Análises

O desafio de 2020 é começar a reconstrução do campo do direito à educação

Concluída a fase das retrospectivas de 2019, surgem as perspectivas para o ano que amanhece

Concluída a fase das retrospectivas de 2019, surgem as perspectivas para o ano que amanhece


Em um mundo à beira de um ataque de nervos, passaram-se alguns dias e 2020 já mostrou a que veio. Logo em 3 de janeiro, o presidente dos EUA, Donald Trump, ordenou o assassinato do general iraniano Qasem Soleimani e alçou Teerã a inimigo preferencial de Washington.

Embora as tentativas internacionais de apaziguamento da crise, é certo que as tensões no Oriente Médio alcançaram um outro patamar – e, nesse novo degrau de conflitos, as animosidades apenas começaram. No início dessa contenda, a certeza que fica é de que haverá voltas e reviravoltas imprevisíveis – como o abatimento culposo, em 8 de janeiro, de um avião de passageiros ucraniano por um míssil do Irã, decorrente de erro militar. Bem como o início de estratégias de desestabilização do regime dos aiatolás pela inteligência dos EUA e do Reino Unido. No entanto, se não deu certo na Venezuela em 2019, dificilmente a velha tática anglófona obterá êxito contra os persas.

Ocorre que o Irã é uma potência econômica regional, o centro do islamismo xiita e possui importantes e diversificados acordos comerciais junto a diversos países do mundo – inclusive, o Brasil. Além disso, foi o principal agente estratégico para a redução do domínio territorial do Estado Islâmico, bem como foi decisivo na manutenção de Bashar al-Assad no poder, sagrando-se vencedor da guerra na Síria, junto com China e Rússia.

Enquanto isso, por aqui, também no dia 3 de janeiro, Jair Messias Bolsonaro atirou no alvo preferencial de seu discurso: a educação. Afirmou que os livros didáticos têm “muita coisa escrita” e que é preciso “suavizar” o material pedagógico. Segundo ele, “têm livros que vamos ser obrigados a distribuir esse ano ainda (...). Em 2021, todos os livros serão nossos [dos bolsonaristas]. Feitos por nós [os bolsonaristas]. Os pais [bolsonaristas] vão vibrar. Vai estar lá a bandeira do Brasil na capa, vai ter lá o hino nacional. Os livros hoje em dia, como regra, é um amontoado… Muita coisa escrita, tem que suavizar aquilo”. As frases comprovam um fato já verificado em 2019: Bolsonaro governa estritamente para seu séquito. O problema é que se trata de uma fração numerosa e resiliente da população brasileira.

Nesse pronunciamento, como de costume, o capitão aproveitou para atacar Paulo Freire, culpando – proposital e injustamente – o educador recifense pelo mau resultado dos estudantes brasileiros no PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes). Por fim, afirmou Bolsonaro com saudosismo irônico: “falando em suavizar, estudei na cartilha Caminho Suave. Você não esquece. Não esse lixo que, como regra, está aí. Essa ideologia de Paulo Freire. O cara ficou 10 anos e a garotada de 15 anos foi fazer a prova do Pisa e mais da metade não sabe fazer uma regra de três simples”.

Em mais uma fala eivada de equívocos, Jair Messias Bolsonaro atribuiu aos 13 anos de governos do Partido dos Trabalhadores (PT) – e não 10, como ele afirmou – uma predominância pedagógica inexistente sob o lulismo: a da pedagogia freireana. Verdade seja dita, Paulo Freire não prevaleceu nas diversas ações do Ministério da Educação (MEC) sob Lula (2003-2010) e Dilma (2011-2016). Antes tivesse sido assim. No entanto, infelizmente, a obra do mais reconhecido educador brasileiro foi pouquíssimo utilizada como referência metodológica de políticas educacionais nos governos petistas, salvo raríssimas exceções de alguns bons programas durante as gestões do MEC.

Na esteira da verborragia bolsonarista, em 9 de janeiro, Abraham Weintraub, estrela emergente do ultrarreacionarismo brasileiro e ministro da educação (para lamento da área), desacatou o Congresso Nacional, defendendo um hard reset na extensa discussão sobre o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação), que ocorre desde 2015 no Parlamento brasileiro.

Administrando R$ 156 bilhões para manter 40 milhões de matrículas públicas, o Fundeb atual encerra sua vigência em 2020. Resultado da incidência da sociedade civil, especialmente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação – como retrata recente livro organizado pela Profa. Iracema Santos do Nascimento (USP) citado nas referências bibliográficas dispostas abaixo –, o atual sistema de fundos representou enorme avanço, mas após 14 anos de vigência, necessita naturalmente de aprimoramentos.

Engenheiros do caos

Um desavisado dirá que os eventos no Oriente Médio não possuem qualquer relação com a política educacional brasileira, liderada por Jair Messias Bolsonaro e Abraham Weintraub. Ledo engano. Como se sabe, 2020 é ano par e, assim sendo, é ano eleitoral no Brasil. É também o ano da eleição presidencial estadunidense, país assolado pela desventura do governo Trump, tão infeliz quanto a chaga bolsonarista, guardadas as devidas proporções.

No curto livro “Os engenheiros do caos”, Giuliano Da Empoli mostra como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos das redes sociais estão sendo utilizados para disseminar o ódio, o medo e influenciar as eleições. Leitura rápida, ilustrativa, mas não muito aprofundada, o maior acerto da pequena obra é a dissertação decorrente do título: sistematizar o modus operandi de forças políticas que estabelecem o caos para vencer a guerra eleitoral e impor seu projeto de poder, erigindo o que chamo de fascismo do século 21.

Se o governo democrático do Estado serve para colaborar com o estabelecimento da ordem sob a racionalidade e o domínio da Lei – o que nem sempre é simples, especialmente em um país injusto como o Brasil –, Bolsonaro, Trump e congêneres promovem a desordem, atacando o bom senso, princípios republicanos, valores democráticos e as Ciências – especialmente a Ciência Pedagógica e as demais Ciências da Educação, no caso brasileiro.

O problema não é só do Brasil ou dos EUA. Ao redor do globo, o ataque à democracia é tão explícito que as livrarias no mundo todo estão apinhadas de livros sobre sua crise. O texto de Da Empoli é apenas mais um nesse oceano de interpretações necessárias, com os méritos e os riscos de ter sido escrito no calor do momento, sob o fogo cruzado do contexto italiano.

Todas essas análises são válidas, mas – via de regra – apresentam diagnósticos incompletos. Ao não abordar todas as possibilidades, mensagens, práticas e significados do “liberalismo” como conceito social, político e econômico, muitos se esquecem que a caminhada em conjunto da democracia com o capitalismo é um fato histórico de tempos recentes. Mais precisamente, trata-se de um modelo estabelecido após a Segunda Grande Guerra, como ensinou o saudoso economista Paul Singer na conferência de abertura da XVIII Reunião Anual da ANPEd, realizada em Caxambu, em outubro de 1995.

Ademais, é preciso compreender como e qual democracia foi estruturada para cada contexto de capitalismo regional ou nacional. Em outras palavras, a democracia escandinava é substancialmente diferente da estadunidense, como também as democracias latino-americanas se diferem das demais ao redor do globlo, sendo razoavelmente diversas entre si. Ocorre que cada um desses lugares possui histórias, culturas e condições geográficas específicas, interferindo em seu estágio de desenvolvimento capitalista.

Após a crise econômica global de 2008, o que tem tornado o século 21 especialmente desafiador é a consolidação da China como superpotência produtiva. Assim, o que se verifica não é a crise do Capital; ao contrário, é o resultado de um deslocamento gradativo da industrialização que vai deixando o Ocidente para aportar de vez no Oriente, buscando a redução de custos.

Provável vencedora da guerra comercial que trava contra Donald Trump, a China já emergiu, mas é só o começo do que chamo de “orientalização” produtiva de escala. Nas próximas décadas, a Índia deve alcançar um novo patamar no jogo econômico mundial, fazendo da Indochina um palco relevante para disputa produtiva global, determinando a localidade como arena decisiva da nova divisão internacional do trabalho. E as disputas entre as duas novas superpotências produtivas dará novo fôlego desenvolvimentista às economias de Filipinas, Indonésia, Bangladesh, Paquistão, Vietnã, entre outros – sendo Singapura um paraíso fiscal ainda mais relevante, uma espécie peculiar de “Suíça do Oriente” ou do Sul da Ásia.

O fato é que essa nova configuração do capitalismo mundial está apenas começando e será ainda impactada em termos produtivos pelo aprofundamento da automação industrial, pelo avanço no uso da inteligência artificial e pela desregulamentação do trabalho, caracterizada pelo que se convencionou chamar de uberização da economia, que resulta no precariado.

Nesse jogo, tanto a educação quanto a escola estão em disputa, até porque as próprias políticas educacionais estão perdendo sua função produtiva ou “sistêmica”, como observou Francisco de Oliveira no livro “Brasil: uma biografia não autorizada”. 

