O que saiu errado? Pílulas sobre as percepções das desigualdades
Não me refiro à pandemia ou à economia, mas ao tema das desigualdades à luz das percepções. O que aconteceu com o cultivo do princípio segundo o qual todas as pessoas gozam de direitos iguais? Todos os dias, nas redes e nos textos, acompanhamos o fluxo discursivo a girar em torno das “tragédias cotidianas” no que se refere a “vidas interrompidas” ou “desperdiçadas”, quando não abalizados por teses a versar sobre a “exclusão” ou sobre a “precariedade” do humano.
Em meio a tantos problemas, no Brasil o tema das desigualdades muitas vezes aparece associado a questões econômicas, históricas ou sociológicas em debates públicos. No entanto, pouco se fala sobre a relação entre a desigualdade e os afetos, ou seja “o que sentimos quando percebemos disparidades nas nossas relações?”. Não cabe pensar em escala macro ou conceitual, mas na elaboração psíquica que nos leva a agir e reagir de determinadas formas específicas, diante das desigualdades.
Para uma compreensão das percepções mais íntimas a seu respeito, precisamos adentrar o terreno moral, de onde edificamos juízos e interagimos no mundo desigual. Lugar no qual definimos quem é mais e quem é menos merecedor de determinados bens, em face da escassez de recursos. Nesse sentido, ao buscar compreender não as desigualdades, mas sua energia anímica, a saber, os significados atribuídos à noção de merecimento, vamos em direção ao que boa parte do ocidente tem se perguntado, todos os dias, quando observa as polarizações e os extremismos: o que saiu errado?
Reconhecimentos e pressupostos
Então, cabe adiantar que esse não é mais um texto que lamenta a conjuntura ou que conclama às pessoas a “lutar”, ou a “participar”, embora a atualidade, de fato, se apresente como lamentável e inspiradora à participação política. Ocorre que, nessa direção, mais cedo ou mais tarde, encontraríamos uma vigorosa contestação de quem “precisa pagar as contas”, “pegar o ônibus” ou “sobreviver”, antes de tudo. E seríamos rebaixados a meros “elitistas”, talvez “idealistas”, os quais, do alto da nossa pseudo ou pretensa erudição, não enxergam o mínimo para compreender a vida de quem precisa matar um leão por dia.
Acrescente-se, ainda, o pertinente viés “lugar de fala”, tão bem iluminado a partir de Foucault e que hoje realça a posição social do sujeito do discurso nas relações de poder. Então, em busca da consideração desses fatores políticos, importa falar das desigualdades sem desprezar o sujeito do discurso, no caso, quem vos escreve.
Formato e posicionamentos
Extensos ou enxutos, acadêmicos ou ensaísticos, os discursos sobre as desigualdades trazem, em geral, uma proposta de reflexão ou um pensamento esclarecedor. Acompanhados de dados, fator legitimador de posicionamentos e reivindicações, realizam críticas articuladas e levantam argumentos racionalmente sedutores, geralmente em raciocínio lógico, em benefício de um pretenso rigor analítico.
Falar de desigualdades é também estar sujeito aos rótulos: é direitista ou esquerdista, é progressista ou conservador, é fake ou é factual, é crítico ou apologético, é realista ou idealista. Então, justifico as eventuais classificações por vir adiantando o direcionamento em forma de spoiler: não passa de representação de alguma realidade convertida em texto. É fragilidade emoldurada com robustez, simples assim.
Justificativa e objeto
A pauta? Atualmente, é pertinente falar do sucateamento da educação, da destruição das florestas, da privatização do Sistema Único de Saúde ou do veto à Agenda 2030. Das fake news, das milícias, dos extremismos ou dos racismos. Da incivilidade, do negacionismo, da insensibilidade, do populismo ou da desumanidade. Das eleições e das convicções, dos credos e das razões, dos movimentos sociais e das articulações, tudo é político enquanto espaço de conflito, nos termos de Chantal Mouffe. No entanto, algo envolve todos os objetos citados, direta ou indiretamente: um ideário de igualdade fracassado e trivializado no fluxo de acontecimentos. Em algum ponto, o projeto de garantia de direitos fundamentais fracassou, daí a inspiração do título “o que saiu errado?”
Discussão e teoria
Entre as teorias da justiça contemporâneas, encontramos, desde John Rawls, a noção de uma desigualdade admitida. Teóricos da filosofia política reconhecem fatores positivos a partir de uma desigualdade controlada, ou seja, uma desigualdade transponível, aquela que estimula o indivíduo a superá-la através de seu esforço. Desigualdades extremadas, no entanto, conduzem ao sentimento de inveja, o que estimularia a anomia e, assim, seus derivados (violência, transgressões, oportunismos). Significa dizer que uma desigualdade acompanhada pelo sentimento de que existem condições possíveis para a realização daquilo que se deseja deve ser o ponto de partida para se pensar o princípio da justiça.
Tal perspectiva aponta para a equidade, a garantia de direitos para que todas as pessoas igualmente possam realizar seus projetos de vida. Críticas à parte, Rawls imagina um desenho institucional cuja lógica procedimental opera no sentido de garantir a todos a capacidade de transpor sua condição e realizar seu projeto de vida. Combater a desigualdade não significa postular um arranjo marcado pela igualdade econômica, mas praticar justiça social através de garantia de bens necessários ao desenvolvimento. Portanto, é de garantia de direitos e não de igualdade stricto sensu que estamos falando. O problema é que Rawls toma como referência de sua teoria da justiça um indivíduo atomizado, apartado de contextos históricos e culturais.
Delimitação e História
Incontáveis ciências e filosofias pensam a desigualdade – não cabe enumerar as teses a respeito ou alinhavar mais uma crítica dessa questão. Nesse texto, em vez da desigualdade em si, ou em relação a políticas públicas ou programas de governo, existe o esforço de mapear os sentimentos e discursos que alicerçam a desigualdade. Em única palavra, o cerne da discussão sobre as desigualdades reside no mérito, sistema de recompensa fundamentado nas conquistas individuais.
Desigualdades inspiram reações no que se refere ao modo pelo qual percebemos sofrimentos e prazeres, risos e prantos, celebrações e pêsames. Diante das desigualdades, reclamamos até o entardecer, mas quando cai a noite vem o assombro da culpa, os fantasmas dos adultos. A desigualdade produz um constrangimento bifurcado: enquanto indivíduos, somos indiferença; enquanto coletividade, somos solidariedade.
Tal como no impulso dual que nos define, nos termos de Georg Simmel, podemos ser descaso e empatia. Daí a sensação de que compreendemos emocionalmente uma história sobre o sofrimento alheio, no entanto, em seguida, somos capazes de admitir para a nossa consciência que devemos retornar ao estado de tranquilidade e alívio. Não ao acaso a palavra da moda, carimbo cultural do nosso estado emocional diante das tragédias humanas, é a tão badalada “resiliência”. A reinar exuberante em tempos de crise, a resiliência é a recuperação putrefata, e esperança corrompida pelo individualismo.
Conquistas e retrocessos
O sociólogo T. H. Marshall pontuou em famosa conferência de 1949, um ano após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, etapas ao desenvolvimento da cidadania a partir das conquistas realizadas no Ocidente. Curiosamente, alocou três grandes feitos ao longo dos três últimos séculos: o século XVIII carregaria a marca das lutas pela liberdade civil – liberdade da palavra, de pensamento, de religião, além das liberdades individuais postuladas pelas revoluções francesa e americana; o século XIX como palco das batalhas por cidadania e liberdade política – extensão do direito ao voto a grupos cada vez maiores. Finalmente, o século XX e a ampliação do conceito de cidadania à noção de bem-estar, momento no qual as esferas social e econômica se tornam centro da disputa por direitos. Foi no século XX que o Ocidente passou a reivindicar educação, saúde, segurança e bem-estar econômico, como garantia básica para a vida.
O esquema de Marshall apontou conquistas civis, políticas e sociais confiante no desenvolvimento e no progresso evolutivo desses estágios. Demasiadamente otimista, não contava com as contra investidas a essas conquistas, devidamente denominadas “reações”, aspecto identificado por Albert Hirschman como “retórica reacionária”. Trata-se de um conjunto de argumentos opostos às conquistas realizadas a partir das batalhas pela garantia de direitos.
Aqui nasce uma face do reacionarismo que se apresenta como hostil à democracia, logo, favorável à preservação das iniquidades e dos privilégios. Recentemente encontramos versões dessas reações nas teses como a de André Singer, a respeito de uma classe média voltada para a manutenção do próprio status diante das conquistas realizadas pelo trabalhismo brasileiro, na primeira década deste século.
Incidência e abrangência
A desigualdade constrange, pode inspirar solidariedade ou indiferença, mas a economia não poderia ficar suscetível a uma eventual predominância das preocupações com o sofrimento alheio. Ossos do ofício ou efeitos perversos da engrenagem, as desigualdades precisam ser mais que admitidas filosoficamente, como fez Rawls, entre outros. As desigualdades precisam ser justificadas moralmente. E o fundamento moral que nos permite não apenas compreender, mas também afirmar a desigualdade como um princípio socialmente aceito é a convicção meritocrática.
