Análises

Como retomar uma Educação Inclusiva e Integral?

Uma Educação Inclusiva é necessariamente Integral; uma Educação Integral é necessariamente Inclusiva

Artigo originalmente publicado no Centro de Referências em Educação Integral.

Nosso projeto de país estabelece dois grandes propósitos para a Educação: que todas crianças, adolescentes, jovens e adultos estejam matriculados na escola mais próxima a sua casa e que sejam garantidas participação e aprendizagem para todas e todos estudantes. Entretanto, os dados apontam que o direito à Educação tem sido experienciado de maneira desigual pelas pessoas a depender de suas características em termos de raça, etnia, condição de deficiência, gênero, identidade de gênero, orientação sexual, local de nascimento e moradia. Refletir sobre quais de nós não vivenciam plenamente seus direitos é uma estratégia potente para romper esse ciclo perverso de violações cotidianas e fundamental para fortalecer a Educação Inclusiva. 

Após a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência ter se tornado parte de nossa Constituição Federal em 2008, mesmo ano do estabelecimento da Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, fica posto um desafio: o necessário deslocamento da centralidade dos impedimentos físicos, sensoriais, intelectuais e mentais para a compreensão dos efeitos gerados pela relação entre essas características e as barreiras existentes em nossa sociedade.

Mesmo não sendo trivial, tal mudança tem possibilitado que repensemos a questão da não garantia do direito à educação às pessoas com deficiência, a partir do principal fator que impede tanto o acesso como, em muitas situações, permite a negligência em termos dos direitos de aprendizagem: a barreira atitudinal ou social. 

Ao longo desses 14 anos, a Educação Especial, cujo público elegível são as pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades / superdotação, tem sido reorganizada para se efetivar como modalidade que atua na quebra de barreiras com vistas à acessibilidade plena, de forma articulada, transversal e colaborativa a todos os demais níveis, etapas e modalidades de ensino.

Educação Inclusiva é dever de toda a sociedade

Dentro dessa concepção inclusiva e equitativa, referendada no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4 da Agenda 2030, a Educação Especial tem como sua principal finalidade a equiparação de oportunidades com autonomia, contribuindo para que todo nosso Sistema Nacional de Educação se torne inclusivo. 

Trata-se, pois, de um objetivo partilhado, comum. E, diferente da percepção intuitiva que possamos ter, a promoção da Educação Inclusiva não é uma tarefa exclusiva e apartada, não se relaciona a uma única modalidade. 

Este projeto de educação e de sociedade nos estimula a  considerar que incluir não é apenas colocar quem estava fora para dentro, e sim mudar estruturas e atitudes de modo que ninguém fique para trás. É um processo que nos mobiliza a considerar bebês, crianças, adolescentes, jovens e adultos, sem exceção, como sujeitas de aprendizagem, orientando e organizando nossas ações educacionais para seu reconhecimento e desenvolvimento pleno.

Educação Inclusiva: potencial para combater preconceitos  

Educação Inclusiva nos coloca numa trilha oposta a visões que reduzem:

  • as pessoas a determinadas características
  • os conhecimentos a algumas de suas dimensões
  • e as maneiras de conhecer, comunicar, interagir ou comportar-se a meios e modos predeterminados

Ao substituir o “ou” pelo “e”, compreendemos que Educação Inclusiva tem a ver com a ampliação da qualidade da educação para todas as pessoas e com a validação cotidiana de corpos, comportamentos e saberes diversos e múltiplos por meio da convivência entre todas as pessoas. Esse reordenamento da cultura escolar inspira reflexões e fazeres que contribuem para a formação de seres humanos capazes de reconhecer a igualdade de direitos nas diferenças humanas, atendendo ao compromisso ético de deslegitimar exclusões e formular contrapontos capazes de enfrentar a cultura do fracasso escolar. A partir de um trabalho colaborativo e antidiscriminatório, essas mudanças instigam a desierarquização de saberes interna e externa à escola, o que favorece a tecitura de redes em cada território, em cada espaço-tempo no qual as relações se estabelecem e se reestabelecem. Ao considerar suas potencialidade, gestamos coletivamente oportunidades que rompem com a lógica do encaminhamento – aquela na qual as situações desafiadoras são apenas endereçadas de maneira desarticulada e descompromissada.

Assim, para além da erradicação do capacitismo, a oportunidade de perceber e eliminar barreiras conceituais, curriculares, comunicacionais e atitudinais em prol da participação plena de todas as pessoas têm potencial imenso de confrontar o racismo, o machismo, o classismo, à LGBTQIA+fobia e induzir relações sociais, culturais e interpessoais na perspectiva dos direitos humanos.

Educação Integral e Inclusiva: indutora de políticas públicas intersetoriais

Definitivamente, Educação Inclusiva não é sinônimo de Educação Especial. Seu par dialógico é uma educação comprometida com a cidadania, que considera todas as dimensões da vida e que tem compromisso com a formação do ser humano, a aprendizagem e o desenvolvimento integral de todas as pessoas: a Educação Integral. 

Em outras palavras: uma Educação Inclusiva é necessariamente Integral; uma Educação Integral é necessariamente Inclusiva. 

Embora esses pressupostos já estejam estabelecidos em nossa legislação, vivemos em um momento da história brasileira no qual precisamos reafirmar princípios que direcionem a necessária reconstrução de políticas públicas estruturais. 

Nessa trajetória por uma educação cidadã que não deixa ninguém de fora, políticas focais apartadas dos objetivos gerais não mais nos servem, como é o caso do Decreto 10.502/2020, suspenso pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por conta de sua inconstitucionalidade. 

Em contraponto, as diretrizes e marcos nacionais devem sustentar o movimento de reflexão e ação colaborativa e cidadã no território como instrumento potente e estratégia eficaz para uma educação que inclui todas as pessoas. 

Neste sentido, a Educação Integral e Inclusiva, para além do espaço escolar, é indutora da formulação de políticas públicas intersetoriais, chave para reimaginar nossos futuros juntos e fazer um novo pacto para a Educação, como afirma a Unesco em relatório elaborado pela Comissão Internacional sobre os Futuros da Educação. 

Com o propósito de realizar as necessárias transformações na Educação brasileira, além de atuar localmente para ressignificar as vivências de estudantes e suas famílias em termos de direitos integrados e integrais, a partir de 2023, somos chamadas a trabalhar juntas na elaboração do nosso próximo Plano Nacional de Educação (PNE). 

Ao olharmos para o que já temos, podemos propor metas nacionais que se articulem e sustentem ações de equidade em cada escola para que todas as pessoas se desenvolvam em todas as suas dimensões.

Será com a consolidação de um Sistema Educacional Inclusivo e Integral que garantiremos que ninguém fique de fora da nossa aposta educacional e cidadã e nos colocaremos novamente em sintonia com nosso projeto de país: um Brasil mais justo, digno e democrático!

Liliane Garcez
Liliane Garcez

É idealizadora e articuladora do COLETIVXS. É mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, psicóloga pelo Instituto de Psicologia da mesma universidade e administradora pública pela Escola de Administração da Fundação Getúlio Vargas. Tem especialização em Políticas Públicas para a Igualdade na América Latina pelo Conselho Latino – Americano de Ciências Sociais. Trabalha como consultora em projetos nacionais e internacionais e é autora do livro “Educação Inclusiva de Bolso” pela Editora do Brasil. Em 2022, recebeu medalha de mérito da Pró-Inclusão (Portugal) pelas contribuições para uma educação escolar culturalmente mais desafiante e socialmente mais justa e equitativa.