Análises

Das cartas de alforria à meritocracia: entre as promessas de liberdade e as realidades de escravidão

Uma educação antirracista deve estar atenta às mais variadas formas de dominação

Neste mês de novembro, fui convidado pela diretoria de uma das escolas em que trabalho para falar com a equipe sobre meritocracia. Como é um tema que venho estudando, sobretudo por causa de minha pesquisa do doutorado que entre outras questões investiga as interferências das proposições neoliberais na educação, aceitei prontamente. Contudo, como estamos no mês de novembro, e temos a oportunidade de refletirmos melhor sobre as questões raciais, devido ao 20 de novembro, dia da Consciência Negra, propus que o encontro envolvesse a relação entre meritocracia e racismo. O tema foi aprovado pela diretoria, então passei a elaborar minha apresentação.

Durante esses dias de preparação, estive ainda mais atento às relações entre as promessas de liberdade e as realidades de escravidão. Há cerca de duas semanas, ao acessar uma rede social, me deparei com postagens de uma escola privada de uma cidade vizinha, divulgando estudantes do Ensino Médio já aprovados em vestibulares de instituições particulares. Nas cinco publicações realizadas pela escola, com cinco estudantes, quatro meninas e um menino, até a última data em que acessei a página, o primeiro elemento que chamou atenção foi que todos podem ser considerados brancos, para os padrões brasileiros. O segundo foi que quatro, dos cinco estudantes, foram aprovados em medicina, um dos cursos tradicionais priorizados pelas classes médias e alta. E, por fim, a mensagem que dizia: “Esforço, dedicação e comprometimento com a educação trouxeram a aprovação”.

É evidente que estudo e construção de carreiras no mundo do trabalho exigem esforço, dedicação e comprometimento, mas isso está longe de explicar porque uma parte consegue realizar seus estudos de maneira consistente e tantos outros têm dificuldades para seguir estudando e entrar em cursos concorridos e/ou caros nas universidades. Mensagens como essa divulgada pela escola fortalecem o discurso meritocrático que atribui as conquistas, e também os fracassos, aos indivíduos, não considerando devidamente as realidades que envolvem aspectos econômicos, políticos, afetivos e culturais que favorecem determinada fração em detrimento da maioria da população que não consegue acessar o ensino superior e enfrenta toda sorte de dificuldades para conseguir seu “lugar ao sol”, garantindo bons salários e prestigio social.

Em entrevista publicada em 2019, por ocasião do lançamento de seu primeiro livro parte de uma trilogia sobre a escravidão, o jornalista e historiador Laurentino Gomes argumentou, a partir de suas fontes, que a expectativa é de que somente 5% dos escravizados se rebelavam contra a condição à qual estavam submetidos por meio de fugas para os quilombos. Uma das explicações para isto é que as celebradas conquistas das cartas de alforria funcionavam como um instrumento de manutenção da escravidão, visto que a parcela que conseguia tal feito servia como uma referência desejada pelos outros tantos negros e negras que continuavam como escravos.

Se a colocação de Gomes pode impactar, já que nas escolas e pelos meios de comunicação fomos estimulados a exaltar as alforrias, isso não é tão surpreendente quando traçamos um paralelo com a realidade atual. E para isso é essencial lembrar que o sistema capitalista que promoveu a transformação de milhões de pessoas em mercadoria no sistema escravista, continua a existir de maneira hegemônica, também transformando tudo que pode em mercadoria, mesmo que sob aparências mais sofisticadas. Atualmente, discurso meritocrático se insere nessa tarefa. A insistência da mídia burguesa em querer transformação de pessoas e trajetórias, como a de Rachel Maia, considerada a primeira mulher negra brasileira CEO de uma multinacional, autora do livro Meu caminho até a cadeira nº 1, em personalidade, em referência para a negritude, parece exemplar.

A meritocracia, assim como o apelo ao empreendedorismo, exaltando a ilusória retórica de que se você quiser você consegue, afinal, só depende de você, porque o sol nasceu para todos e com resiliência e perseverança certamente alcançará o sucesso, traz mais um capítulo na história da difusão de ideologias que mantém a dominação de brancos sobre negros, do Norte sobre o Sul em termos globais (e existe Sul no Norte e Norte no Sul, como bem desenvolve Boaventura de Souza Santos), da burguesia abastada sobre a classe/raça de trabalhadores pobres. 

Um dos intelectuais negros mais citados hoje, o camaronês Achille Mbembe, analisa que a condição que historicamente foi aplicada aos negros – exploração, violência, exclusões –, caminha para tornar-se a realidade de enormes contingentes de trabalhadores pelo mundo, devido à lógica do capitalismo neoliberal: “Já não há trabalhadores propriamente ditos. Só existem nômades do trabalho. Se ontem, o drama do sujeito era ser explorado pelo capital, a tragédia da multidão hoje é já não poder ser explorada de modo nenhum, é ser relegada a uma ‘humanidade supérflua’, entregue ao abandono, sem qualquer utilidade para o funcionamento do capital. (...) vem se consolidando a ficção de um novo sujeito humano, ‘empreendedor de si mesmo’, moldável e convocado a se reconfigurar permanentemente em função dos artefatos que a época oferece” (MBEMBE, 2018. p. 15-16).

A questão, para enfatizar, não é refutar a labuta daqueles que superam adversidades e conseguem uma vida digna e reconhecida. Tampouco desvalorizar as diferentes formas de resistência e negociação dos oprimidos ao longo da história. Mas sim, compreender que os mantras meritocráticos, assim como as comemoradas alforrias, compõem uma lógica de inclusão excludente, se consideramos a coletividade, quanto à aceitação e possibilidade de usufruir de vantagens capitalistas sustentadas pelas desigualdades. Uma educação antirracista, que tanto precisamos desenvolver, deve ser uma educação que esteja atenta às mais variadas formas de dominação e que possa questionar as promessas de liberdade diante das realidades de escravidão.

Para saber mais
GOMES, Laurentino. Infelizmente, a história da escravidão é contada por pessoas brancas. Acesse aqui

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Paris, n-1 edições, 2018.

Texto originalmente publicado na edição de 26 de novembro do Jornal Pensar a Educação em Pauta.

(Foto: Acervo pessoal/Cleiton Tereza)

Cleiton Corrêa Tereza
Cleiton Corrêa Tereza

É professor de História nas redes municipal e estadual em Poços de Caldas, especialista em História Contemporânea (PUCMinas), especialista em Planejamento, Implementação e Gestão de Educação a Distância (UFF), mestre e doutor em Ciências Humanas (Diversitas-FFLCH-USP), integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Administração Escolar (GEPAE-USP), membro do Coletivo Educação de Poços de Caldas e da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.