O ponto aqui é reconhecer o modo pelo qual uma série de pessoas constroem sua autoimagem na sociedade, seja como “ricos, como “pobres”, como “vencedores” ou como “perdedores”. O sucesso ou o fracasso muitas vezes vêm acompanhados de um significado: o de que as causas são os feitos pessoais, individuais, fruto das ações isoladas. O discurso baseado no merecimento tende a responsabilizar o indivíduo pela sua condição, logo libera o outro daquele mal-estar proveniente da constatação do sofrimento alheio. O self made man declarado pelo senador Henry Clay e que virou lema norte-americano é a celebração dessa crueldade discursiva.
Lógica e transmissão
O sistema de premiação meritocrático, cuja origem se encontra nos arranjos organizacionais, prevê a lógica da compensação voltada ao esforço individual. Tende a estimular a competitividade e aumentar a produtividade, de acordo com seus defensores. Como Chaplin nos sugere em Tempos Modernos, a lógica organizacional é um modelo que se espalha a outras dimensões da vida, momento em que a convicção meritocrática se torna a justificação moral do sucesso e do fracasso entre as pessoas. É defendida e transmitida como valor entre as gerações que frequentam boas escolas e possuem condições plenas de aprimorar suas aptidões, seja na arte, no esporte ou no projeto de vida desejado. Além disso, são envolvidas por redes de relacionamentos os quais dispõem um leque de oportunidades, caminho aberto para a auto realização.
Definição e convicção
O ponto não é o de um regime baseado no merecimento, mas crença inegociável de que os bens são recompensas, resultados da ação individual isolada. A convicção de que o nosso destino está em nossas mãos, uma visão de liberdade individual que nos afasta da ideia de uma democracia compartilhada.
Nas histórias de sucesso, em cada linha, um caminho de vitória, denominado por Michael Sandel como “retórica da ascensão”: “ainda que a desigualdade tenha sido aumentada nas últimas décadas, a cultura pública reforçou a ideia de somos responsáveis por nosso destino e merecemos o que recebemos”. O predomínio do mérito como linha discursiva das narrativas no mundo moderno está por toda parte. As adversidades, inerente a toda história de vida, são realçadas enfaticamente e, se for preciso, superdimensionadas.
Conclusão e insônia
O mérito é uma consciência introjetada. Embora mais identificada com a orientação liberal, está para além de posicionamentos políticos. Nossas aptidões profissionais, nossos relatos de viagens, nossas impressões cinematográficas, nossas decisões e características, nossos domínios e habilidades e nossas histórias e experiências são contadas exaltando a nossa liberdade de controlar as situações, sempre apartadas das condições favoráveis através das quais vencemos. E quando o controle nos escapa, “perdemos”, nas palavras de Sandel. E quando sofremos, a responsabilidade foi nossa. Enquanto losers, resta a oportunidade de agarrarmo-nos em líderes populistas radicais e em suas promessas de “mudança” e limpeza”.
O mundo reafirma a desigualdade social na forma dessa justificativa moral cuja função é culpabilizar as pessoas, o que, não raro, gera ondas de ódio e frustração. A crença no merecimento é a dose paliativa para a angústia da desigualdade. Histórias de superação baseadas no mérito individual são exceções mascaradas da regra ilusória do “eu quero, eu posso!”. E o debate das políticas educacionais não foge a essa regra: os mesmos defensores das políticas meritocráticas são os que mais utilizam-se do discurso da “redução das desigualdades” – em uma capa de solidariedade que encobre a resistência a mudanças estruturais nas políticas sociais, que culminariam essas sim com a realização de uma justiça social, muito além da aceitação das desigualdades. Afinal “reduzir desigualdades” não é dirimi-las, garantindo direitos de forma universal e coletiva, em uma noção de bem comum.
A realização da ideia de bem comum depende de uma nova percepção da noção de merecimento em nosso cotidiano, menos arrogante e mais sensível à coletividade. Sobre o que saiu errado? Em resumo: a construção de uma autoimagem individual convicta do próprio mérito como causador do sucesso. Essa crença petulante e inconfessável, que nos permite deitar a cabeça no travesseiro quando chega a noite.
É doutor em Ciências Sociais e professor do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, IFCS-UFRJ. E-mail: eduardomoura@gmail.com