Em entrevista, Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação faz uma análise profunda do contexto político e econômico, trazendo as ameaças para a garantia do direito à educação, especialmente no que tange o cumprimento do Plano Nacional de Educação e a implementação de seus mecanismos de financiamento, como o Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi) e o Custo Aluno-Qualidade (CAQ).
“O CAQi é uma proposta surgida na sociedade civil, mas vamos falar de intransigência. (…) Somos intransigentes com a desigualdade, somos intransigentes com a injustiça e somos obsessivos pela defesa do direito à educação pública, gratuita, laica e de qualidade. (…) E hoje não estamos sozinhos nessa intransigência pelo CAQi. Os estudantes em ocupação, de um jeito muito bonito, têm mostrado que estamos no caminho certo. Aliás, o que eles querem? Eles querem o nosso CAQi, somado a uma nova pedagogia, uma nova forma de ensinar. A cada escola ocupada a pauta do CAQi se fortalece. A cada escola ocupada aumenta nossa esperança e nossa vontade de trabalhar e de lutar. Como dizem os gaúchos, “não está morto quem peleia”. E quem está na Campanha vive.”
Confira, na integra:
- Em entrevista recente à Carta Capital você disse que “para Temer o povo não cabe no orçamento público”. Dias atrás (24/5) o governo interino anunciou medidas econômicas prejudiciais à saúde e à educação. Qual sua opinião?
Descobri que fui tímido na minha crítica. Quando li o documento ultraliberal do PMDB “Uma ponte para o futuro”, pensei: “para Temer, os direitos sociais não cabem no orçamento público”. Depois, em diálogo com Gilberto Maringoni (UFABC), chegamos à conclusão: “para Temer, o povo não cabe no orçamento público”. Essa foi a frase que utilizei na entrevista à Carta Capital. Tudo isso está correto, mas depois do pacote econômico anunciado no dia 24 de maio, concluí que o povo vai ser o financiador do novo ajuste fiscal recessivo, é quem vai pagar a conta, pacto e o pato. Os mais pobres são bons pagadores, diferente dos mais ricos. Os mais ricos criam offshores, subornam agentes públicos… O [escândalo do]
Panamá Papers e a [Operação] Zelotes estão ai para comprovar isso.
- Como você sintetizaria o documento “Uma ponte para o futuro” do PMDB?
É um atalho para o passado. Se esse programa for implementado, o Brasil vai regredir para antes da Constituição Federal de 1988. E o “Travessia social” é a agenda mínima de políticas sociais que cabe nessa tentativa de fazer o Brasil andar para trás. A sociedade brasileira não pode aceitar essas propostas. Aliás, o “Travessia social” é tão inconsistente que sequer foi publicado. O que saiu na imprensa foi fruto de vazamento. E como todo vazamento é seletivo, só vazou o que era menos absurdo e grave. O resto foi escondido.
- Voltando para o pacote econômico anunciado no final de maio, qual o impacto dele?
Ainda não é possível calcular. O pacote foi anunciado sem serem disponibilizados estudos, as propostas de emendas à Constituição decorrentes, os projetos de lei. Por hábito, a Campanha [Nacional pelo Direito à Educação] faz a crítica baseada em argumentos técnicos. Ainda não dá para prever com precisão o impacto desse conjunto de medidas.
- Mas considerando o que saiu na imprensa, qual sua opinião?
O que dá para concluir, pelo conjunto de declarações soltas – e pouco transparentes – feitas até aqui, é que o pacote penalizará quem possui menos renda e depende dos serviços públicos de saúde e educação. Segundo estudos do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] e do IBPT [Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário] são justamente os mais pobres os que pagam, proporcionalmente, mais tributos. Ou seja, quem mais paga tributos e colabora mais com a arrecadação do Estado é quem perderá mais com esse pacote econômico, tendo menos acesso a serviços públicos. O Brasil é o reino da contradição.
- Qual será o impacto desse pacote para o cumprimento das metas e estratégias do Plano Nacional de Educação?
Ainda não há pacote, só declarações soltas para sinalizar compromisso com o mercado financeiro. Assumindo que essas declarações manifestam as intensões do futuro pacote, o PNE pode ficar completamente inviabilizado. [Michel] Temer e [Herique] Meirelles querem desconstruir o pacto social estabelecido na Constituição Federal de 1988, que afirma o primado dos direitos sociais. Esse primado, ainda distante de ser efetivado, deve ser viabilizado por uma fórmula: os direitos sociais são financiados por vinculações constitucionais. Se for criado um teto para os gastos sociais e se forem encerradas as vinculações constitucionais, conforme foi proposto de forma solta por Temer e Meirelles, isso significará o fim da expansão de creches, pré-escolas, escolas de ensino fundamental e escolas de ensino médio. Só nessas etapas da educação básica, o Brasil precisa criar cerca de 7 milhões de matrículas até 2024, segundo o PNE [Plano Nacional de Educação]. Vai significar também interromper a democratização das universidades públicas e das escolas técnicas federais de nível médio. O Brasil também não irá alfabetizar os 14 milhões de jovens e adultos em situação de analfabetismo. E as 40 milhões de matrículas públicas existentes na educação básica não serão qualificadas, pois será impossível valorizar os profissionais da educação, com remuneração justa, política de carreira e formação continuada. Por último, será impossível melhorar a infraestrutura das escolas. A lógica é bem simples: se o recurso disponível para a educação é insuficiente hoje, se ele é incapaz de consagrar o primado dos direitos sociais como demanda a Constituição, imagina se ele for achatado e diminuído? É o que quer a dupla Temer e Meirelles.
- Se as vinculações constitucionais são insuficientes, não é melhor alterar o sistema de financiamento da educação?
De jeito nenhum. As vinculações têm dado previsibilidade e segurança ao financiamento dos direitos sociais. Com elas, os gestores públicos da educação podem elaborar políticas perenes. O Brasil ainda precisa expandir muitas matrículas, mas na educação básica o desafio maior é manter as matrículas existentes e qualificá-las, valorizando os profissionais da educação, melhorando a infraestrutura das escolas, melhorando a gestão das escolas e redes públicas, por meio da gestão democrática. As vinculações ajudam a manter as matrículas atuais, porém o volume de recurso advindo delas é insuficiente para melhorar a qualidade das matrículas, melhorar os salários e as condições de trabalho dos professores, por exemplo. Para isso, é preciso buscar novas fontes de financiamento: recursos petrolíferos, regulamentação do imposto sobre grandes fortunas, CPMF, aumento das alíquotas do salário educação. Além disso, o dinheiro público deve ser investido apenas em educação pública – caso contrário, o recurso será drenado para as parcerias público-privadas. Temer e Meirelles apontam para o arrocho do investimento público em saúde e educação ao invés de mudar a política tributária. Vão matar o PNE.
- O PNE tem sido criticado por formadores de opinião da direita e da esquerda. Por quê?
A direita sabe que o PNE representa priorizar a educação, acima de qualquer outra política. Isso pode ser sintetizado na meta de destinar o equivalente a 10% do PIB [Produto Interno Bruto] em educação. Mais do que isso, a priorização fica explícita quando esse volume de recursos é vinculado ao mecanismo do CAQi [Custo Aluno-Qualidade Inicial], criado pela Campanha. O CAQi, que deveria ser implementado até 24 de junho desse ano, fará com que o equivalente a 8% do PIB – desse total de 10% do PIB –, seja investido em educação básica. Se isso for feito, o orçamento público terá que ser repensado, exigindo auditoria da dívida pública, cobrando mais tributos de quem pode pagar mais, buscando novas fontes de financiamento. O comunicado 124 do Ipea mostra como é possível viabilizar o PNE. E é essa viabilização que exaspera a direita: vai ter mais e melhor educação e menos recursos para financeirizar o fundo público. Em outras palavras, o PNE agride os interesses do mercado financeiro. Essa é a razão da crítica.
- E as críticas da esquerda ao PNE?
Não dá para generalizar, não é toda esquerda, é apenas uma pequena fração. A parte mais relevante desse pequeno grupo entende que o PNE incorpora elementos da razão mercantil à política de educação. Eu não discordo, aliás o mesmo ocorre com a LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional], com a Constituição Federal e ocorreu em demasia com programas de governo confeccionados até aqui após a redemocratização, inclusive no período lulista.
- Mas como o PNE incorporou a razão mercantil?
A tramitação do PNE não aconteceu em uma bolha, ela ocorreu no Congresso Nacional brasileiro, com os parlamentares brasileiros, diante da chamada correlação de forças existente em nosso sistema partidário e em nossa sociedade. O parlamento, por definição, é um lugar de negociação e disputa. Em um regime democrático, nenhum parlamento no mundo produzirá um texto legal perfeito. Nós [a Campanha] jogamos o jogo e vencemos na maior parte das questões. Infelizmente, perdemos em pontos centrais, como a destinação exclusiva do dinheiro público para a educação pública, por exemplo. Contudo, isso não diminui o fato central: o PNE busca expandir, democratizar e qualificar a escolarização no Brasil. Ele também fortalece a regulação do setor privado, por meio de diversos mecanismos.
