Análises

Quatro mantras e seis desafios para a descolonização do financiamento educacional

Há uma lógica que é repetida todos os dias: é o mantra dos colonizadores

Artigo originalmente publicado no site da CLADE, por José Marcelino de Rezende Pinto

O professor e pesquisador da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), José Marcelino de Rezende Pinto compartilha suas reflexões resultantes do acompanhamento que tem desenvolvido sobre a composição do financiamento educacional, as implicações que considera convergem em sua gestão. 

As narrativas sobre os recursos destinados à educação são baseadas em frases e ideias pré-concebidas que se repetem continuamente em vários espaços em que a opinião pública é formada, desde a mídia até as conversas cotidianas da população na rua ou no ônibus.

Por isso o pesquisador considera importante desconstruir os mitos que se instalam na opinião geral e com uma perspectiva crítica desmantelar o que chama de “mantras” que se impõem como verdades absolutas, salienta que “há uma lógica que é repetida todos os dias nos editoriais dos jornais e nas páginas de organismos multilaterais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), e qual é esse mantra dos colonizadores”, referindo-se a ideias novas ou velhas que apoiam a neocolonização. 

Além disso, para José Marcelino é necessário apontar alguns desafios quanto ao financiamento da educação na América Latina e no Caribe, isto com o intuito de garantir uma escola de qualidade. São sintetizados 4 mantras e 6 desafios-chave para a descolonização do financiamento educacional.

Mantra 1: Não são necessários mais recursos para a educação, porque não se trata de falta de dinheiro. 
A educação de qualidade tem um custo significativo e representa um esforço orçamental por parte do Estado. Os países ricos não abrem mão de gastar cerca de 6% do seu gigantesco Produto Interno Bruto (PIB) em educação, mas sugerem isso como recomendações para países com renda básica mais baixa, diz o pesquisador. Consequentemente, é evidente que a educação de baixa qualidade resulta de uma educação barata.

A mesma disparidade é observada na maioria dos países da região da América Latina e Caribe quando se comparam os custos médios por aluno na rede pública com as anuidades pagas nas instituições privadas.

Nesse sentido, o fato de as universidades serem gratuitas significa um problema para a América Latina. No entanto, na opinião do pesquisador, no mundo desenvolvido predominam as mensalidades gratuitas ou mínimas para a educação em geral e especialmente a universitária. 

Mantra 2: Os professores recebem os salários de que precisam.
O corpo docente não tem um rendimento ruim, especialmente repetido por especialistas da área financeira e econômica, como no Brasil Samuel Pessoa, ligado à Fundação Getúlio Vargas, entidade que promove unidades de negócios e corporativismo. 

Referindo-se à pesquisa de Gabriela Moriconi, da Fundação Carlos Chagas, mostra-se o contrário, ou seja, nos países desenvolvidos a maioria do corpo docente se dedica exclusivamente a uma escola, enquanto no Brasil muitas vezes trabalham em mais de uma escola, ultrapassando a atenção de 300 alunos para cada professor. Adicionalmente, indica-se que há uma tendência hegemônica de priorizar o conteúdo, concentrando o currículo no ensino de línguas (português no caso do Brasil) e matemática, diminuindo cada vez mais a consideração de horas dedicadas a outras disciplinas, como história e geografia. 

Mantra 3: As organizações internacionais têm a autoridade necessária.
As organizações internacionais colocam o orçamento a cargo das dotações nacionais, ou seja, a interferência do Banco Mundial e da OCDE justificam que “sabem o que é melhor para os colonizados”, tomando a expressão de José Marcelino. O que tem sérias repercussões na distribuição e qualidade da educação que responde aos interesses que outras organizações priorizam, é prejudicial ao financiamento de qualidade para escolas gratuitas em áreas populares das cidades. 

Muitas pessoas que se dedicam a assessorar em financiamentos vêm do setor empresarial ou do mercado financeiro, deslocando o foco do direito para o da mercadoria. Um fator inclusivo seria considerar os posicionamentos dos cidadãos, participantes das instâncias públicas que defendem uma posição mais crítica nesse sentido. 

O especialista aponta a importância de avaliar o custo que é atribuído a cada aluno, não apenas tendo o desempenho escolar como indicador, pois isso conduz a uma seleção discriminatória e segregacionista. 

No relatório publicado pela CLADE, Banco Mundial: diretrizes para a educação e projetos financiados na América Latina e no Caribe, afirma-se que o Banco Mundial (BM) tem apoiado o setor educacional por meio da cooperação técnica e financeira para o desenvolvimento da educação básica e ensino superior. Essa assistência é prestada por meio do cofinanciamento de projetos desenvolvidos no âmbito dos governos latino-americanos. Até novembro de 2019, por meio de seu site, o Banco Mundial informa que 48 projetos na área de educação recebem financiamento na América Latina e no Caribe.

A OCDE é uma organização de cooperação internacional composta por 38 Estados, apenas o México e o Chile se encontram na região, seu objetivo é coordenar políticas com uma abordagem predominantemente econômica.

Mantra 4: A qualidade da educação é avaliada com exames. 
Padrões de avaliação padronizados com critérios internacionais registram o desempenho dos alunos. A queixa do especialista expressa preocupação com esse critério que justifica a neocolonização, quando se limita aos resultados de determinados exames. Diferentes países participam de sistemas internacionais de avaliação, como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), porém, essas avaliações, que se resumem em testes padronizados a que os alunos se submetem, estão longe de ser uma verdadeira avaliação dos processos e ambientes de aprendizagem. 

O Relatório PISA é um estudo realizado pela OCDE em todo o mundo que mede o desempenho acadêmico de alunos do ensino fundamental e médio em matemática, ciências e leitura.

Desafio 1: diversidades como oportunidades.
Um dos maiores desafios da região é evidenciado pela permanência das desigualdades, José Marcelino refere-se ao coeficiente de GINI, no qual o Brasil está registrado com 54, a Bolívia com 62, e o país que tem um indicador um pouco melhor é o Uruguai com 39. 

Isso confirma que na região existe uma diversidade de realidades que coexistem, aquelas que existem entre o campo e a cidade, um caso importante é o do Paraguai, em que 59% da população vive em áreas rurais, das quais 43% são localizado na diversidade étnica; no caso do Brasil, 51% da população é negra, enquanto em Cuba é de 36%; por outro lado, a presença da população indígena é muito forte na Bolívia com 62% e no México cerca de 15%. A composição diversa das identidades torna os projetos educativos mais complexos, para além do desafio da língua, também a integração do diálogo intercultural com uma abordagem descolonial, por isso a compreensão das diversidades merece um esforço de ruptura com a lógica colonial nos contextos educativos.

Segundo José Marcelino “quando analiso as condições educacionais da população indígena, vemos que elas são muito piores que as da população branca, o mesmo acontece com a população negra, em comparação com a população branca, quando analiso as condições educacionais da população rural, também são muito piores. Para citar um exemplo do Brasil em que cerca de 30.000 escolas rurais foram abandonadas nos últimos 20 anos”.

O índice de GINI é um instrumento econômico utilizado para medir a desigualdade salarial, geralmente é utilizado para medir a concentração de renda entre os habitantes durante um determinado período de tempo. Também pode ser usado para medir a desigualdade de riqueza. Oscila entre 0 e 1, onde 0 corresponde à igualdade perfeita (mesmo rendimento) e 1 corresponde à desigualdade perfeita (uma pessoa tem todo o rendimento e as outras nenhuma).

Desafio 2: A arrecadação de impostos poderia garantir a educação.
O financiamento da educação coloca em debate a parcela da riqueza social que passa para as mãos do Estado na forma de impostos. Os países com os melhores níveis educacionais do mundo são também aqueles com alta carga tributária. Portanto, quem defende a educação pública de qualidade deve defender uma tributação significativa. Enquanto isso, se a economia é pobre e o PIB pequeno, uma alta carga tributária de pouco adianta. 

Mesmo considerando os limites do crescimento possível em um capitalismo com crises permanentes, os países devem enfrentar o desafio de melhorar a distribuição de renda com maior igualdade.

