O caso dos meninos de Belford Roxo e o papel do Estado
Sete meses de espera
Esta semana, o caso dos meninos desaparecidos de Belford Roxo teve mais um desdobramento com a denúncia de que os corpos estariam enterrados às margens de um rio da região. Há sete meses, Lucas Matheus (8 anos), o primo dele, Alexandre da Silva (10 anos) e Fernando Henrique (11 anos) não retornaram depois que saíram de casa no domingo, dia 27 de dezembro, por volta das 10h30, para brincar no campo de futebol ao lado do condomínio onde moram, no bairro Castelar. Uma ossada foi encontrada durante as buscas da polícia, mas a análise do Instituto Médico Legal concluiu que os restos mortais encontrados não eram das crianças e sim “vértebras caudais de animais”. As buscas permanecem, enquanto familiares aguardam respostas.
O caso tem chamado a atenção da sociedade pela falta de informações e demora no avanço das buscas. Em meio a informações desencontradas e hipóteses pouco frutíferas, existe um ruído constante que se relaciona com a presença da polícia no território e as dificuldades para realização das investigações em áreas controladas pelo tráfico de drogas. Alguns indícios apontam para esse entrave. A família recorre à polícia somente no dia seguinte ao desaparecimento. A polícia começa a ouvir as testemunhas uma semana depois. Apenas em março o Ministério Público do Rio de Janeiro apresentaria a imagem de uma câmera de segurança, na qual os meninos andavam pela calçada de uma rua em um bairro vizinho, registrada no dia do desaparecimento.
Enquanto o caso permanece longe de solução, esse quadro de morosidade sugere um problema que vai além das pautas jornalísticas: por quais razões o cuidado com a infância é reduzido no discurso corrente a uma relação de causa e efeito? O que nos leva a tratar o desaparecimento como episódico e, consequentemente, dissociado de um debate sobre políticas públicas de proteção à infância?
Nos casos de desaparecimento de crianças, o assunto costuma se encerrar quando são concluídas suas causas e os efeitos, momento em que a pauta é confinada nas margens dos arquivos policiais e midiáticos. Todavia, se o que foi comoção ontem está suscetível a se perder como pauta hoje, teríamos uma hipótese que não pode ser explicada apenas pelas dinâmicas do fluxo de produção de notícias. Em claras palavras, se o caso de desaparecimento de crianças segue o mesmo roteiro de esclarecimento e arquivamento, nossa hipótese é a de que o núcleo gerador de comoção, isto é, as crianças, já ocupavam as margens do visível antes mesmo de desaparecerem. Significa dizer que a violência perpetrada contra crianças periféricas é episodicamente visível porque essas crianças são habitualmente invisíveis aos olhos públicos. Assim, como sociedade, ficamos condenados a esse círculo vicioso, no qual a violência contra as crianças assume a forma de “mais um caso” destinado ao arquivamento.
No limite das pautas
O caso dos meninos desaparecidos de Belford Roxo é mais uma peça no mosaico da violência infantil estruturada. Um tema que vem assumindo relevância junto a atores sociais, como a Anced, Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Cedeca Ceará, Fórum Nacional de Trabalho Infantil, MST e Sefras, é o das infâncias invisibilizadas. Lucas, Alexandre e Fernando Henrique tinham família, viviam em um território marcado pela violência e pela penetração rarefeita do Estado, o que segundo a narrativa oficial justifica a dificuldade de atuação. Em um webinar promovido pela Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ) houve inclusive um debate entitulado “O misterioso desaparecimento dos meninos da Baixada Fluminense: a criança pobre e negra é mais difícil de achar?”.
A relação entre violência e crianças e adolescentes pobres, negros ou que estão vinculados a recortes como o campo, as populações indígenas, quilombolas ou o sistema socioeducativo, é sempre apresentada com uma dificuldade maior de se fazer percebida no debate público. É como se existisse uma margem que define quem está em pauta e quem está no limite extremo da suspensão de direitos. O caso desses três meninos nos faz refletir sobre os diferentes entrelaçamentos que poderiam ser chamados de fatores de invisibilidade. Abrangem desde a cor da pele até a relação da polícia com esse território. Entre tantas perguntas, existe uma que segue ecoando nos últimos sete meses: se fosse uma criança branca e de classe média, em um bairro privilegiado do Rio de Janeiro, este caso já teria sido solucionado?
O procedimento e o problema
Quando três crianças desaparecem, suas famílias e a sociedade contam com um recurso indispensável para a solução do problema. A prestação de um serviço público oferecido pelo Estado sob a forma de instituições encarregadas de garantir a segurança é apresentado publicamente pela instauração de um instrumento de apuração da existência de ilegalidades, o inquérito policial. Além de constatar ilegalidades, o documento possui um caráter processual cujo objetivo é investigar o fato e a procedência de sua autoria. Em termos práticos, o que aconteceu, como aconteceu e quem foi o responsável pelo desaparecimento dos meninos – essas são as principais perguntas que orientam a investigação e que nutrem a esperança de solução. Em tese, trata-se de um procedimento apresentado como universalmente oferecido a todos os cidadãos.
Já na prática, o debate fica por conta da relação presença versus ausência do poder público. De um lado, pensamos nas periferias como territórios abandonados e esquecidos. De outro ponto de vista, a atuação do poder do Estado, inclusive sobre áreas periféricas, poderia ser defendida por aqueles que reconhecem no trabalho de professores, de agentes de saúde, de assistentes sociais e de representantes das forças de segurança pública sua ação efetiva. Em comum, debate-se a ideia de que o Estado atua de forma insuficiente, condição admitida entre representantes públicos e a sociedade. Como resultado prático, enquanto parte da sociedade não percebe a atuação dos serviços públicos, ou identifica na principal forma de atuação a truculência policial, outra perspectiva justifica sua forma de atuação como determinada pelos limites das condições de trabalho oferecidas.
Assim, diante do desaparecimento das crianças em Belford Roxo, o Estado é cobrado e, ao mesmo tempo, acusado de ser negligente, uma vez que não ofereceu garantias capazes de protege-las. Assume uma postura de reparação, de uma instância que não esteve presente no ocorrido, mas que precisa estar presente no curso de sua investigação. Até aqui, observamos o caso policial citado a partir da atuação do Estado. No entanto, a inversão do olhar permite considerar a violência contra a infância a partir da margem, lugar onde a visibilidade é parcial, duvidosa e imprecisa. Nesse ponto, reside a dupla condição das infâncias precarizadas: são visíveis de fato e invisíveis de direito. Vejamos como opera essa dupla condição.
Visibilidades encobertas e invisibilidades propositais
De fato, os meninos não são invisíveis; seus corpos possuem uma materialidade. Suas famílias estão presentes, lutando pelos seus direitos, mesmo que seja o de ter seu corpo encontrado ou que o desaparecimento tenha uma explicação. A invisibilidade não é no sentido literal, pois eram Lucas, Alexandre e Fernando, cada um com suas histórias de vida, enlaces familiares e experiências individuais. Possuíam certidão de nascimento e registro de identidade, frequentavam a escola e tomavam antitérmico quando tinham febre. Assim como tantas outras, as três vidas se materializavam na dimensão inquestionável da visibilidade, isto é, a existência de corpos animados, corpos que corriam e brincavam, na condição de crianças. Então, o que aconteceu com os corpos? Como essa resposta fica a cargo dos investigadores, façamos uma pergunta mais próxima das nossas pretensões de refletir sobre as infâncias invisibilizadas: como o Estado, essa única instância detentora do monopólio legítimo da violência, se relaciona com esses corpos?
Se a invisibilidade literal só faz sentido nas obras de ficção científica, resta-nos um outro significado para o não percebido. A invisibilidade infantil, no sentido metafórico, é aquela que o filósofo Michel Foucault sintetizou na fórmula da biopolítica como gestão das vidas: o poder consiste em fazer viver e deixar morrer. Um conjunto formado por incontáveis técnicas e procedimentos com o objetivo de exercer o controle populacional e, desse modo, gerir a vida, cuidando de umas em prejuízo de outras. Em termos práticos, na lógica do racismo de Estado, “a morte é também a garantia pessoal da vida”. O nexo entre a promoção de algumas vidas em prejuízo de outras, do fazer viver uns deixando morrer outros, é o modus operandi desse duplo aspecto da condição da infância nas periferias.
O caso dos meninos desaparecidos permite pensar uma dimensão que vai além dos debates sobre presença versus ausência do Estado. A dupla condição das crianças invisibilizadas, de serem visíveis de fato e invisíveis de direitos, é desdobramento da atuação dúbia do Estado nas margens. As periferias constituem-se como zonas de fronteira entre o legível e o ilegível, o lícito e o ilícito, o legal e o ilegal, uma zona de indiscernibilidade, nas palavras de Giorgio Agamben, áreas nas quais a garantia de direitos está continuamente sujeita a suspensão e a vida se torna nua. É na fronteira entre o legível e o ilegível que fazemos o esforço de compreensão do significado das práticas de violência, como o caso do desaparecimento dos meninos de Belford Roxo.
A vida precisa ser controlada, regulada, contabilizada, registrada, cuidada. Uma vida requer manutenção, precisa ser promovida através da garantia de direitos. Pensar o caso dos meninos desaparecidos é problematizar a questão da invisibilidade como mecanismo de controle da população baseado na lógica do “deixar morrer”. Segundo a filósofa Judith Butler, existe um manejo tático das vulnerabilidades das populações pelo Estado. Qual o mecanismo que torna alguns grupos mais vulneráveis que outros? Para a antropóloga Veena Das, as vidas que compõem as populações vulnerabilizadas estariam naquilo que ela chamou de margem, particularmente a forma pela qual as margens se relacionam com o Estado. Esse mecanismo permite entender como o caso dos meninos permanece sob atenção do Estado ao mesmo tempo em que permanece obscuro e indeterminado. Está localizado às margens, não fora das margens. Não se tratam de pessoas “esquecidas” ou “abandonadas” pelo Estado, mas de pessoas sujeitas a terem a garantia de seus direitos constitucionais, inclusive do direito à vida, suspensos. Estado de exceção apresentado oficialmente como episódico ou temporário, mero recurso para casos de proteção, preservação da segurança e contenção de ameaças. Ocorre que, como nos advertiu Walter Benjamin já em 1921, do ponto de vista dos oprimidos, o Estado de exceção não é vivido como exceção e sim como regra.
Uma política passiva
Costumeiramente, observamos acusações de que o Estado é negligente ao não possuir estratégias de desvitimização. Mas ser negligente é o mesmo que ser desatencioso, descuidado e, de fato, não é isso que percebemos. Existem procedimentos, aparatos legais, instituições e equipamentos burocráticos capazes de garantir os direitos dessas crianças. A palavra “negligente” realiza a crítica do Estado baseada em uma suposta ausência ou omissão, no entanto, sua forma de atuação está mais próxima de uma atuação fantasmagórica: aparece nas ações repressivas e desonera-se nas ações de cuidado e preservação da vida. É nesse sentido que somente é possível pensar em infâncias invisibilizadas sob a condição de uma invisibilidade proposital, fruto de uma forma de gestão das populações pelo Estado. Sob esse prisma, podemos considerar que o desaparecimento dos meninos de Belford Roxo não é acontecimento aleatório ou episódico, mas inscrito em um conjunto de políticas voltadas para uma direção bastante específica: a de consentir a morte pela vulnerabilização da vida. Dessa forma, crianças de periferias tendem a continuar desaparecendo, enquanto o Estado segue desvinculado da responsabilidade direta. Atualmente no Brasil, a EC 95/2016 é um exemplo de política que reflete uma escolha do Estado de não promover a segurança e vida, como é seu papel, visto que os orçamentos de áreas fundamentais como Saúde, Educação, Assistência Social e Segurança Pública estão contingenciados. Assim, diferentes dimensões da vida seguem precarizadas, contabilizadas nas pautas como “casos” e acumuladas nas margens como destroços de sofrimentos entre os vulnerabilizados.
(IMAGEM: Reprodução/YouTube)
Eduardo Oliveira é doutor em Ciências Sociais e professor.
É doutoranda em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ, membro do Comitê Rio da rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e é consultora para a plataforma Cada Criança-100 Milhões no Brasil, coordenada pela Campanha.