo menos 50% sobre o valor aluno-ano de referência, até que sejam compatibilizados com os custos reais pela implementação do CAQ.
3) Estabelecer mecanismos complementares de correção de desigualdades intrarredes de ensino e intramunicípios - como critérios de redistribuição, ponderação e adicional relativos ao IDH ou índice de vulnerabilidade dos territórios - estipulando recursos adicionais para escolas em territórios quilombolas ou indígenas.
4) Fortalecer transparência e controle social da aplicação dos recursos, por meio de acréscimo de trecho na Emenda Constitucional e norma de regulamentação.
Veja, na íntegra, o vídeo da audiência pública aqui.
Com informações da Agência Senado e De Olho Nos Planos.