Análises

A rota da autocracia e o boi inominável

Por que políticos abandonam o lugar de prestação de contas em nome de acusações baratas

Por que políticos abandonam o lugar de prestação de contas em nome de acusações baratas

Conjuntura é uma combinação de acontecimentos e circunstâncias que se desenrolam em determinado momento, formando um emaranhado de eventos que podem se opor ou se agrupar ordenada ou desordenadamente. Convergindo ou divergindo, os acontecimentos concorrem entre si, temperando alianças e disputas nas mais variadas frentes onde as lutas fazem morada. Encontram a sua face mais emblemática em suas extremidades, a festa como expressão máxima da aliança e a guerra como a expressão máxima da disputa. Conjunturas, em geral, possuem uma infinidade de dados e interpretações que se movimentam de maneira multivetorial, o que atesta seu caráter complexo. Nesse texto, vejamos como ensaiar perfis na cena política, a partir de olhares para a conjuntura atual.

A regra do jogo
Até pouco tempo atrás, poderíamos afirmar com algum grau de segurança que o desenho institucional característico das democracias liberais era capaz de garantir uma universalidade nos procedimentos, o que conferiria certa solidez ou legitimidade de uma determinada forma de governo ou de organização social. Em síntese, podemos até não concordar com o resultado de uma disputa, mas aceitamos consensualmente o fato de que as regras ou critérios estabelecidos previamente nos levam a admitir aquilo que não é, definitivamente, nem o verdadeiro, nem o bom, nem o belo.  Assim foi até, pelo menos, uma onda de chauvinismo de direita, temperada por uma cultura da lacração, tomar conta da cena política, especialmente no ocidente.

Desde as últimas eleições norte-americanas e do escândalo envolvendo a empresa Cambridge Analytica, estamos refletindo sobre um modelo de participação política que se não é novo, se tornou massivo recentemente. No Brasil, modelo semelhante tem sido usado pela equipe de comunicação do atual governo, que utiliza das redes sociais e aplicativos de mensagens para envio de informações distorcidas ou falsas, as fake news. Muito tem sido falado sobre as formas discursivas de distorção da realidade e a apropriação desse recurso por atores políticos que simplesmente escorregam para fora de qualquer tentativa de debate no plano da objetividade. Sobre essa tendência, gostaríamos de observar alguns fatores, visando pensar perfis.  

Inicialmente, nossa hipótese é a de que três componentes habitam esse fenômeno: 1) a proliferação de canais de comunicação em redes, o que potencializa e acirra as disputas discursivas; 2) um estado da cultura no qual as crenças e paixões têm mais influência que fatos objetivos, fenômeno denominado recentemente como pós-verdade e; 3) uma atitude autocrática cuja direção é a da afirmação e confirmação da supremacia dos próprios valores sobre os demais. 

Por ora, não encontramos um termo exato que tratasse do tema, portanto, escolhemos arbitrariamente a palavra glide. Através desses pilares, podemos talvez compreender melhor as razões pelas quais o Brasil segue um país dividido ao meio mesmo diante de um inimigo universalmente indesejado: a pandemia de Covid-19. 

O contextual, o cognitivo e o efeito de agir
1) Foi o filósofo francês Pierre Levy quem denominou cibercultura o sistema no qual cada usuário era um participante ativo, fenômeno que tende a horizontalizar a comunicação e reorganizar as relações de poder. As redes digitais seriam um brinde ao estatuto de igualdade na medida em que torna a participação democrática, dependente apenas de um celular ou de um computador. 

No entanto, a tese da potencialização da voz individual nas redes não resiste ao fato de que a própria concepção de indivíduo atomizado e autossuficiente apresenta um descuido em sua base: as pessoas possuem um lugar, uma história enredada a uma cultura. Aquilo que Maffesoli identificou como “o tempo das tribos”, isto é, a formação de grupos lúdicos, ideológicos, religiosos, profissionais ou de qualquer outra natureza. Nas estepes das redes, trincheiras começam a se formar em nome dos interesses de grupo particulares, gerando redes de pertencimento.  

Bauman advertiu que o tempo das identidades foi acolhido no espaço gerado pelas comunidades, lugar privilegiado a partir do qual as pessoas opinam e, em escala temperada por discussões acirradas, passam a radicalizar os discursos. É do aconchego daqueles que compartilham a mesma opinião que partem a intolerância, a intransigência e a inflexibilidade no discurso. 

2) Quando Nietzsche disse que “as convicções são inimigas mais perigosas da verdade que as mentiras”, lançava a sua preocupação com o problema de uma moral asseverada, calcada em uma atitude de autoconfiança absoluta. Um século depois, o dicionário Oxford consagrava como a palavra do ano de 2016 o termo post-truth, a pós-verdade, definida como o estado da cultura no qual as crenças pessoais têm mais importância que os fatos objetivos. 

O Oxford cita casos que circularam nas redes, como a acusação sobre Barack Obama como o responsável fundador do Estado Islâmico e sobre George Bush como o articulador por trás do 11 de setembro. Mais recentemente, episódios como a eleição de Donald Trump e do Brexit indicavam o triunfo do posicionamento unilateral que despreza o diálogo e declara sem hesitar o próprio interesse baseado na autoconfiança. 

Em todo os casos mencionados, as convicções dos atores eram inabaláveis mesmo quando confrontadas a dados estatísticos, pesquisas científicas ou ponderações baseadas na razão. Ingrediente definitivo no contexto das democracias representativas atravessadas por grupos cada vez mais heterogêneos e cada vez mais passionais na defesa de seus interesses egoístas, um duro golpe capaz de esfacelar a mínima noção de bem comum.

 

3) Autocrata é entendido como aquele gestor ou governante dotado de um poder ilimitado e que despreza o diálogo, ou seja, suas vontades são absolutas. Não é preciso reafirmar o modelo tripartite de Montesquieu adotado pelo Estado brasileiro, no qual executivo, legislativo e judiciário tendem a se contrabalançar, limitando a preponderância de um poder sobre as demais instâncias. Para o governante que não reconhece a legitimidade dos limites de suas decisões como inerente a um desenho institucional democrático, resta a intransigência autocrata. 

Na modernidade, o autocrata se tornou um tipo em vias de redução na medida em que o debate pautado pela racionalidade ganhava espaço nas interações e na esfera pública. Ficou restrito à figura do monarca e a personagens ditatoriais. Ocorre que, em tempos de redes sociais e de comunidades de interesses orientadas mais pelas próprias crenças do que por fatos objetivos, a figura do autocrata retorna arrastada pela era do fluxo informacional que se movimenta em rede e encontra, mais cedo ou mais tarde, uma forma de aglutinar suas opiniões via compartilhamento. Antes abrigados na chamada deepweb, os grupos de ódio cada vez mais emergem à superfície, de onde podem converter suas “demandas” no plano de uma agenda pública, conforme ganham seguidores.

 

E o que temos para hoje?
Os três pontos apresentados aparecem como hipotéticos pilares de sustentação a partir dos quais figuras da chamada “nova política” emergem ao cenário do debate público. O primeiro, referente às redes digitais, apresenta um contexto específico; o segundo registra a dimensão cognitiva através da relação entre a formação de opinião e um estado da cultura. O terceiro apresenta um sujeito tipificado na figura do autocrata e suas práticas na cena política. Diante desse cenário, podemos organizar a rota das teses atuais defendidas por figuras da cena política atual. 

Um aparato comunicacional se rearranja de modo a formar comunidades virtuais pautadas por interesses específicos cujas vozes são potencializadas pelo compartilhamento, momento em que os haters “saem da toca”. Através dos seus canais, verbalizam as tendências em discurso simplificado e direto, identificando os inimigos em falas sólidas e contundentes. Desafiam, provocam e convidam ao debate, mais no registro da autoconfiança irrevogável do que no esforço de compreensão do ponto de vista do outro.  Espaço privilegiado para a emergência de personagens seguros do próprio poder como algo absoluto. Amparados por suas milícias digitais, edificam fortalezas em defesa dos próprios pontos de vista. Confundem, pessoalizam, desconversam e fazem da leviandade um modus operandi de suas falas. 

Desavergonhados, escapam furtivamente das questões de interesse público e estabelecem relações de causalidades entre fatos indistintos, produzindo análises enviesadas e fantasiosas, tal como aconteceu recentemente no Ministério da Educação. Em meio a uma série de dúvidas da população sobre o planejamento para o Enem-2020 e sobre a MP que dispensa as escolas de cumprir 200 dias de aula mas mantém as 800h letivas obrigatórias, por ocasião da pandemia de Covid-19, o ministro da educação Abraham Weintraub tratou de deslocar a atenção para um episódio de desrespeito em uma de suas mensagens via twitter.  Postou um texto racista que sugeria a participação da China na disseminação do vírus, escrita em linguagem que ridicularizava o sotaque chinês, realçando a troca da letra “r” pela letra “l”.

 

Além de ir na contramão das recomendações da OMS e da comunidade científica como um todo, ao sustentar a permanência do Enem de acordo com as datas previstas inicialmente, Weintraub faz questão de trilhar os caminhos sombrios das fábulas conspiratórias cuja natureza ideológica opera de modo a travar o “nosso” desenvolvimento. Em vez de prestar esclarecimentos sobre o modo de condução do planejamento da pasta, o ministro abandona o lugar de prestação de contas em nome de uma acusação barata. Escolhe a via da polarização de tom acusatório, o qual identifica no outro a fonte dos problemas, forma grosseira de se autodeclarar isento de responsabilidade.  Nesse sentido, Weintraub não faz nada mais que se comunicar em uníssono ao seu amplamente conhecido chefe, rota que nos leva ao boi inominável citado.  

O boi
Tal movimento não seria possível se não estivesse amparado por um momento histórico que perdeu a informação objetiva como ponto de referência. O resultado? Um personagem envaidecido, enciumado, narcísico e presunçoso. Capaz de manter suas posições e dobrar a aposta dos próprios pontos de vista, mesmo em cenários de aguda crise ou mesmo na contracorrente de uma avalanche de informações objetivas. E quando confrontado, desliza, escorrega, desconversa, se nega a falar; se faz de vítima de um conluio conspiratório.  Permanece impermeável a críticas na medida em que assume abertamente sua posição autocrática. Enquanto isso, observamos as consequências mais cruéis da desumanidade calcada em sua irresponsabilidade. Infelizmente, é o que temos para hoje.

Eduardo Oliveira
Eduardo Oliveira

É doutor em Ciências Sociais e professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, IFCS-UFRJ. E-mail: eduardomoura@gmail.com