Análises

O empresariado e o financiamento da educação: que saudades de Salvador Arena

Resposta à Priscila Cruz, presidente-executiva do Todos pela Educação

Resposta à Priscila Cruz, presidente-executiva do Todos pela Educação

 

Em texto publicado no dia 15 de outubro, intitulado “Por um Fundeb mais justo e solidário”, Priscila Cruz, presidente-executiva do Todos pela Educação (TPE), busca contestar os argumentos presentes no artigo “Todos pela educação, ou pelo mercado?”, publicado em 26 de setembro na Carta Capital. 

Cabe esclarecer, em primeiro lugar, que meu primeiro texto foi motivado pelo artigo: “Não podemos constitucionalizar a ineficiência na educação”, assinado por Cruz e publicado na Folha de S. Paulo no dia 24 de setembro.

Em segundo lugar, quero me desculpar caso o artigo tenha parecido assumir “tom agressivo”, como alega a articulista. Em tempos em que é necessário defender direitos humanos e sociais inscritos na lei às custas das vidas de tantas pessoas que por eles lutaram e lutam, nem sempre tem sido possível adotar um tom “moderado”. Aliás, moderação não tem sido suficiente para afastar os ataques que a educação vem sofrendo...

No entanto, entendo que não fiz “ataques pessoais” a ela ou a outros membros de sua organização. Entendo que ao defender ou refutar argumentos, é preciso mencionar os nomes das pessoas que assumem as posições institucionais, caso contrário o debate fica prejudicado.

Em anos de magistério aprendi que não se faz política em prol do bem comum sem debate público franco. Para isso, é necessário que indivíduos assumam suas posições, bem como as instituições às quais pertencem. Contestação não é ofensa, mas, ao contrário, é respeito ao outro e, principalmente, às questões públicas – espaço em que deve prevalecer os valores cidadãos, a cultura e o conhecimento científico. Sendo assim, quando se trata de financiamento da educação no Brasil, tema sobre o qual venho pesquisando ao longo de toda a minha carreira, o Todos Pela Educação (TPE) deveria saber que não é tecnicamente correto atualizar monetariamente o gasto/aluno de R$ 4.300 (R$ de 2015) para R$ 5.500 (R$ de 2019), sem considerar a evolução efetiva da receita de tributos.

Ora, como os dados comprovam, os recursos que compõem a cesta do Fundeb não acompanharam a inflação no período, particularmente, em função das políticas recessivas implantadas no país desde 2015. Além disso, só no âmbito do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), principal autarquia federal que destina recursos à educação básica, as despesas empenhadas, corrigidas pela inflação, sofreram um corte de R$ 22 bilhões entre 2012 e o orçamento proposto pelo Executivo para 2020.

Para quem fala em crianças pobres como estratégia de convencimento, ignorar os 1,5 milhões de crianças e jovens de 4 a 17 anos que, obrigatoriamente, deveriam estar matriculadas nas escolas, e não estão, não nos parece correto. Também é incorreto desconsiderar 1,3 milhão de crianças de 0 a 3 anos que deverão frequentar as creches até 2024, como determina o Plano Nacional de Educação (PNE). Além disso, há que se considerar, nas simulações do novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), mais de um milhão de matrículas atendidas com recursos públicos em instituições conveniadas. Sem falar nos milhões de jovens e adultos cujas matrículas desabaram desde que o Fundeb foi criado. Ou seja, o novo Fundeb deve contemplar não só crianças e jovens que frequentam, hoje, as escolas, mas também aqueles que nelas deveriam estar matriculadas e não estão, em obediência às metas previstas no PNE. É importante ressaltar que, a cada criança ou jovem incluído na educação básica, são necessários mais recursos no Fundeb para garantir o mesmo padrão de financiamento.

Mas, o que impressiona na posição do TPE é uma clara guinada a favor da tese tão repetida pelos economistas ‘do mercado’ (pagos pelo setor financeiro para o qual prestam consultoria) de que a questão central em educação é eficiência e não necessidade de mais recursos. Já disse, e repito, essas mesmas pessoas matriculam seus filhos em escolas privadas cuja mensalidade é o dobro, ou o triplo do gasto anual de um aluno na rede pública. 

Antes de avançar nesse argumento da guinada descomedida do TPE para o mercado, cabe ressaltar que, em sua origem essa organização teve um compromisso mais efetivo com a melhoria da escola pública. Já foi bafejada no governo Lula com um decreto federal do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), que trazia em sua marca o nome da organização. Sensível à pressão da sociedade civil, cabe dizer que Lula pode se orgulhar de ser o primeiro presidente em nossa história que mais do que dobrou em relação ao PIB o gasto federal com manutenção e desenvolvimento do ensino (conceito adotado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), chegando a atingir 1,2% do PIB. Infelizmente, em tempos de Temer e Bolsonaro já estamos desabando para 0,9%, mesmo com o PIB em queda.

