Análises

Mitos e verdades sobre a política de educação remota da rede estadual de SP

Não sabemos sequer se nossos alunos estão saudáveis; quanto mais se estão acessando o ‘app’ e assistindo às aulas

Não sabemos sequer se nossos alunos estão saudáveis; quanto mais se estão acessando o ‘app’ e assistindo às aulas

Desde o dia 27 de abril de 2020, retornaram as aulas da rede do estado de São Paulo, de forma remota, em meio à maior pandemia dos últimos 100 anos e no contexto de isolamento social. Cabe lembrar que, segundo a própria Secretaria de Educação (SEDUC), a rede de ensino de SP comporta cerca de 190 mil professores na ativa, 65 mil servidores administrativos e mais de 4 milhões de alunos, e que o estado de SP é o coração da epidemia no Brasil e possui o maior número de infectados e mortos por coronavírus em termos absolutos do país. A orientação do governo João Dória para a volta às aulas é que todos os professores e estudantes devem baixar um aplicativo chamado “Centro de Mídias SP” (CMSP) em um aparelho de telefone celular pessoal e o acessem por meio de seus logins e senhas institucionais. As aulas também são transmitidas pela televisão, em um canal específico vinculado à TV Cultura.

A proposta de João Dória parte do pressuposto que a educação é um processo autônomo, que corre em paralelo, independente da saúde, da moradia, da alimentação, da renda, da assistência, etc. A ideia é que a tarefa prioritária dos gestores e professores agora é garantir o calendário escolar e que bastaria disponibilizar conteúdos curriculares para viabilizar o compromisso com a educação. No entanto, a escola não é uma ilha apartada da pandemia ou do contexto social como um todo e é uma das primeiras instituições em que as contradições e desigualdades sociais aparecem com toda sua força. Não há educação sólida, consistente, de qualidade, se não estiver articulada com o conjunto das políticas e serviços sociais. Desse modo, também por uma preocupação pedagógica, a prioridade dos esforços da educação pública deveria ser, neste momento, assegurar uma vida digna para nossas crianças e jovens como um pré-requisito, inclusive para o efetivo processo de ensino-aprendizagem.

Enquanto docentes em teletrabalho, nossa rotina tem sido cumprir integralmente a jornada conectados pelo aplicativo, por horas a fio em frente à telinha do smartphone, assistindo a palestras e vídeo-aulas elaboradas pela própria Secretaria de Educação para os alunos do Ensino Fundamental e Médio de diversas disciplinas. Além disso, precisamos elaborar planos de aula e atividades com base nessas vídeo-aulas de outrem para serem disponibilizadas para nossos alunos por outro meio. Por enquanto, o aplicativo não está adaptado para o uso via computador, não comporta que cada docente dê sua vídeo-aula ou sequer tire dúvidas, não possibilita ainda que sejam anexadas atividades e não divide os usuários nem por cidade, nem por Diretoria de Ensino, nem por escola, nem por turma - o que torna quase impossível encontrar seus próprios alunos. Todos, professores e alunos do estado inteiro, independentemente de faixa etária, particularidades, condições sociais, série ou região, acessam os mesmos conteúdos ao mesmo tempo. Assim, para de fato interagir com os alunos e com os colegas de escola, é preciso procurar um outro recurso, por fora do aplicativo da SEDUC, para o qual o governo não disponibilizará acesso com dados gratuitos. Apesar da fala do Secretário de Educação, Rossieli Soares, de que a partir do dia 30 de abril, as turmas estariam divididas no aplicativo, isso não se viabilizou e, apenas em 7 de maio, começou a implantação do vínculo do Google Classroom com o CMSP, mas, até a publicação deste texto, o recurso não estava funcionando plenamente.

Toda a política pública educacional de SP está apoiada em mitos, que não se sustentam na prática. Vamos a eles.

Mito 1: Estamos nos valendo de novos recursos tecnológicos e metodologias

Na verdade, as aulas transmitidas pelo CMSP estão pautadas por um subaproveitamento intenso das ferramentas tecnológicas. Já que se pretende explorar os recursos digitais e midiáticos como aliados da educação, faz sentido que fossem utilizados em larga escala: mapas interativos, animações, imagens de satélite, cenas de filmes, visitas virtuais a museus, galerias, parques, paisagens e outros instrumentos disponíveis gratuitamente na internet, como jogos, ferramentas de pesquisa, bibliotecas, etc. Contudo, o governo não disponibiliza internet gratuita para que outros recursos possam ser acessados massivamente, com exceção do CMSP. Além disso, não há um material adaptado a essas mídias; o método da exposição oral, lousa e o Caderninho do “SP Faz Escola” (que, a princípio, só contempla as disciplinas de Português e Matemática neste ano) continuam sendo a base central em que se apoia a grande maioria das aulas. É importante ressaltar que, antes da pandemia, essas apostilas ainda não haviam chegado em parcela razoável às escolas de periferia.