Há outros equívocos no Plano, como a remuneração por resultados, que consta da Estratégia 7.36 do PNE. Mas esses setores da esquerda precisam aprender a não jogar o bebê com a água suja do banho. O PNE representa uma grande vitória, não é uma vitória absoluta. Vitórias absolutas são quimeras: sempre as buscamos, mas quase nunca elas se realizam.
- O PNE vem sendo descumprido. Ele virou uma carta de intenções?
Se o governo interino tivesse a oportunidade, ele revogaria o PNE rapidamente – porém o desgaste é grande. Setores do Governo Dilma também revogariam, sejamos francos. A situação está difícil com o PNE, mas sem o PNE não teríamos sequer uma agenda para reivindicar e pressionar os governos federal, estaduais, distrital e municipais. Não abro mão do PNE, a sociedade brasileira também não deveria abrir. Coordenando a Campanha aprendi, de fato, duas coisas: “não se faz omeletes sem quebrar ovos” e “governo em zona de conforto não se preocupa em universalizar direitos, apenas quer se manter no poder, com o mínimo esforço”. Não vamos desistir de exigir o cumprimento do PNE, doa a quem doer, pressionando quem tiver de ser pressionado. É por isso que, no Brasil, organizamos a Semana de Ação Mundial, ano após ano, focada no cumprimento do Plano.
- Como você encara as críticas sobre o financiamento da educação no PNE, a meta de 10% do PIB não ter determinado a fonte de recursos?
Em parte, é o choro dos perdedores. Essa crítica vem dos gestores fazendários do primeiro e do segundo mandato de Dilma. Antes, tentaram afirmar que 7% do PIB era suficiente. A Campanha soltou uma nota técnica, em agosto de 2011, e mostrou que para aliar expansão do matrículas com qualidade da educação seria preciso investir o equivalente a 10% do PIB de investimento público em educação púbica. Ganhamos o debate técnico, vencemos a disputa política. Além do choro dos perdedores, essa vitória do PNE trouxe um benefício: Dilma assumiu o compromisso de viabilizar o plano. A solução foi a destinação de recursos advindos da exploração de petróleo para a educação. Sempre dissemos que é uma solução insuficiente, mas ajuda. Mas veio a crise do preço internacional do petróleo, os problemas de gestão e corrupção na Petrobrás, a crise política…
- Por que o Brasil chegou a essa situação política?
Porque a elite determinou que a conciliação lulista ficou cara e desvantajosa para ela. Aliás, esse é o motivo central do processo de impeachment. E a Carta Magna, com quase 30 anos de idade e ainda muito distante de ser efetivada, é tratada como um entrave aos interesses dos mais ricos. É aquele ditado popular, “se a farinha é pouca, meu pirão primeiro”. A elite quer garantir o pirão dela. Não é uma novidade.
- A culpa é só da elite econômica?
Não é culpa, é responsabilidade, escolha, tomada de decisão. O rompimento da elite econômica com o lulismo é um elemento central para explicar a injusta derrubada de Dilma Rousseff. Uma coisa é criticá-la como governante, outra é apeá-la da Presidência da República de forma injusta, imprimindo uma marca indelével em nossa democracia. Esse é o resultado do processo de impeachment: nossa democracia vai sobreviver, a muito custo, mas está machucada.
- Quais são os fatores que explicam o impeachment?
O governo interino de Michel Temer emerge da soma de alguns fatores. Primeiro, sempre é preciso frisar e reiterar, foi a elite econômica quem patrocinou o processo de impeachment. Em 2012, o mercado financeiro rompeu com o lulismo. Isso ocorreu após a redução da taxa de juros promovida por Dilma Rousseff. Dilma tomou a decisão certa, mas a executou de forma errada. O mesmo aconteceu com a redução das tarifas de energia: muito voluntarismo, pouca estratégia, nenhuma habilidade. Aliás, anda sobrando voluntarismo no Brasil, da direita à esquerda…
Depois de reeleita, encurralada pelo mercado financeiro, Dilma nomeou Joaquim Levy e promoveu o austericídio de 2015. Já era tarde, o rompimento já era inexorável, ela já não conseguiria mais retomar a confiança do mercado financeiro. Recentemente, Dilma disse que se arrepende do ajuste fiscal que promoveu no ano passado. O motivo é simples: ele foi letal à sua popularidade, sequer agradou o mercado financeiro e significou um rompimento quase definitivo com o eleitorado que lhe deu a vitória no segundo turno de 2014.
- E o setor produtivo?
Liderado pela Fiesp, em 2015 foi o setor produtivo que abandonou o lulismo. É até curioso… Em seu primeiro mandato, Dilma cansou de conceder desonerações às empresas. E o que fez o empresariado brasileiro? Incorporou esse dinheiro às suas taxas de lucro. A maior parte do empresariado brasileiro não gosta de investir em produção, prefere o ganho fácil. Ao invés de criar mais valor, produzir capital, obter mais lucro por meio da produção, ele procrastina. A maior parte dos empresários só sabe criar riquezas usurpando o fundo público.
- O primeiro fator é o rompimento da elite econômica com o lulismo. Quais são os outros fatores?
O segundo fator do impeachment foi a tentativa da classe política de parar a Lava-Jato, que se tornou uma operação incontrolável e voraz, cheia de erros e injustiças, mas razoavelmente independente. O recente vazamento das conservas entre Sérgio Machado e os caciques do PMDB é mais do que suficiente para comprovar esse fato.
Por último, o impeachment foi executado por uma coalizão parlamentar peculiar: ultraliberal em termos econômicos e ultraconservadora em termos civis e morais. Isso resulta em uma base parlamentar de quase 400 deputados e mais de 55 senadores. Não é uma mera articulação entre as bancadas do boi, da bala, da bola e da bíblia. Infelizmente, é algo maior e muito mais pernicioso. Eu diria até que o Brasil está produzindo uma coalizão parlamentar incivilizada: machista, misógina, sexista, racista, elitista. Parecemos caminhar rumo à barbárie.
- O empresariado e essa coalizão parlamentar ultraliberal e ultraconservadora é suficiente para manter Temer no poder?
Não. Hoje o governo interino tem três vetores de apoio: a elite econômica, essa base parlamentar reacionária e amplamente majoritária e os grandes veículos de imprensa. Ainda é preciso saber se isso será suficiente para aprovar as medidas recessivas propostas em 24 de maio. É preciso saber também se todos esses atores aguentarão permanecer juntos, apoiando um governo ilegítimo. Outra questão: os donos dos veículos de imprensa conseguirão tolerar uma base parlamentar composta por figuras como Jair Bolsonaro? E se isso tudo não fosse pouco, a cada dia, esse governo ilegítimo produz inúmeros constrangimentos, os ministros temeristas fazem declarações absurdas e tomam atitudes impensáveis. Parece piada, se não fosse dramático. Propositalmente, não citei os movimentos de rua de direita como um vetor de apoio a Temer. Eles não apoiam o governo interino, eles são essencialmente antipetistas.
- Você faz muitas críticas à elite econômica. Não há nenhum empresário imbuído de espírito público no Brasil?
Estou falando de grandes empresários. E é claro que há grandes empresários imbuídos de espírito público. Porém, eles não passam de algumas dezenas. Muito jovem, trabalhei no Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social e no Instituto Akatu pelo Consumo Consciente. Qualquer lista de empresários éticos e comprometidos passa por ali. Porém, reitero: são poucos. É só observar as investigações da [Operação] Lava-Jato e da [Operação] Zelotes. É uma boa e crua introdução ao caráter de nossa elite econômica.
- Na entrevista à Carta Capital você disse também que o Brasil não teve nenhum Ministro da Educação adequadamente preparado para comandar a área. Não foi um exagero?
Não disse que tivemos apenas ministros incompetentes, embora muitos tenham sido. Considero que alguns, inclusive, tiveram um desempenho regular. Nenhum foi brilhante.
Ao longo da história os titulares do MEC foram economistas, advogados… Até aqui, nenhum líder da pasta conheceu o cotidiano de uma escola pública, nenhum teve experiência na educação básica.
Tivemos vários médicos à frente do Ministério da Saúde. Na educação, sequer um pedagogo ou pesquisador da educação básica. Tivemos apenas uma mulher no comando do MEC, em uma área predominantemente feminina. Isso deveria chocar.
- Em suas posições públicas, você também gosta de criticar os economistas na educação…
Se economista entendesse de educação, depois de tantos ministros economistas, a situação da área, certamente, seria melhor. Educação é algo complexo, delicado. Como disse a historiadora estadunidense Diane Ravitch: “a educação é importante demais para entregá-la às variações do mercado e às boas intenções de amadores.” Os economistas são amadores e muitos deles são amadores arrogantes.
- Diante desse cenário político e econômico, o CAQi (Custo Aluno-Qualidade Inicial), criado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, será implementado esse ano, como determina o PNE?