Nesse cenário global, a aliança entre ultrarreacionários e ultraliberais, promotora do modelo ultraliberal obscurantista que governa o Brasil desde Michel Temer, tem se dedicado a formular um modelo de (des)educação – ora por meio de parcerias, ora em disputas endógenas. Pela síntese possível, advinda das políticas e dos discursos desses atores sociais e políticos, a escola será: privatizada, autoritária, fundamentalista cristã e orientada às avaliações de larga escala.

Essa escola corresponde ao bolsonarismo, mas também, em grande parte, atende aos anseios íntimos, porém constrangidos, de muitos institutos, associações e fundações empresariais que atuam na educação. Se os bolsonaristas querem uma escola que sirva à sua guerra cultural e alimente seu projeto de poder, os ultraliberais querem uma política educacional massificada que custe pouco, tenha o melhor resultado possível naquilo que é mensurado (leitura, matemática e ciências) e – com base nesses dois pressupostos – alimente a geração de diversos negócios, permitindo a obtenção de lucro por meio da apropriação de parcelas significativas do fundo público.

A participação das organizações de base empresarial na formulação da Base Nacional Comum Curricular, na construção da Reforma do Ensino Médio e na tentativa de incidência sobre o Fundeb atesta a busca por esses objetivos. No caso do fundo de financiamento da educação básica isso fica ainda mais explícito, especialmente por meio das atitudes e das defesas (frustradas) de teses da ONG Todos pela Educação no tocante à matéria.

Frente a essa realidade, aqueles que defendem e promovem o direito à educação não podem cruzar os braços. Tampouco devem se limitar a apenas responder provocações. É preciso retomar, com coragem, a construção de um projeto educacional que seja a base para a justiça social e para a democracia, como ensinaram Anísio Teixeira e Florestan Fernandes.

Após um ano de governo Bolsonaro, as perspectivas para 2020 não são essencialmente ruins, porque já não são novas. Tampouco são boas. Após as mobilizações de 15 de maio de 2019, foi possível demonstrar força. Contudo, quem defende o direito à educação precisa assumir que resistir é tão necessário quanto insuficiente.

A partir desse ano, é preciso estruturar esforços para reconstruir o campo do direito à educação, que significa garantir uma educação pública universal de qualidade – da creche à pós-graduação. As escolas devem ser gratuitas, laicas, com liberdade de cátedra, pautada nas Ciências da Educação, geridas de forma democrática, plurais e dedicadas a formar mulheres e homens livres e emancipados, o que vai muito além de responder provas. Ou seja, devem ser capazes de formar cidadãs e cidadãos plenos nesse desafiador século 21.

Isso exige financiamento adequado, valorização dos profissionais da educação, gestão democrática e um currículo vivo e substantivo, portanto diferente da BNCC de Michel Temer e do mundo empresarial.

Como referências programáticas, é preciso retomar os ensinamentos de Anísio Teixeira, Florestan Fernandes e Paulo Freire. Nosso desafio não é simples, mas é essencial: é preciso começar a reconstituir o campo do direito à educação. E um “Fundeb pra Valer!” é a primeira batalha que pode ser vencida já em 2020.

Para iniciar essa reconstrução do campo, um bom começo é ler e reler o livro “Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar”, organizado pelo Prof. Dr. Fernando Cássio (UFABC) e publicado pela Boitempo em 2019.

Concluo meu artigo nesse volume dizendo que a melhor forma de vencer a barbárie ultrarreacionária e ultraliberal é defender e promover o direito à educação.

Que 2020 represente o (re)início dessa caminhada.
 

Algumas referências bibliográficas:

ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão. São Paulo: Boitempo, 2018.

CÁSSIO, Fernando (org.). Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar. São Paulo: Boitempo, 2019.

DA EMPOLI, Giuliano. Os engenheiros do caos. São Paulo: Vestígio, 2019.

NASCIMENTO, Iracema Santos do (org.). FUNDEB PRA VALER! A incidência política da Campanha Nacional pelo Direito à Educação na criação do Fundo da Educação Básica. São Paulo, Lisboa: Chiado Books, 2019.

OLIVEIRA, Francisco. Brasil: uma biografia não autorizada. São Paulo: Editora Boitempo, 2018.

SINGER, Paul. Poder, política e educação. In: Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro: Anped, n.º 1, 1996.

SOUZA, Renildo. Estado e capital na China. Salvador: EDUFBA, 2018.

Daniel Cara
Daniel Cara

É professor da Faculdade de Educação da USP e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.