Se a tônica das novas políticas educacionais do governo do estado, este ano, se referiam com centralidade às metodologias ativas, ao protagonismo dos estudantes, a diferentes estratégias pedagógicas e à interdisciplinaridade, as aulas que estão sendo apresentadas agora pela SEDUC na TV ou no ‘app’ contradizem bastante esse discurso e reproduzem do começo ao fim uma metodologia extremamente tradicional, bancária, fragmentada, calcada na simples memorização de informações, sem esforço de relacionar determinado tema com a vida dos estudantes, com as outras disciplinas ou com o novo contexto. O material didático está muito empobrecido e não aproveita justamente os melhores aspectos que o uso da tecnologia poderia proporcionar para a educação.

 

Mito 2: Criamos maior vínculo e diálogo da escola e dos professores com os alunos

A relação dos professores com as crianças e adolescentes é construída permanentemente no cotidiano das vivências em sala de aula. Na ausência disso, por conta da necessidade do isolamento social, a política educacional deveria ter como um eixo importante restabelecer essa comunicação e interação direta entre escola, professor e aluno. Como é praticamente impossível encontrar seus próprios estudantes pelo ‘chat’ do aplicativo, tendo em vista que dele participam milhares de pessoas instantaneamente, o sistema não viabiliza que haja contato direto entre estudantes e seus professores. Por enquanto, o indicativo de acesso às turmas organizadas pelo aplicativo é apenas uma promessa. Da perspectiva dos alunos, seus professores, na prática, mudaram e agora são aqueles que aparecem na tela do celular; sua escola e seus professores foram tirados de cena, não ocupam mais um espaço de relevo em seu dia a dia. Do ponto de vista do corpo docente, não sabemos sequer se nossos alunos e suas famílias estão saudáveis ou se têm renda e alimentos; quanto mais se estão acessando o ‘app’, assistindo às aulas, fazendo as atividades ou se estão com dúvidas. Não sabemos até mesmo se teremos retorno dos alunos sobre os roteiros que estamos elaborando. Assim, o vínculo da escola com os alunos foi completamente rompido pelo mecanismo que se propõe a resgatar essa ligação.

 

Mito 3: Estamos “aproveitando a oportunidade” para nos atualizar e nos reinventar

Na escola, durante a rotina-padrão, a questão do tempo é um condicionante e um limitador do processo pedagógico: as aulas duram 45 minutos e são uma em seguida da outra, sem que haja um momento maior para se apropriar dos raciocínios, linguagens e conteúdos propostos em cada aula; é preciso tempo para a chamada, para o intervalo, para o exercício, para a leitura, para cumprir a grade curricular, para escrever na lousa, para a explicação, para a correção, para finalizar o bimestre. Durante o isolamento social, essa lógica do tempo é subvertida e esse elemento poderia ser “aproveitado” em prol do ensino-aprendizagem. No entanto, a SEDUC desconsidera isso e trabalha na lógica de procurar engessar o tempo. Com relação aos alunos, seria interessante construir uma dinâmica que levasse em conta os diferentes ritmos, tempos, habilidades, experiências para a consolidação de novos ensinamentos, mas as aulas oferecidas continuam trabalhando com uma abordagem muito semelhante àquela das aulas comuns, com tempos pré-determinados para tudo e todos, configurando-se como uma educação extremamente excludente. Também para os professores, a ressignificação da relação com o tempo durante o isolamento permitiria uma gama de possibilidades de se aprimorar em sua profissão. Para Doria, mais vale que professores assistam aulas por mais de 5 horas por dia, muitas vezes repetidas, de diversos anos da educação básica, que não dizem respeito à sua área do conhecimento, do que utilizar esse tempo para que os professores se aprofundem em suas áreas de formação, em conhecimentos didático-pedagógicos, que façam formação continuada, que se qualifiquem em seu trabalho ou que produzam reflexões, conteúdos, atividades e projetos articulados com o novo contexto. Mais uma vez, a proposta do estado não aproveita justamente os melhores aspectos que as mudanças do momento poderiam proporcionar para a educação. Não há “atualização” e “reinvenção”; há mais do mesmo, por sistema remoto.

 

Mito 4: Os professores estão ensinando

O modelo de educação remota de Doria está assentado sobre um profundo esvaziamento do papel do professor. O trabalho docente deixou de ser um processo que envolve planejamento, preparação, execução, acompanhamento, avaliação e virou um compilado de atividades, que são sistematicamente renovadas, mesmo que não haja retorno expressivo dos alunos em relação ao elaborado anteriormente. Não se disponibiliza previamente aos professores sequer o plano de aula e o conteúdo que serão abordados naquela disciplina pelo ‘app’ naquela semana. Construímos atividades “no escuro”. É como a imagem do cachorro correndo atrás do próprio rabo. Os professores estão com jornada intensa e com sobrecarga de trabalho e, ao mesmo tempo, foram colocados em uma posição extremamente passiva diante da escola e diante do próprio processo educativo, sem qualquer voz, pluralismo de ideias ou autonomia didática. Até nossa aula foi alienada de nós. Nosso papel é ainda menor do que reproduzir conteúdos estanques virtualmente; é apenas propor e corrigir atividades de uma aula que não foi elaborada, nem pensada, nem discutida, nem dada por nós. E mais: se há um entendimento de que a avaliação é contínua, diagnóstica e envolve inúmeros aspectos além da simples memorização, é impossível avaliar os alunos dessa forma.

Em suas ‘lives’ rotineiras, o Secretário, Rossieli Soares, repete sistematicamente a palavra “autonomia”, como se a insistência nesse termo promovesse uma sensação de que ela realmente existe. Na realidade dos fatos, a preocupação-chave da política estadual de educação remota não é a democratização e a qualidade do processo educativo, mas o controle rigoroso do tempo dos professores. Antes de tudo, o governo não garantiu os recursos materiais necessários para que tanto professores e gestores quanto alunos possam ter condições de acessar o sistema. Apesar das dificuldades de acesso à plataforma serem generalizadas em todo o estado e da Secretaria admitir o problema, a cobrança nas Diretorias de Ensino e gestões escolares pela presença assídua e pontual dos professores é grande e rígida. Há relatos de escolas que solicitaram que cada docente escrevesse no ‘chat’ aberto para todo o estado seus dados pessoais, com nome completo e número de RG, como prova de sua participação, ou que cada um enviasse ‘prints’ de sua tela de celular, garantindo que o horário estivesse na imagem, para comprovar que aquele profissional estava tentando acessar o sistema e de que ele estava travado. Esse controle vem acompanhado com o assédio e ameaças de corte de salários, de colocação de faltas e de ruptura de contrato. Para além do aplicativo estadual, há casos de escolas demandando que os professores disponibilizem seus números pessoais de WhatsApp e redes sociais para os alunos e seus familiares, a fim de criar grupos para que os docentes estejam totalmente disponíveis em tempo integral, extrapolando seu horário de trabalho e sua privacidade.

Como se não bastasse, milhares de docentes temporários e eventuais, das chamadas categorias “O” e “V”, que garantem o funcionamento da rede cotidianamente  haja vista a ausência de concursos públicos e a falta de professores em todo o estado , perderam seus contratos e estão sem qualquer renda neste período. Sobre isso, o Secretário tem dito que há impedimentos jurídicos para manter o pagamento desses professores e que seria necessária a aprovação de uma nova lei. No entanto, também havia impedimentos legais à implementação da educação remota e isso ocorreu com bastante celeridade. Além do mais, o vale-alimentação dos professores ativos foi cortado justo em um momento de aumento do preço dos alimentos. Se já vem de longa data a trajetória de precarização e desvalorização do trabalho docente, está evidente que o governo usa deste momento para acentuar o quadro. Lamentavelmente, não há ainda qualquer dado ou preocupação do governo estadual sobre as quantidades de professores de sua rede que estão infectados com o coronavírus ou que, inclusive, chegaram a falecer. Temos recebido notícias tristes frequentemente sobre isso.

 

Mito 5: Os alunos estão aprendendo

A consolidação do aprendizado está muito além do “querer aprender”. Em primeiro lugar, a realidade da rede de ensino paulista é que muitos estudantes padecem de muitos problemas materiais, vão sem comer para a escola, dependem da merenda escolar para se alimentar. Para buscar lidar com essa situação, o governo anunciou um auxílio-merenda no valor de R$ 55 mensais a uma parcela de alunos, que só terão o subsídio viabilizado depois de solicitação por um outro aplicativo específico e da conferência de dados. Além do valor ser muito baixo (menos de R$ 2 por dia), cerca de 700 mil alunos até o momento acessaram o benefício, ou seja, menos de 20% do total de discentes. A garantia de alimentação digna para todas as crianças e adolescentes da escola pública deveria ser, sem sombra de dúvidas, a principal preocupação e esforço da Secretaria de Educação neste momento. Não é possível que, diante da fome, nós sigamos cobrando que nossos alunos estudem e sejam avaliados como se nada estivesse acontecendo.

Em segundo lugar, estes alunos também não têm livros em casa, quanto mais acesso a computador, rede wi-fi, celular com dados para além de WhatsApp. Dessa maneira, o fato do estado não garantir os instrumentos para o acesso à plataforma do CMSP aprofunda desigualdades sociais. Desde o início das aulas por esse meio, o maior número de acessos que presenciei foi de cerca de 100 mil pessoas - que representam aproximadamente metade dos docentes e em torno de 2,5% do total de alunos.

Em terceiro, a modalidade do ensino a distância pressupõe que o estudante tenha um grau de concentração, disciplina, foco e autonomia que as crianças e adolescentes da educação básica ainda estão desenvolvendo. O período de formação de vida de nossos alunos dificulta que um modelo todo estruturado nesse formato tenha êxito. Por conta disso, há dependência da ajuda da mãe, pai ou responsável para que os alunos assistam às vídeo-aulas, estudem, realizem as atividades. Contudo, não é razoável exigir que os pais “assumam o papel de professores”, formados para isso. Além do mais, a maioria dos familiares de nossos alunos tem baixa renda, baixa escolaridade, vive de trabalhos precários e, ou não foi dispensada de seu trabalho durante a pandemia, ou está desempregada e com duras dificuldades financeiras. Nossos alunos serão muito atingidos economicamente e em termos de saúde por essa pandemia; e parece que às escolas só cabe reproduzir um conteúdo estanque, listas de exercícios e informações cristalizadas.

Por fim, um dos grandes desafios da educação e da docência é lidar com a diversidade de ritmos, de tempos, de condições físicas, psíquicas, emocionais e sociais, de gênero, de raça e etnia, de religião, de comportamento, de disposição, de habilidades, de aptidões, de opiniões e pensamentos dentro da sala de aula, e com a diversidade da rede pública estadual como um todo, com seus contextos de educação especial, de escolas no campo, nos centros urbanos, nas periferias, de educação prisional, de Jovens e Adultos (EJA), de quilombolas e indígenas. A proposta educacional do governo do estado ignora a diversidade e é cruelmente homogeneizadora a ideia é aplicar a mesmíssima aula para um universo de 4 milhões. Porém, é impossível assegurar inclusão, democracia, justiça social, equidade e educação, de fato, quando se procura anular as diferenças e tratar os desiguais como iguais. Não por acaso, o que se exige dos alunos é tão somente reprodução de informações e memorização, com as enquetes e perguntas feitas ao vivo. Não se espera que sejam criativos, nem questionadores, nem protagonistas, nem que relacionem os conteúdos apresentados.

A partir desses mitos, se procura justificar uma política educacional enrijecida, pró-forma, deficitária, aligeirada, acrítica, promotora de desigualdades, que espera que os professores criem atividades sistemáticas e que os alunos repitam informações decoradas, ambos sem vínculo entre eles. Se a escola pública já vinha sintetizando uma série de dilemas, limitações, problemas, os “novos” métodos e políticas ficam longe de sequer amenizá-los, quanto mais de resolvê-los e, pelo contrário, os aprofundam enormemente e contribuem para um desmonte acentuado de tudo o que historicamente os educadores procuraram acumular e construir em relação à complexidade do processo de ensino-aprendizagem e à educação como um direito social. No anseio de legitimar o discurso de que o calendário escolar é imutável, o Secretário Rossieli Soares afirma que o modelo de educação remota adotado foi construído a partir de uma “gestão baseada em evidências” - resta saber que evidências são essas, tendo em vista que a medida foi implementada às pressas e elaborada sem instâncias coletivas de debate ou decisão com a comunidade escolar, contrariando o princípio da gestão democrática. Não aproveitamos os recursos tecnológicos e toda a relação que as escolas têm com as comunidades para, por exemplo, ser mais um amparo de acolhimento, de orientação, para o levantamento de dados sobre a epidemia nos bairros, para a distribuição de insumos, enfim. O único papel da escola pública tem sido reproduzir os conteúdos curriculares padrão sem estarem ao menos adaptados a esse novo contexto, e para pequena parcela da rede. É muito pouco. O governo Doria está tornando a escola pública irrelevante em um momento tão exigente da história.

Carolina Figueiredo Filho
Carolina Figueiredo Filho

É professora da rede pública paulista, militante do Coletivo Quinze de Outubro e doutoranda na Faculdade de Educação da Unicamp