Não será, não adianta alimentarmos ilusões – porém esse fato não pode nos desanimar. O CAQi é um instrumento de promoção da qualidade da educação, controle social, justiça social e justiça federativa. Por isso, merece nosso esforço de incidência política, defesa pública e exigibilidade.
- Por que o CAQi não avançou no Governo Dilma?
Em primeiro lugar, o MEC foi subserviente à área fazendária. Por isso, não homologou o parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE), CNE/CEB 8/2010, aprovado por unanimidade no âmbito na Câmara de Educação Básica. Em segundo lugar, setores do MEC, apoiado por maus pesquisadores, tentaram desconstruir o trabalho empreendido pela Campanha. Não conseguiram e atrasaram em 6 anos essa agenda.
- Por que essa resistência?
A questão essencial é financeira. O CAQi representa que a União [Governo Federal], no mínimo, deve transferir – por ano – cerca de R$ 46 bilhões a mais para Estados e Municípios garantirem escolas com infraestrutura digna, número de alunos por turma adequado e profissionais com piso nacional, política de carreira e formação continuada. Essa é a questão: R$ 46 bilhões a mais, por ano.
Porém, para serem subservientes à área econômica, esses setores do MEC e seus associados tentaram desconstruir a proposta tecnicamente. No entanto, não foram capazes. E isso se deu por três motivos: primeiro, o único estudo de custo aluno-qualidade realmente existente é o CAQi da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, normatizado e aprovado pelo Conselho Nacional de Educação em 2010.
Segundo, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação tem base social e força argumentativa. Nosso CAQi foi aprovado nas conferências de educação e no Congresso Nacional, em processos consistentes de incidência política e de debate público: foi a Campanha quem brigou para colocar o CAQi no PNE, contra a posição do Governo Dilma, por sua vez, apoiado por grupos periféricos do PT. E para ser justo, embora pressionados, os parlamentares petistas sempre apoiaram as posições da Campanha. Aliás, é correto frisar: quem incluiu o termo “Custo Aluno-Qualidade Inicial” na gramática das políticas públicas brasileiras foi a rede da Campanha. Ou seja, diante disso, esses setores do MEC e seus parceiros não possuíam legitimidade social, nem força de incidência política.
- Qual é o terceiro fator?
Esses setores do MEC não tinham capacidade técnica para desconstruir o CAQi proposto pela Campanha, com o inestimável e consistente apoio do professor José Marcelino Rezende Pinto (USP-Ribeirão Preto) e outros bons pesquisadores da área, como Luiz Araújo, Andrea Gouveia Barbosa, Tiago Alves, entre outros.
- Como ficou essa disputa?
Foi uma disputa desnecessária, muito alimentada por ressentimentos. Quem tentou desconstruir o CAQi da Campanha, o único estudo de custo aluno-qualidade existente até aqui, perdeu. Perdeu na sociedade e perdeu dentro do governo, pois não convenceu sequer o então Ministro Aloizio Mercadante. Mercadante assumia que o problema era financeiro e não técnico, como queriam argumentar esses setores do MEC. Ele sequer permitiu a divulgação de uma proposta ruim de CAQi elaborada dentro do MEC. Li o relatório e, definitivamente, essa comissão interna não fez um bom trabalho. Diante disso, Mercadante – inclusive –, chegou a compor outra comissão para resolver a questão, dessa vez com a participação da Campanha. Essa era uma demanda da Conae de 2014 [Conferência Nacional de Educação]. Mas já era tarde, o governo legitimamente eleito caiu e esses setores do MEC fizeram o Brasil perder, no mínimo, 6 anos.
- No domingo (29/5), Dilma disse que não sabe lidar com bandido, mas sabe lidar com movimento social. O que você narra mostra que não é bem assim…
Essa foi a manchete. As frases completas foram: “Eu não sei tratar com bandido. Eu sei tratar direitinho com movimento social. Ele, a gente respeita.”
A primeira parte é verdadeira: Dilma não se relaciona com bandidos, não aceita pressões. Isso é inegável, é só ouvir as gravações de Sérgio Machado com os peemedebistas. Porém, ela não sabe lidar com movimentos sociais. A relação só é melhor de março para cá, às vésperas da admissibilidade do processo de impeachment.
Agora, tanto com Dilma como com Lula, o Palácio do Planalto jamais foi tão mesquinho quanto setores do governo. Um bom exemplo são os setores do MEC que tentaram inviabilizar a implementação do CAQi.
- Quais foram esses setores do MEC?
Águas passadas não movem moinhos, nem vale perder tempo com eles. Como disse a Dilma, “dou murro na ponta de algumas facas. Mas eu não tenho como dar murro em todas as facas”.
- Você faz críticas a Dilma e ao governo dela, mas defendeu o mandato da presidente, inclusive discursando no Palácio do Planalto, em atividade com educadores contra o impeachment (12/4). Não é uma contradição?
De forma alguma. Dilma cometeu erros, seu governo esteve distante de ser bom, especialmente no segundo mandato. Mas independentemente disso, Dilma foi legitimamente eleita – o povo a preferiu e preteriu o Aécio. Um impeachment empreendido por uma coalizão formada pela elite econômica brasileira, pelo ultraliberalismo somado ao ultraconservadorismo parlamentar e pela tentativa de parar a Lava-Jato coloca em risco a democracia brasileira. O varguismo e o lulismo foram as duas únicas tentativas de projetos preocupados em promover direitos no Brasil, por meio da conciliação de classe. Ambos foram violentamente interrompidos, ainda que por razões e processos históricos distintos. A democracia brasileira precisa ter a capacidade de promover justiça social. O processo de impeachment contra Dilma, ainda que inconcluso, prova que nossa democracia não está forte o suficiente.
- Nesse cenário, é possível uma nova esquerda?
Mais do que possível, é necessário. Ela não pode ser uma mera evolução da esquerda que emergiu nos anos 1970 e 1980, por meio do projeto democrático e popular do PT. O surgimento do PT é uma das mais belas histórias da esquerda mundial, porém precisa ser superado, inclusive com o apoio do PT – que precisa ser generoso nesse momento histórico. Quem diz isso não sou apenas eu, é Tarso Genro, inúmeros intelectuais, o próprio Lula, até Fernando Haddad… Mas a nova esquerda também não poderá ser apenas festiva, dedicada a disputas tolas nas redes sociais, produtora apenas de narrativas. É claro que precisa superar o discurso gritado no carro de som, precisa ser menos ressentida, menos arrogante, mas precisa também produzir análises e estar apta a governar. Aliás, esse é o limite de tudo o que tem sido novo na política mundial: das jornadas de junho no Brasil, ao Ocupy Wall Street, às manifestações na Espanha, os movimentos contra o capitalismo… Todos esses movimentos e suas decorrências são capazes de dizer claramente o que não querem, vagamente o que querem – embora produzam boas palavras de ordem –, mas ainda não foram capazes de aprofundar suas pautas e propor meios para viabilizá-las: eis o desafio fundamental. São movimentos importantíssimos, meritórios, mas precisam avançar. Há sinais de esperança: as ocupações de escolas já são mais maduras politicamente do que as jornadas de junho, por exemplo. É preciso escolher a intransigência, é preciso saber fazer a proposição. Para a educação nós temos uma proposição: o CAQi.
- Última pergunta: alguns acusam a Campanha Nacional pelo Direito à Educação de intransigência na questão do custo aluno-qualidade. O que você acha disso?
O CAQi é uma proposta surgida na sociedade civil, mas vamos falar de intransigência. Somos intransigentes com o fato de que há professores que não recebem o piso, que não possuem carreira, que não tem acesso à formação continuada. No Brasil, há milhares de escolas com salas superlotadas, há equipamentos educacionais que não possuem sequer um banheiro ou rede de luz, água e esgoto. Somos intransigentes com isso. Somos intransigentes com a desigualdade, somos intransigentes com a injustiça e somos obsessivos pela defesa do direito à educação pública, gratuita, laica e de qualidade. Somos assim, temos orgulho disso e teríamos vergonha de ser e fazer diferente.
A Campanha Nacional pelo Direito à Educação não é um movimento que tergiversa. Foi assim que conquistamos vitórias no Congresso Nacional, em políticas públicas como o Fundeb, as cotas, a Emenda à Constituição 59/2009, a destinação dos royalties do petróleo para a saúde e a educação, o PNE…
E hoje não estamos sozinhos nessa intransigência pelo CAQi. Os estudantes em ocupação, de um jeito muito bonito, têm mostrado que estamos no caminho certo. Aliás, o que eles querem? Eles querem o nosso CAQi, somado a uma nova pedagogia, uma nova forma de ensinar. A cada escola ocupada a pauta do CAQi se fortalece. A cada escola ocupada aumenta nossa esperança e nossa vontade de trabalhar e de lutar. Como dizem os gaúchos, “não está morto quem peleia”. E quem está na Campanha vive.
- Como você vê a polêmica sobre a paternidade do CAQi?
