Volta às aulas em São Paulo; meu querido diário…
Dia 1: Um dia especial
Meu querido diário, como sabemos, o importante é assegurar que os alunos continuem A-P-R-E-N-D-E-N-D-O, por isso, hoje, contra o pessoal do contra, recomeçaram “as aulas” na rede estadual.
Li as críticas no face, dizem os “nossos críticos” que os últimos atos “desnudam” (não sei porque essa tara) o que tem sido a gestão da crise por Dória e Rossieli: “um apanhado de falhas, improvisos, precipitações e, cada vez mais, exposição de alunos, familiares e professores aos riscos da COVID-19”, li de um sindicalista. Dizem que a técnica, a ciência e a racionalidade que a gente se baseia é pura aparência, afinal, vejam só, segundo outro “qualquer parvo pareceria um Anísio Teixeira quando comparado ao nosso ministro da educação”. Isso tudo só porque semana passada o aplicativo Centro de Mídias de SP, que lançamos com toda a pompa que nossa fé salvacionista nas tecnologias exige, não passou no primeiro teste quando nossos 250 mil professores foram convocados a ingressar ao mesmo tempo para o “replanejamento” das atividades da rede. Bugou geral, é verdade, e daí? Nunca foi feito e fomos rápidos no improviso, rebaixamos o app à Série B (risos) - ou A2 do Paulistão (perdoem o regionalismo, afinal somos tucanos paulitas, tão bons no que fazemos que temos três séries A no mesmo campeonato!).
Cá entre nós, querido diário, quando lançamos o Centro de Mídia, governador de um lado, médico herói da COVID-19 do outro, platéia recheada de filantropos do mercado (o pessoal que doa e ajuda e não só critica, como determinadas pessoas)… Voltando, a nossa ideia era mesmo apresentar A Solução, uma plataforma para reprodução de vídeo-aulas e interação entre gestão, professores e alunos, em que todos entrariam, teríamos milhares de salas virtuais ao mesmo tempo, controle de presença, interação e modernidade, tudo grátis, já que o trânsito de dados dentro do sistema está custeado pelo estado, em contrato com as operadoras de telefonia móvel. Em resumo, um sonho. Mas na gestão pública não dá pra prever tudo, faltou combinar com os empobrecidos gregos e os devastados troianos, adoro referências cultas (risos). Tivemos que pedir ao nosso apresentador do Centro que explicasse ao vivo a eles alguns limites do aplicativo, o que foi feito na medida, deixando parecer o que não é um detalhe: a verdade é que o programinha do app que conseguimos de um solidário doador não funciona em versões antigas do Android e, estamos verificando, parece que deu problema em outros programas. Por que o muy amigo patrocinador não nos avisou deste detalhe, para que a gente não passasse essa vergonha, não sei, mas o que importa é nossa capacidade de adaptação, de focar no que interessa, a aprendizagem está acima de tudo, nossa obsessão, como diz o nosso secretário. Fizemos uma adaptação no discurso, nosso Centro de Mídia, hum… Agora passamos a dizer que é “mais um suporte” a ser completado pelo trabalho dos professores e outros meios. Se não deu para ter todos os 250 mil professores logados, como imaginar 4 milhões de alunos? Bem, o importante é “não deixar ninguém para trás”, vamos dar um jeito de controlar o ponto e a presença de outras formas, vamos inovar, nos adaptar. Daremos as aulas na TV, no youtube e outras mídias abertas, como fizemos quando o esquema bugou geral na quarta passada.
Alguém veio com a conversa que assim nós vamos consumir pacotes de dados privados de professores e alunos, que estes em geral não têm um ambiente adequado de estudo para acompanhar aulas na TV, paralá paralá… Sejamos francos, não é de hoje que professor paga pra trabalhar, correto? Assim como não foi a COVID-19 que inventou a pobreza e a fome. Eu sei que estou meio confuso nas ideias, mas é que essas críticas todas me deixam abalado e a gente dorme pouco porque ama a educação. Como se fosse um escândalo exigir dos professores e dos alunos que usem parte de seus dados de internet móvel ou wi-fi para o que é a prioridade das prioridades nacionais: o Aprendizado! Vivem baixando joguinhos, vendo séries e zapeando inutilidades… Mas daí quando se cobra que baixem um aplicativo educacional em seus aparelhos próprios, que usem a banda pra ver aulas e resolver tarefas, etc, tudo vira um escândalo. Veio até alguém de uma ONG internacional perguntar na LAI sobre “a política de privacidade do nosso app no acesso e uso dos dados pessoais dos professores e alunos!”. Um abacaxi atrás do outro pra resolver e me vem uma ONG não sei de onde exigir na LAI que eu pare tudo pra responder esse pessoal que nunca pisou numa gestão de verdade, me poupe, o que é que eu sei de dados e privacidade? Sei lá, “cavalo dado não se olha os dentes”, já pedi pra prorrogar essa resposta no SAC. Outros vêm com a ideia de que deveríamos dar tablets para os alunos e até celulares corporativos para os professores, vejam o nível do descolamento da realidade desse pessoal haha... Mas Campinas está fazendo. Querem comparar Campinas com São Paulo! Só falta agora o sindicato vir com esse exagero de direito a privacidade, querendo incluir isso nos direitos trabalhistas. E o MP? Vai questionar que estamos excluindo os alunos sem celulares modernos e exigindo que usem dados pessoais? Só falta começarem a dizer que isso é contra a gratuidade do ensino e a igualdade de acesso! Melhor atender a maioria que não atender a ninguém.
Resumindo: não está sendo fácil, mas bem, o que importa é que seguimos trabalhando, querido diário, assim: entra no sistema quem puder. Hoje, o chefe anunciou que vai entregar kits com livros para todos os alunos, os professores estão sendo convocados para voltar às escolas pra entregar esse material durante a semana, assim a gente consegue eliminar uns dias letivos lá na frente e não precisa cumprir as 800 horas nem entrar em janeiro.
Fiquei preocupado com isso de mobilizar milhões de pessoas no meio dessa pandemia, achei um pouco contraditório, mas entendo que o estado não tem alternativa, os alunos precisam aprender, é um pouco arriscado e alguns podem ficar doentes, mas a gestão precisa fazer escolhas, governar é fazer escolhas difíceis e corajosas e nós não nos escondemos. O importante é que a escola controle bem quem foi e quem não foi buscar o kit, que cobre das famílias a presença, quem não for buscar não adianta reclamar depois se o filho for reprovado… Ai, que saudades do tempo da sala de aula, desse contato com as mãezinhas… É muito difícil esse isolamento, vai deixando a gente desanimado, ainda bem que ontem o jornal parou de criticar e fez uma bonita reportagem sobre as aulas, teremos dias maravilhosos com aulas dos melhores youtubers de cada matéria, selecionados pela Fundação Lemann, verdadeiras celebridades em cada tema vão se revezar na TV e na internet, horas e horas de aprendizagem garantida, vou maratonar! Tudo combinado com as escolas, os professores da rede vão ficar na plataforma ou no "zap" controlando a presença dos alunos e respondendo a dúvidas, os diretores acompanhando, supervisores controlando tudo e agente controlando o controle, trabalho em equipe. Fico pensando como seria se a gente tivesse assim professores tão bem preparados como esses youtubers nas escolas, sem ideologia, para dar essas aulas maravilhosas pra todo mundo, ainda bem que a Lemann já disse que o projeto vai continuar pra todo mundo. Até recortei a matéria pra cobrar deles depois.
É doutor em Direito, professor da UFABC, autor de “Direito à Qualidade na Educação Básica: teoria e crítica” (Quartier Latin).