Entre os fundadores do TPE estão também Cesar Callegari e Mozart Ramos Neves, que foram fundamentais na aprovação do Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi) no Conselho Nacional de Educação, proposta elaborada em sua versão atual pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE), mas com longa história no Brasil e que deveria ter sido implantado desde 2001, nos termos da Emenda Constitucional (EC) 14/98. Os estudos da CNDE indicam que implantar o CAQi implica em um complemento federal ao Fundeb de 50%. Pouco atuante no Congresso Nacional até a chegada de Michel Temer ao poder, o TPE também não acusou de ‘compromisso com a ineficiência’ o PNE (lei 13.005/2014) que determinou a ampliação do gasto público em educação de forma a atingir 7% do PIB (agora, em 2019) e 10% até 2024. 

A questão que fica, então, e que me causou indignação, é: por que uma acusação tão grave (“não vamos constitucionalizar a ineficiência”) contra um esforço nacional de construção de uma proposta de Fundeb permanente, que está unindo Câmara dos Deputados e Senado Federal, com apoio de prefeitos e governadores de todo país, a partir da proposição da sociedade civil que verdadeiramente atua para a consagração do direito à educação?

Para se opor a esse consenso, a base argumentativa do TPE é muito frágil: um gráfico que simplesmente busca relacionar Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) tomado como referência inequívoca de qualidade da educação com gasto/aluno, análise muito simplificadora, como mostra o estudo de Bruno Holanda (Universidade Federal de Goiás) realizado a pedido da CNDE, apresentado em audiência pública na Câmara dos Deputados, ocorrida em 1 de outubro deste ano.

Ora, a vasta literatura sobre o tema já mostrou que essa relação entre financiamento da educação e indicadores oriundos de avaliações de larga escala é complexa e arriscada, devendo-se considerar na análise do desempenho das crianças o capital cultural das famílias (fator de maior impacto), os indicadores de desigualdade e as condições de oferta (PINTO, 2014). Com base nos dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) ressalta que, mesmo para países ricos (que já tendem a ter notas maiores no PISA), o gasto por aluno deixa de fazer diferença no resultado apenas para valores acumulados (6 a 15 anos) acima de US$ PPP 35.000 por aluno (OCDE, 2012). E o Brasil está muito distante disso.

Em geral, os resultados do PISA se relacionam com: PIB per capita, grau de desigualdade e gasto/aluno. O Brasil vai mal nos três quesitos. Retomando uma vez mais o estudo de Bruno Holanda para a CNDE e apresentado na audiência já referida, concluiu-se que, para atingir a nota 6 do Ideb, municípios em situação de maior vulnerabilidade socioeconômica precisariam de R$ 7.800 (R$ de 2017) por aluno/ano para ter 50% de probabilidade de atingir esta nota. Ou seja, rigorosamente fala-se em probabilidade, que representa possibilidade, e não certeza. O aprendizado dos estudantes não pode ficar entregue à sorte e ao subfinanciamento do número mágico de R$ 4.300 (R$ de 2015), ou R$ 5.500 (R$ de 2019) divulgado pelo TPE.

De toda forma, em especial para as crianças de famílias mais pobres, as condições de oferta (qualidade dos professores, infraestrutura e equipamentos, condições de trabalho) fazem toda a diferença. Isso é o CAQi (Custo Aluno-Qualidade Inicial) e o CAQ (Custo Aluno-Qualidade): garantir condições básicas de funcionamento e permitir a todas as escolas ofertar patamares progressivos de qualidade.

Voltando aos dados, simulações feitas por Thiago Alves (UFG) e apresentadas pela CNDE na audiência anteriormente citada, indicam que o modelo híbrido, que assegura os recursos da complementação federal para quem já os recebe e amplia a participação da União no fundo (em dez longos anos) para 40%, praticamente equalizaria o padrão de atendimento, cumprindo o que determina o artigo 211 da Constituição Federal: a União deve prestar assessoria técnica e financeira a estados e municípios com o objetivo de equalizar as diferenças e consagrar um padrão mínimo de qualidade.

Sobre a polêmica em relação ao sistema distributivo, entendo que o modelo híbrido é a proposta mais justa, pois considera a garantia dos investimentos feitos no âmbito do Fundef e Fundeb, mas, para os recursos adicionais, incorpora o critério do VAAT (Valor Aluno Ano Total), modelo proposto nos seminais estudos do consultor legislativo da Câmara dos Deputados, Claudio Tanno, por iniciativa e a pedido da deputada Profa. Dorinha Seabra Rezende (DEM-TO). 

O Fundeb não pode jogar os mais pobres contra os menos pobres. Boa parte dos estados e de suas capitais que recebem complemento federal possuem ainda desafios gigantescos de atendimento e de qualidade, e isso não decorre de ineficiência de seus prefeitos ou governadores como o título do artigo do TPE dá a entender.