Na América Latina e no Caribe, com exceção de Cuba, existe um baixo nível de arrecadação de impostos em relação ao PIB. No Paraguai, por exemplo, a arrecadação de impostos é de apenas 13% do PIB, no Brasil a situação é um pouco melhor, próxima a 32%, e em Cuba é estimada em 41,15%.
No entanto, este indicador deve ser questionado, pois expressa apenas uma percentagem proporcional ao PIB em termos de arrecadação de impostos, mas não a referência que lhe é atribuída em função do número de habitantes. 

“Se o PIB por habitante for menor, se representar uma taxa menor para cada habitante, mesmo isso pode ser insuficiente, então a Bolívia tem uma arrecadação de impostos em torno de 27% do PIB, o que representa US$ 2.500 de recursos atribuídos por habitante, mas no Brasil é de 5.000 dólares”, diz José Marcelino. Em contraste, a Argentina tem uma carga tributária um pouco menor que o Brasil em relação ao PIB, mas aloca quase 7.000 dólares por habitante. Comparativamente, a Argentina tem 8 vezes mais que o Peru e 9 vezes mais que o Paraguai.

A média destinada a cada habitante nos países ricos varia entre 15.000 dólares, o que se traduz em receitas que melhoram as políticas de cuidados.
Há uma injustiça generalizada nas economias nacionais da região, já que o grosso da tributação recai sobre o consumo dos setores empobrecidos, que pagam os impostos embutidos nos preços das mercadorias, enquanto as elites recebem renda dos ganhos de capital e não do salário da classe trabalhadora. 

As condições econômicas reproduzem desigualdades e favorecem o acúmulo de propriedades como objeto de riqueza, que também são exoneradas como heranças. Grupos milionários se beneficiam de benefícios fiscais, declarações complacentes e evasão fiscal. No Brasil, ele destaca que o imposto que vem dos rendimentos sobre lucros e ganhos de capital é de 19% e sobre imóveis é de 4%, na Dinamarca cerca de 65%, Portugal com 31%. 

Produto Interno ou Produto Interno Bruto (PIB) é o conjunto de bens e serviços produzidos em um país durante um período de tempo, geralmente um ano, é um indicador frequentemente utilizado para conhecer a riqueza nacional.

Desafio 3: O peso da dívida pública desacelera o investimento social.
O orçamento que cada país rende em pagamentos da dívida pública constitui outra situação pouco comentada pela mídia, aponta o professor, “a Colômbia gasta 7% do seu PIB com serviços da dívida, o Brasil 4,5% do seu PIB. É o que o governo gasta para pagar os juros a cada ano.” A maioria dos países latino-americanos e caribenhos gasta cerca de 5% do PIB em pagamentos da dívida pública. Além disso, há um quadro especulativo de quem compra dívida pública cobrando juros altos. 

Para quem monitoriza o financiamento da educação, é interessante analisar a percentagem do PIB que é atribuída à educação, mas esta é uma estimativa porque em termos reais pode significar um orçamento inadequado com base nas necessidades educativas. José Marcelino cita o que a Coreia destina com 13 mil dólares, país que tem se destacado pelos resultados do PISA, que supera dez vezes o valor da Bolívia, que é de 1.300 dólares por aluno, compara também a Finlândia, que gasta três vezes mais que o Brasil, o sendo este último um total de $ 3.000 por aluno.

Descolonizar o financiamento significa questionar esses mitos propagados pelo Banco Mundial, confrontar as notícias falsas ou “fake news” promovidas por organizações empresariais interessadas na educação como oportunidade de negócio, afirma a docente. A venda de pacotes educacionais para a rede pública tem sido muito atraente e rentável para muitas empresas, como o Instituto Ayrton Senna, continua, esses pacotes incluem material didático, treinamento, apoio, entre outros. 

O Mapeamento das Tendências da Privatização da Educação na América Latina e no Caribe citado por José Marcelino, ao mostrar a fragilidade da soberania sobre as questões públicas e o risco constante de interferência das empresas, destaca “como parte desses obstáculos, nas últimas décadas , nossa região testemunhou a implantação de políticas que introduzem a lógica mercantil no campo educacional, e sob seu abrigo cresceram verdadeiras indústrias ligadas à extração de lucro na educação. Neste sentido, longe de se limitar à simples existência de escolas privadas, que têm um crescimento desordenado em vários países, a privatização avança, sob múltiplas facetas e desempenha um papel notável nos processos de fragilização do público”.

Soma-se às preocupações a promoção das chamadas escolas voucher no Chile e no Brasil, bem como seus equivalentes na Colômbia, modalidades sob as quais se justifica a apropriação de recursos públicos para que sejam direcionados às escolas privadas, tornando o orçamento de escolas públicas estaduais mais precárias. 

Desafio 5: Orientar a justiça social com encargos tributários de acordo com o lucro. 
A exigência de condições de pagamento atempado da riqueza poderá conduzir a uma otimização do processo de cobrança, de forma a reduzir o pagamento indireto de impostos que incide sobre o consumo de bens e serviços; A alíquota poderia ser cobrada, por sugestão de José Marcelino, sobre latifúndios, lucros e heranças. Na região o imposto de renda é muito baixo, no Brasil é de 27,5%, enquanto nos Estados Unidos é de 45%.

Desafio 6: Processos de avaliação com enfoque formativo.
Muitas vezes, para José Marcelino, as avaliações são reduzidas a provas ou concursos, tanto para alunos como para professores, o que é um instrumento muito limitado e circunstancial, que não considera elementos do ambiente de aprendizagem, como condições familiares, comunitárias. A qualidade não pode ser atribuída como uma ação causal do desempenho do trabalho docente ao desempenho dos alunos, devem ser feitos esforços para gerar outros processos de avaliação e monitoramento, “não vamos usar um mecanismo para punir ou punir o professor. A escola é um elemento diagnóstico e formativo”, afirmou. Existem outros componentes relevantes como a capacidade de argumentação, a compreensão, a autonomia, o posicionamento crítico e a formação para a cidadania.

O trabalho docente deve promover consensos e debates democráticos na comunidade educativa, com condições dignas de trabalho. Cabe questionar o ambiente de clientelismo político em que se tornou a atribuição de cargos no setor educacional e, ao contrário, estimular uma gestão democrática inclusiva em que o corpo docente resulte de um processo eleitoral na comunidade escolar, valorizando as capacidades de conflito gestão e diálogo, para que quem ensina esteja realmente satisfeito com seu trabalho, “se a comunidade participa do processo escolar, também para gerar comprometimento com ele”. Privilegiar espaços como o conselho escolar com recursos repassados ​​às escolas facilita a definição de prioridades em consenso, tendo em vista que estão representados interesses pela defesa das escolas públicas.

Mais recursos por si só não implicam necessariamente melhor qualidade de ensino e para que isso aconteça é necessário um maior controle social da utilização dos recursos, o que só é possível através da criação de mecanismos de gestão democrática nas escolas e nos sistemas educativos. 

Apelo à descolonização do financiamento
Tomando as afirmações do pesquisador, são necessários esforços de defesa para exigir mais recursos para a educação, buscando uma abordagem descolonial, para garantir a qualidade baseada no gasto por aluno, sabendo que atualmente está alocado em média entre um terço ou um quarto na região de o que é considerado mínimo. 
No Brasil, houve uma experiência sobre o custo-qualidade por aluno proposta pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação do Brasil , membro da CLADE e da Campanha Mundial pelo Direito à Educação . Essa experiência suscitou preocupações sobre os elementos de uma escola de qualidade, salário adequado, proporção de alunos por turma, dedicação docente exclusiva, ações afirmativas para situações de vulnerabilidade, entre outros.

As principais iniciativas promovidas são o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). Avanço significativo na equalização dos gastos estudantis da educação básica em sistema federal, com papel fundamental para o Estado federal, embora persistam desafios para garantir um padrão aceitável de qualidade de ensino. A discussão pela continuidade do Fundeb abre perspectivas positivas ao dar respaldo constitucional ao conceito de Custo Aluno da Qualidade (CAQi) como contribuição do governo federal.

Os projetos educacionais são de longo prazo, então a educação deve ser uma política de Estado permanente, não pode ser conjuntural ou paliativa, deve focar na qualidade da educação pública, para que possamos alcançar uma educação descolonizada, ou seja, uma educação justa, democrática e qualidade para todos, concluiu José Marcelino. 

José Marcelino de Rezende Pinto
José Marcelino de Rezende Pinto

É professor titular da Universidade de São Paulo e ex-presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca).