Análises

Educação inclusiva para uma sociedade inclusiva: um direito de todos nós

O Decreto 10.502 não só é inconstitucional, como também representa um retrocesso de cerca de 30 anos nos direitos das pessoas com deficiência | Por Paula Ramos e Mariana Rosa

Por Paula Ramos e Mariana Rosa

No dia 30 de setembro, fomos surpreendidos com o Decreto 10.502, que institui a “nova” Política Nacional de Educação Especial do governo federal que se autointitula “Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”. O decreto desobriga as escolas regulares a matricular os alunos com deficiência e incentiva a oferta de escolas e salas de aula especializadas para atendimento desses alunos sob o pretexto de fortalecer o “direito de escolha das famílias”, já que há “estudantes que não estão se beneficiando das classes comuns” (nas palavras do Ministro da Educação – Milton Ribeiro). O que anunciam como novo é, na realidade, um modelo de segregação das pessoas com deficiência que muito se assemelha ao que foi largamente experimentado no Brasil da década de 1960 à de 1990, quando o fracasso escolar era atribuído exclusivamente à deficiência do aluno.

De lá pra cá, a luta das pessoas com deficiência se aproximou das reivindicações por direitos humanos, escancarando as estruturas que as impunham a subalternidade e as inúmeras barreiras que dificultavam ou impediam sua participação no mundo, dentre elas, as escolas. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência é um importante marco desse movimento por direitos. Trata-se de um instrumento internacional, que foi assinado por 181 países desde 2006. No Brasil, desde 2009, a Convenção é uma emenda constitucional e garante o direito das pessoas com deficiência à educação, assegurando o “sistema educacional inclusivo em todos os níveis”, e vedando sua exclusão do sistema educacional geral “sob alegação de deficiência”. O Decreto 10.502, portanto, não só é inconstitucional, como também representa um retrocesso de cerca de 30 anos nos direitos das pessoas com deficiência.

Para aprofundarmos essa discussão, precisamos partir do princípio de que o projeto de educação é parte fundamental de um projeto de sociedade. Pensar a educação, portanto, implica discutir qual modelo de sociedade queremos. Não podemos esquecer que, no Brasil, até o final da década de 1950, pessoas com deficiência eram violentamente segregadas, mantidas em casa ou em instituições médicas, onde viviam situações de violência, abandono e exclusão. No livro “Holocausto Brasileiro: vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil”, Daniela Arbex faz um resgaste da tragédia humana vivida até 1979 no “Colônia” - hospício localizado em Barbacena (MG). Dentre os internados, havia pessoas com deficiência que foram violadas, torturadas, amarradas, obrigadas a comer ratos, beber esgoto ou urina. Essa é nossa triste herança que vem desde a Idade Antiga e Média, quando se acreditava que deficiência indicava maldição e castigo por pecados cometidos em vidas anteriores e que, portanto, as pessoas com deficiência deveriam ser eliminadas e excluídas da sociedade.

O legado de tantos anos de discriminação, exclusão, dominação e violência forjaram a sociedade em que vivemos hoje – estruturalmente capacitista. Aliás, o preconceito em relação às pessoas com deficiência, até pouco tempo atrás, sequer tinha nome. Hoje, podemos chamar de capacitismo as situações em que características humanas são categorizadas e hierarquizadas, resultando em discriminação e desumanização em razão da deficiência. Nomear é, assim, intenção de transformar a realidade. Por isso, há que se ressaltar: o Decreto 10.502 é, também, capacitista. Considera razoável segregar as pessoas com deficiência para que “não sofram discriminação”, uma afirmativa que carrega, em si, as estruturas de dominação e discriminação que supostamente quer evitar.

Se queremos uma sociedade anticapacitista, é preciso aprender sobre justiça, alteridade, valorização das diferenças como parte crucial do processo de humanização. E, para aprender esses valores, é necessário experimentar a inclusão de fato nas escolas. Na educação inclusiva, as instituições especializadas, que tiveram importante papel até pouco tempo atrás, modificam seu mandato original, de segregação; e constroem um modo de atuação complementar à escola regular no processo de inclusão da pessoa com deficiência. Não a substituem, porque é a escola que deve garantir o acesso ao currículo e às condições para que todos possam aprender, baseado no princípio de que cada estudante fará isso a seu modo, no seu tempo. Não se trata de escolha, é direito!

Como dizer que a inclusão não tem dado certo, se ela não tem recebido o investimento adequado até agora? A solução a ser proposta por um governo que se diz preocupado com a discriminação passa, essencialmente, por sanar as barreiras à aprendizagem. Para isso, é preciso garantir acessibilidade dos espaços e do currículo, ampliar a oferta de Atendimento Educacional Especializado, investir na formação de professores para ampliação do repertório de práticas pedagógicas inclusivas, investir em tecnologia assistiva, em gestão democrática das escolas, em remuneração e valorização dos profissionais da Educação e na participação das famílias.

É nosso direito e nosso dever, como cidadãos, reivindicar todas as condições necessárias para que a educação se dê para todas as crianças e jovens, na escola comum. É nosso direito e nosso dever responsabilizar o Estado por omissão. Não é nosso direito aceitar o retrocesso social que cerceia a participação das pessoas com deficiência, porque isso significa responsabilizá-las por um problema que é nosso. Quando refletimos sobre garantia de direitos, podemos enumerar uma série de lacunas que enfrentamos, sobretudo, as populações mais vulneráveis. Moradia, saneamento e alimentação, para citar apenas três exemplos, também são direitos aos quais muitas pessoas ainda não têm acesso. Mesmo assim, não desistimos deles. Por que o faríamos em relação à educação inclusiva? Ou será que ainda não estamos convictos de que as pessoas com deficiência são sujeitos?

É inegável que muitas famílias estão cansadas de viver tendo que reivindicar os direitos de seus filhos e administrar constrangimentos. O tempo das mudanças sociais não corresponde às urgências de quem precisa enfrentar a discriminação cotidianamente. Nesse contexto, o Decreto 10.502 se torna sedutor porque anuncia uma medida retrógrada como se fosse solução nova e mágica. Como se não estivesse vinculada a interesses econômicos de instituições que se beneficiarão de repasses das pastas da Educação, da Saúde e da Assistência Social, enquanto a escola pública permanece ainda mais desassistida. Faz parecer que é um gesto benevolente de quem, enfim, tira as pessoas com deficiência e suas famílias do abandono, quando, na realidade, exime-se da responsabilidade de garantir aquilo que é direito.

Mais do que isso, o Decreto também é perverso, na medida em que divide as famílias em campos opostos. É preciso que estejamos atentos, fortalecidos e unidos, não divididos. O cansaço da luta se resolve com apoio mútuo para o enfrentamento que nos é comum. Direitos conquistados não são negociáveis, não é possível aceitar um retrocesso sob a justificativa de que a realidade que vivemos não é satisfatória. Não podemos nos conformar nem com o que está ruim, nem com o que se anuncia pior. Não aceitemos menos do que é nosso direito, do que nos é devido: a educação inclusiva. Um mundo em que as pessoas com deficiência possam ocupar todos os espaços é um mundo melhor para todos nós. Nenhum passo atrás, nenhum direito a menos.



Mariana Rosa é mulher com deficiência, jornalista, educadora, mãe da Alice, que tem paralisia cerebral e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência.

Paula Ramos
Paula Ramos

É professora do Instituto NUTES de Educação em Ciências e Saúde da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e mãe da Clarice (21 anos) que tem uma síndrome rara (Cri-du-Chat).