A questão central do financiamento da educação básica no Brasil não é a ineficiência, mas a baixa participação federal que gera desigualdade e baixo valor no gasto por aluno. No caso do Fundeb, o complemento da União é de apenas 9% do total de recursos do fundo. E quanto maior a recessão, menos recursos o governo federal aporta ao fundo. Boa parte dos programas federais para a educação básica é financiada com recursos do salário educação, ou seja, não implica em esforço do Executivo. Aumentar a contribuição federal ao Fundeb de 0,2% do PIB para 0,8% (em 10 anos), como Câmara e Senado pretendem, corresponde a menos de 10% do pagamento de juros e encargos da dívida previstos no Projeto de Lei Orçamentária de 2020.

Por que o TPE considera isso irresponsabilidade? Até Bolsonaro já declarou apoiar a complementação de 30% (em cinco anos) prevista na proposta formulada pelo Senador Jorge Kajuru (PSB-GO). Cabe lembrar que mesmo a nefasta EC 95/2016 abre exceção à complementação federal ao Fundeb.  Talvez seja por disputar o fundo público com os recursos hoje carreados para os rentistas que o aumento da destinação de recursos federais ao Fundeb gere tanta revolta em alguns segmentos do mercado.

A minha hipótese é que o TPE mudou definitivamente de lado, ou assumiu a posição defendida pelo mercado financeiro e não produtivo. E isso não é responsabilidade de sua diretora-executiva, mas de quem financia a organização empresarial.

Em tempos em que se usa tanto o santo nome do Senhor em vão, vale lembrar a frase de outro messias: “Diga-me com quem andas e eu te direi quem és”. E hoje, o TPE é essencialmente uma associação que reúne donos e funcionários de bancos e agentes do mercado financeiro em sua presidência e governança. Os bancos odeiam gastos públicos, com exceção daqueles associados aos juros e encargos da dívida pública, os quais, por sinal, escapam integralmente dos efeitos da EC 95/2016, aprovada, na verdade, para proteger esses interesses.

Quando olhamos os bilionários do mundo vamos encontrar de tudo, mas, ainda achamos muita gente que ganhou dinheiro produzindo e vendendo mercadorias. Até porque a tributação sobre a herança nos países desenvolvidos é elevada (no Brasil não passa de 5%). Os bilionários de lá usam sua fortuna para, por exemplo, construir universidades, como é o caso da Universidade de Stanford, que hoje (com dinheiro de fundação brasileira) recebe estudantes que vão aprender a defender as ‘delícias do mercado’. Ao perderem seu filho único, os fundadores de Stanford decidiram: os filhos da Califórnia serão nossos filhos. No Brasil, entre os bilionários, predomina quem vive de renda, seja da sua ou da administração da riqueza alheia. Muitos deles herdeiros de rendas passadas. 

Para entender a cabeça de quem vive de juros, vale recuperar as declarações do Presidente do Itaú, Cândido Bracher, que afirmou que uma alta taxa de desemprego (12%) é algo positivo porque o país pode crescer (?) sem pressões inflacionárias e que ele nunca havia visto em sua carreira uma situação macroeconômica tão boa. Boa, obviamente, para ele e para os interesses que ele representa.

Minha sugestão aos bilionários que se acotovelam no TPE: sigam o exemplo de Salvador Arena, empresário de sucesso e muito trabalho, criador, em 1942, da Termomecânica e que, no início dos anos 1960, buscando criar uma escola modelo, deu início ao Colégio Termomecânica. Sugiro aos nossos Safras, Sucupiras, Lemanns e Sales que fundem ‘escolas modelos’, de preferência nas periferias das grandes cidades, com ingresso por sorteio. Construam e mantenham escolas de qualidade para os mais pobres e calculem seus custos.

Fazendo isso, verão que o esforço de consenso entre deputados e senadores de aumentar o compromisso da União com a educação básica é uma postura altamente responsável e que trará grandes ganhos ao país. Sugiro também ao conselho de governança do TPE que emita uma nota questionando a postura, essa sim, irresponsável, dos filiados à Federação Brasileira de Bancos (Febraban) que contestam na justiça o pagamento do Imposto Sobre Serviços (ISS), tributo essencial para o financiamento da educação em milhares de municípios brasileiros.

 

1. Pinto, J. M. de R. (2014) Dinheiro traz felicidade? A relação entre insumos e qualidade na educação. Arquivos Analíticos de Políticas Educativas, 22 (19). http://dx.doi.org/10.14507/epaa.v22n19.2014

2. Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (2012a). Does money buy strong performance in Pisa? Pisa in Focus, [s. l.], n. 13. Disponível em:

https://www.oecd.org/pisa/pisaproducts/pisainfocus/49685503.pdf

 

José Marcelino de Rezende Pinto
José Marcelino de Rezende Pinto

É professor titular da Universidade de São Paulo e ex-presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca).