Revista Escola Pública: O valor da educação
Marina Almeida
Professor de educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), campus de Ribeirão Preto, José Marcelino Rezende Pinto foi diretor do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e é especialista em financiamento educacional. O professor também participou da elaboração do Custo Aluno Qualidade inicial (CAQi), que propõe um valor mínimo por aluno para garantir a qualidade do ensino. Na entrevista a seguir, concedida à editora Marina Almeida, José Marcelino explica a importância do financiamento no Plano Nacional de Educação e mostra como o país pode obter mais recursos para a área sem prejudicar sua economia, nem criar novos impostos. Ele ainda aponta a pouca atratividade salarial como principal causa da falta de professores, pois o país forma dois milhões de docentes a cada década, mas muitos profissionais migram para outras áreas. A sobrecarga de matrículas na rede municipal e a má distribuição dos recursos entre os entes federados são outros temas abordados.
O relatório substitutivo do projeto do Plano Nacional de Educação (PNE) foi apresentado na Câmara dos Deputados em dezembro e alterou para 8% do Produto Interno Bruto (PIB) os recursos para a educação – mais que os 7% apresentados pelo governo inicialmente e menos que os 10% propostos por diversos movimentos e na Conferência Nacional de Educação (Conae). Esse novo valor é suficiente para cumprir as metas estabelecidas no PNE? Há uma razão para a proposta de 10% do PIB. Minhas estimativas e as da Campanha pelo Direito à Educação trabalham com as metas do PNE de melhorar qualidade, salários e ampliar a oferta. Ao não assumir os 10%, na prática estamos dizendo que não cumpriremos as demais propostas, porque é a meta de financiamento que viabiliza as outras. E o que é pior, a versão adotou um conceito mais amplo de gasto com educação, então não há garantia nem de que os 8% representarão realmente uma ampliação.
O que envolve esse novo conceito? A redação permite, por exemplo, que sejam contabilizados nesse valor a aposentadoria dos profissionais da educação e os gastos com hospitais universitários, itens historicamente não considerados pelo MEC. Hoje o governo federal gasta cerca de 5% do PIB com educação, como aponta um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). De 5% para 8% seria um avanço considerável, mas com essa alteração nem essa garantia temos de fato.
De onde poderiam vir mais recursos para o país investir em educação? Um estudo recente do Ipea, “Financiamento da educação, necessidades e possibilidades”, mostra que com o sistema atual, sem criar impostos, temos potenciais de recursos. Só a diminuição de renúncias, subsídios fiscais e isenções de impostos traria um aumento potencial de mais de 3% do PIB. Se o Brasil reduzisse em 5% sua taxa de juros, que ainda seria uma das maiores do mundo, teria um potencial de mais 3% do PIB disponível para a educação ou outras áreas, além de toda a discussão do pré-sal no futuro. A carga tributária do Brasil de 1995 para cá cresceu 10%, passou de cerca de 25% do PIB para 35%. Nesse período a educação não se beneficiou em nada desse aumento e se manteve praticamente com 4,5% do PIB. Com o crescimento do PIB brasileiro e a correção de problemas como a educação de jovens e adultos analfabetos ou que não concluíram a Educação Básica, poderemos estabilizar o investimento em 6% ou 7%, que é o que os países desenvolvidos aplicam hoje.
Qual a diferença entre o CAQi e os outros tipos de financiamento da educação que temos? O sistema de financiamento educacional do Brasil parte do percentual determinado na Constituição: no mínimo 18% para a União e 25% para estados e municípios. Por mais que a lei fale que aquele é o piso, na prática torna-se o teto para os gastos. A pergunta é: isso garante a qualidade? Todos os estudos mostram que não. O investimento por aluno no Brasil hoje está em torno de R$ 150, R$ 200 por mês. É só comparar com qualquer escola privada para saber que é muito baixo. No CAQi, em vez de calcularmos quanto temos de recursos e dividir isso pelo número de alunos, calculamos qual seria o mínimo para dar qualidade ao ensino, não o ideal, mas o que garantisse um patamar mínimo, em que todas as escolas tivessem laboratório, biblioteca e uma quantidade razóavel de alunos por turma, para dar condições ao professor de ensinar. O CAQi foi pensado a partir do que é necessário e quanto seria o custo para garanti-lo, mas é o mínimo, não a média, que deve ser um pouco maior para considerar situações como a educação integral.
Faltam recursos para a educação ou falta usar melhor os recursos existentes, com combate à corrupção e formação para os gestores? Esse é um debate mundial. Há alguns economistas, principalmente, que tentam mostrar que o dinheiro não faz diferença, porque comparam escolas com diferentes custos. Tentam provar que algumas unidades têm um custo maior e o desempenho de seus alunos é inferior. Mas esse raciocínio tem duas falácias: primeiro, não podemos comparar alunos com níveis socioeconômicos diferentes. O desempenho dos alunos é muito marcado pelo que chamamos de capital cultural, que é a escolaridade dos pais – o que explica em grande parte a boa avaliação dos alunos de escola particular. O segundo problema é comparar escolas públicas entre si. Qual a diferença entre uma escola onde o custo do aluno por mês é de R$ 150 e outra onde é R$ 120? Mas quando comparo com uma escola da rede federal, onde o custo é de cerca de R$ 500 por mês, vemos a diferença. Quem diz que o dinheiro não faz a diferença matrícula o filho em escola privada, onde a mensalidade é três vezes o gasto por aluno da escola pública. Claro que se tenho um professor ruim, não basta dobrar seu salário. Mas se eu dobrar o salário de todos, poderei contratar professores melhores. Mais da metade dos docentes da rede estadual de São Paulo não são concursados. São os chamados precários, porque não passaram no concurso. E por que dão aula? Porque os que têm capacidade de ser aprovados não querem ser professores.
Mas não faltam professores no Brasil, sobretudo na área de exatas? Discordo do discurso de que falta professor. Fiz um levantamento recente sobre isso e o Brasil forma a cada década dois milhões de professores, só em cursos presenciais. Mas não precisamos de dois milhões de novos docentes a cada década, porque o professor trabalha 30 anos até se aposentar. Ou seja, não tenho um problema de falta de professor, o que acontece é que os melhores profissionais preferem prestar concursos públicos em outras áreas. Em geral, um professor com ensino superior ganha o mesmo que um profissional de nível médio no Brasil, um corretor de imóveis, um policial ou um bancário. Por isso é necessário mexer no salário inicial. Precisa ser cerca de R$ 3.000 para que o aluno que está prestando vestibular considere essa opção. O que faz uma carreira ser mais procurada é o salário. Um estudo da Fundação Carlos Chagas mostrou que apesar de valorizarem os professores, os jovens não querem seguir essa profissão, pois a consideram muito desgastante. Nas exatas em geral, mas sobretudo em física faltam muitos professores, porque se o profissional tem boa formação, vai para outra área. Precisamos ter políticas de estímulo, de bolsas e, principalmente, combater a evasão. A repetência nesses cursos é muito alta e o aluno acaba desistindo. Em química também faltam professores, porque as vagas são poucas. Em matemática não faltam tantos, porque o número de vagas é relativamente alto. Se combatêssemos a evasão nesses cursos já conseguiríamos reverter o quadro.
A educação a distância (EAD) tem sido adotada em várias redes para formar professores em regiões afastadas dos grandes centros, principalmente nessas áreas de exatas. Essa é uma boa opção para solucionar o problema? Nesses locais é necessário ter atratividade salarial. Muitos professores de física e química, se tivessem oferta de um bom salário, iriam para outras regiões, até em busca de uma qualidade de vida melhor que a dos grandes centros. Acho que a EAD deve ser usada só em último caso: ela é pouco eficaz para formar docentes, porque a evasão é muito alta. Aqui no campus da USP Ribeirão, onde dou aula, há um polo de EAD e a informação que tenho é que metade dos alunos já abandonou o curso. O problema é que o público desses cursos é o aluno que tem mais dificuldades e maior carência de formação, não é o aluno que estudou a vida inteira sozinho. Daí a evasão. É um dinheiro que está sendo jogado fora. Na região Norte, por exemplo, muito mais interessante seria criar cursos de licenciatura, como acontece nos institutos federais, oferecer bolsas para quem opta por elas nessas áreas de exatas. Existem políticas mais baratas e eficazes que EAD, que parece econômica, mas não é. Como poucos se formam, o investimento sai caro. Não basta ver o custo por aluno, mas o custo por aluno formado. Em 2011 muitos professores entraram em greve para receber o piso da categoria. Por outro lado, em muitas redes, o valor pago aos professores com formação superior está próximo a esse piso inicial da carreira.
O maior problema é valor inicial ou falta de plano de carreira? A lei ficou mal formulada nesse sentido. Estabeleceu um piso para quem possui nível médio, mas não definiu uma diferença para quem possui ensino superior. Há muita variação, mas historicamente os Planos de Carreira garantem a quem tem nível superior receber 50% mais que os de nível médio. Pelo que temos observado, o que os sistemas estão fazendo é não reajustar o valor dos professores com ensino superior. Em alguns lugares, o piso foi adotado para o nível médio e os professores com ensino superior recebem R$ 200 ou R$ 300 a mais. Faltou a lei definir essa diferença e mesmo esse piso não está sendo adotado por muitos, além da hora-atividade que também deve ser cumprida. A saída que eles têm escolhido é essa: pagam o piso e não reajustam o valor do salário dos professores com nível superior, que vai ficando muito próximo dos de nível médio.
As redes dizem que não podem aumentar os salários, faltam recursos nos municípios e estados. Como solucionar esse impasse? No sistema brasileiro, o governo federal colocava pouco dinheiro na Educação Básica e os municípios ficavam com cerca de um terço das matrículas e os estados com dois terços. Com o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) ocorreu o processo de municipalização e hoje os municípios já estão com mais da metade das matrículas da Educação Básica, o que trouxe uma sobrecarga de alunos e, portanto, necessidade também de mais professores. O mecanismo dos fundos faz com que uma parte dos recursos vá para os municípios, mas ainda assim há uma sobrecarga. Por outro lado, o governo federal melhorou o repasse com a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), mas ainda é muito pouco. Ao todo, ele coloca no Fundeb em torno de 10% dos recursos de estados e municípios, mas fica com a metade do que se arrecada no Brasil. Há um desequilíbrio. Para resolver essa equação, só com mais recursos federais. A Conae propôs que o MEC colocasse 1% do PIB no Fundeb – hoje ele coloca 0,2% do PIB –, porque assim ia viabilizar o CAQi no âmbito do Fundo. O governo federal tem um papel central nessas mudanças, mas defendo que os estados e municípios também façam um pouco mais de esforço, saindo dos 25% de hoje e indo para 30% pelo menos.
O MEC ofereceu suplementação para as redes com dificuldade para pagar o piso, mas as exigências impediram que muitas redes conseguissem recebê-la. O problema é das redes que não cumpriam as exigências? Claro que ainda há muitos desvios no âmbito municipal e estadual, mas é evidente que há uma sobrecarga, sobretudo para os municípios. Há também uma pressão muito grande no ensino médio, embora não seja responsabilidade da rede municipal. Vejo muitas cidades do interior de São Paulo, por exemplo, preocupadas em oferecer ensino profissionalizante, porque o Estado faz pouco e a cobrança é mais forte no âmbito municipal. Por isso é preciso um esforço dos três entes federados e um protagonismo do governo federal, que tem mais recursos.
O PAR, com transferências de recursos vinculados ao planejamento dos municípios, foi supervalorizado? Aumentar o Fundeb seria mais efetivo? O PAR foi uma tentativa do MEC de influenciar diretamente a política educacional, mas ele é calcado em transferência voluntária, que pode mudar se houver mudanças na política econômica ou no ministério, o que é muito comum na nossa história educacional. Seria muito melhor investir no Fundeb, que tem prazo para acabar, mas só em 2020. A União tem outros instrumentos para fiscalizar a aplicação de recursos.
Como analisa a gestão do ministro Fernando Haddad no MEC, que foi substituído este ano por Aloizio Mercadante? Tenho algumas críticas ao Haddad, mas ele foi capaz de ampliar os recursos federais para a educação, pois de 2006 para cá o esforço federal em relação ao PIB cresceu. A grande dívida desse ministro é a não homologação do CAQi, que foi aprovado pelo Conselho Nacional de Educação.