É cansativa, só serve para nos tirar energia. Não existe dúvida sobre a paternidade do CAQi. Quem criou o CAQi foi a Campanha Nacional pelo Direito à Educação. E fomos nós que incidimos pela incorporação dele ao PNE 2014-2024. Isso está registrado no texto do parecer CNE/CEB 8/2010, em matérias de jornais, em programas de televisão, nos debates das conferências de educação, em notas taquigráficas das dezenas de audiências públicas que participamos, apresentando e debatendo o CAQi desde a época da tramitação do Fundeb, em 2005, 2006… O Luiz Araújo, que era presidente do Inep em 2003, quando o órgão fez um estudo sobre o custo da qualidade, escreveu um texto esclarecendo isso: a construção do CAQi é mérito da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, ponto final. Ocorre que há setores da academia da educação, de sindicatos e de uma pequena ala do PT que insistem em tentar desconstruir essa história, ricamente documentada, inclusive em teses de doutorado, livros, etc… O Brasil debatia custo aluno-qualidade desde a década de 1980, debateu um padrão de investimento em educação que garantisse qualidade desde o império, mas quem fez o único cálculo de custo aluno-qualidade foi a Campanha Nacional pelo Direito à Educação. O nome desse cálculo é Custo Aluno-Qualidade Inicial e se refere ao padrão mínimo de qualidade, exigido no parágrafo primeiro do artigo 211 da Constituição Federal. E começamos essa trajetória em 2002, no do governo de FHC [Fernando Henrique Cardoso, presidente de 1995 a 2002].
- O PNE fala de Custo Aluno-Qualidade Inicial e Custo Aluno-Qualidade, qual é a diferença?
O CAQi busca viabilizar o padrão mínimo de qualidade, determinado pelos insumos necessários para o processo de ensino-aprendizagem. Quais são esses insumos? Universalização da Lei do Piso aos profissionais da educação, política de carreira, formação continuada, escolas com número adequado de alunos por turma, bibliotecas, laboratórios de ciências, laboratórios de informática, quadra poliesportiva coberta, internet banda larga, além de acesso às redes de água, esgoto e luz. Já o CAQ representa o padrão de qualidade, que deve superar o padrão mínimo. Porém, estamos distantes desse padrão mínimo, muito distantes… Apenas 1% das escolas públicas brasileiras alcançam esse padrão mínimo em termos de infraestrutura. E o pior: a valorização dos profissionais da educação é o maior desafio e o mais imprescindível de ser superado.
- O CAQi foi criado pela Campanha, e o CAQ?
Até 2014, quando é sancionado o PNE, o CAQi era a proposta de CAQ [Custo Aluno-Qualidade] elaborada pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Era a única proposta de CAQ existente. A lógica é: listar insumos e precificar o custo, por meio do planejamento de escolas capazes de garantir o processo de ensino-aprendizagem. Os insumos são todos os que listei anteriormente [ver questão 32]. Porém, durante a tramitação do PNE, percebemos que é preciso ir além do padrão mínimo. Portanto, além do CAQi é preciso alcançar um CAQ. O CAQi, como o próprio nome diz, é inicial. O CAQ vai além do CAQi. Conclusão: a Campanha propôs o CAQi, mas em sua incidência quis ir além e propôs o CAQ. O trabalho da Campanha, portanto, representa o primeiro passo, a partir do PNE em vigor.
- Então o CAQ é permanente?
Não. Não existe qualidade permanente, estanque, então não há CAQ permanente. O CAQ é a superação do CAQi, mas o CAQ precisa ser continuamente revisitado, revisto, aperfeiçoado. Há insumos novos, sempre. Os instrumentos tecnológicos, por exemplo, vão impactar a educação. Serão importantes, mas não é possível prever quais serão. Todo dia surge uma novidade.
- O CAQi da Campanha não foi aceito por setores do MEC e há essa polêmica sobre a paternidade. Isso não enfraquece a implementação do instrumento?
Em primeiro lugar, já fomos vitoriosos. Com o CAQi, a Campanha pautou o governo, pautou o debate sobre o financiamento da educação, fez história. Sendo franco: quem diz que o CAQi não é da Campanha, que o debate sobre custo aluno-qualidade surgiu antes da Campanha, já está pautado pela Campanha. A referência somos nós, o nosso trabalho: isso fica evidente. Insisto: não há outro cálculo, não há outra metodologia. E o estudo que o MEC produziu em 2015, disponibilizado apenas após a confirmação da assunção interina e ilegítima de Michel Temer à presidência, não se sustenta em um debate minimamente sério. Já respondi em outra questão [ver questão 23], o problema é financeiro, não técnico.
- Estrategicamente, não seria melhor abrir mão dessa polêmica em torno da paternidade?
De forma alguma. Ninguém deve abrir mão da história e de sua parte na história. Houve luta, houve desgaste. A Campanha pagou e paga um preço alto por defender o CAQi, por buscar dar racionalidade ao debate sobre o financiamento da educação, propondo uma inversão da lógica: com o CAQi calculamos o que é necessário, para depois ver qual é o orçamento legal disponível para a área, demonstram que faltam recursos para se garantir uma educação de qualidade. O que está disponível é insuficiente, o direito à educação demanda mais recursos: essa é a mensagem. Enfim, não vamos abrir mão de nossa construção e de nossa luta, até porque a Campanha Nacional pelo Direito à Educação nunca fechou as portas para ninguém, nunca quis se isolar no debate. Agora, o fundamental é outra pergunta: por que querem tirar a paternidade da Campanha no CAQi, no PNE? Porque sabem que hoje a Campanha tem a capacidade de exigir o cumprimento das leis, tem força política e força pública. Isso tudo é uma tentativa de enfraquecer a nossa pauta e nosso papel nessa pauta. Mas até aqui essa estratégia se comprovou um fracasso. Quem quis isolar a Campanha acabou isolado. Eles só precisam descobrir que a Campanha não é adversária.
- Quem é o adversário?
Não existe um adversário. Por exemplo, no PNE o adversário – muitas vezes – foi o Palácio do Planalto. Em outros momentos, foram os parlamentares ultraconservadores, em outros as empresas de educação superior, as mantenedoras. Há muitos adversários, eles são plurais e passageiros. Um adversário em uma questão pode ser um aliado em outra. Há institutos empresariais que são aliados da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, como o Instituto C&A. O Instituto C&A é um exemplo de investimento social privado, respeita a autonomia e a soberania da Campanha e se dispõe a nos ajuda a refletir sobre nossa pauta, com muita compreensão do nosso papel.
- Hoje os institutos, as fundações e os movimentos empresariais possuem muita força no debate da educação, como você vê isso?
No mundo todo isso ocorre, mas no Brasil é muito grave. Eu respeito o associativismo de qualquer tipo. É um direito de cidadania, um pressuposto democrático. O problema não são os empresários se unirem, constituírem movimentos e fundações e decidirem participar da pauta da educação. Isso é natural, esse anseio é normal. O problema reside no fato dos empresários serem os únicos a serem ouvidos pelos governos. E quando não são os únicos, são os mais ouvidos. Eles foram os mais ouvidos por Fernando Haddad e por todos os seus sucessores à frente do Ministério da Educação. Aliás, o auge do movimento Todos pela Educação, de base empresarial, se deu com Fernando Haddad. Considero, inclusive, que Haddad soube fazer um bom uso do movimento, que o ajudou a ter apoio na imprensa e na opinião pública. Depois de Haddad o TPE perdeu muito de sua força pública, hoje não é um movimento central de representação do mundo empresarial, as fundações empresariais possuem pauta própria e possuem até mais protagonismo. A força do TPE está se restringindo a ocupar espaços na imprensa, como fonte.
- Se os empresários são os mais ouvidos na educação, qual espaço sobra?
Eles são os mais ouvidos pelos governos, no sentido de serem os mais convocados, de serem tratados como aliados. Mas isso não significa que são os únicos a falar. Eles não são os únicos a ocuparem o espaço público, a terem capacidade de pautar. Os empresários e suas associações buscam ser colaborativos com os governos, nós temos interlocução crítica. Debatemos com os governos, sentamos na mesa, mas sempre para exigir a consagração do direito à educação pública, gratuita, laica e de qualidade. Fazemos isso a partir da apresentação de problemas e de propostas, como o CAQi. Muito de nossa diferença está nessa postura: não acreditamos que os governos funcionam quando estão em zona de conforto. E buscamos ser melhores tecnicamente do que qualquer governo. Buscamos sempre a melhor argumentação e a apresentamos com legitimidade social, de forma coletiva, agregando as posições de centenas de entidades e pessoas espalhadas por todo Brasil. A Campanha é uma grande e aguerrida roda.
- E essa roda não tem conflitos?
Tem. Muitos. Mas há muita confiança mútua entre os membros da Campanha, uma vontade de mudar a história da educação nacional, dar a vida pelo direito à educação, acreditar no coletivo. Estar na Campanha é um exercício de liberdade e compromisso. O mais intenso exercício.