Análises

Bebês e crianças pequenas não podem receber EaD, mas secretarias fazem de conta que sim

“Soluções” encaminhadas não estão dando certo, relatam professoras da Educação Infantil

Temos conversado com um grande número de professoras da Educação Infantil sobre como tem sido a experiência de trabalho a distância com crianças tão pequenas, e a conclusão é que as “soluções” encaminhadas não estão dando certo.

Por Bianca Correa e Fernando Cássio*
 

Conforme preconiza o artigo 29 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), principal lei do país que define princípios para a educação, “a Educação Infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até cinco anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade”.

Já as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), que tratam mais especificamente do conteúdo curricular, definem no artigo 5º que “a Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica, é oferecida em creches e pré-escolas, as quais se caracterizam como espaços institucionais não domésticos que constituem estabelecimentos educacionais públicos ou privados que educam e cuidam de crianças de 0 a 5 anos de idade”.

As DCNEI são explícitas quanto à necessidade de considerar “Educação Infantil” aquela oferecida em “espaços não domésticos”. Mas é preciso proteger as crianças da pandemia, e por isso creches e pré-escolas foram fechadas. De forma açodada, várias secretarias de educação passaram a exigir que professoras e professores produzissem conteúdos para aulas não presenciais, transmitidas via aplicativos e plataformas.

Temos conversado com um grande número de professoras da Educação Infantil sobre como tem sido a experiência de trabalho a distância com crianças tão pequenas, e a conclusão é que as “soluções” encaminhadas não estão dando certo. As crianças, que deveriam ser protegidas em sua integralidade – pelo menos de acordo com a Constituição, com o Estatuto da Criança e do Adolescente e com a LDB – não estão sendo priorizadas.

Crianças precisam brincar e interagir. Como garantir que essas atividades ocorram remotamente, via uma educação a distância (EaD) precária e improvisada? Com as desigualdades existentes no Brasil, e que tendem a se acentuar, quem é que garante que os adultos poderão ficar em casa com as crianças pequenas para fazer algum trabalho pedagógico?

As professoras com quem conversamos revelam o faz-de-conta de diversas secretarias de educação. E não para brincar com as crianças, mas para cumprir burocraticamente os calendários letivos. Mesmo atormentados por uma tragédia humanitária, não estamos sabendo repensar o tempo e o espaço das atividades pedagógicas, tudo aquilo que é central quando se trata das experiências infantis.

 

O faz-de-conta das secretarias de educação para a EaD na Educação Infantil

Educadoras têm sido forçadas pelas redes de ensino a criar grupos de WhatsApp para interagir com as famílias das crianças, ou a abrir perfis em redes sociais como Facebook. E para quê? Para tentar estabelecer uma comunicação com famílias que muitas vezes não têm acesso à internet. E mesmo as que têm acesso, farão o quê? Aprenderão a ser professoras de seus próprios filhos?

Algumas redes de ensino “orientam” as famílias, oferecendo listas de brincadeiras e canções para serem utilizadas com as crianças. Mas há coisas bem mais graves, como sugestões de atividades de traçado do alfabeto e das letras do nome, de repetição oral dos numerais e desenhos prontos para serem coloridos. Tudo aquilo que é contraindicado pelas DCNEI e até mesmo pela Base Nacional Comum Curricular, que, embora criticável, não orienta esse tipo de atividade para crianças pequenas.

Penalizadas com a situação de suas crianças, diversas professoras não tiveram coragem de enviar materiais por e-mail para as famílias imprimirem. Utilizando seus próprios recursos, elas imprimiram os materiais e os entregaram pessoalmente dias antes do início do isolamento. Outras, cientes das dificuldades das famílias, sabem que a internet é um bem escasso entre os mais pobres e que a frequência das crianças à creche é, muitas vezes, a única garantia de poderem se alimentar.

Um grupo de professoras de uma mesma rede municipal foi enfático ao criticar a intensificação do controle de seu trabalho. Para elas, a preocupação maior da rede de ensino em que trabalham é “garantir” duas coisas: o registro minucioso do trabalho realizado, para que não haja necessidade de repor as atividades; e o rígido controle do tempo do trabalho docente.

Além da obrigação de estabelecerem algum tipo de contato com as famílias para o registro das atividades, as professoras foram avisadas de que, durante o seu período de trabalho, precisam estar à disposição das famílias, dos diretores escolares e também dos funcionários da secretaria de educação. A jornada de trabalho das professoras, em permanente stand by, aumenta de tamanho e invade o tempo de suas horas de descanso.

A Educação Infantil não pode ser realizada por via remota. Não há argumento que sustente que crianças pequenas, e principalmente bebês, devam passar diversas horas por dia diante de telas de TV, celulares ou computadores. Brincar e interagir pressupõem a presença do outro. E não apenas de um adulto especialista – um/a professor/a, no caso –, mas também de outras crianças. Esta é uma etapa muito particular da vida, que merece educação e cuidado da família, mas também de profissionais formados para organizar adequadamente o tempo e o espaço pedagógicos, garantindo brincadeiras e interações de boa qualidade.

Se neste momento não é possível que as crianças voltem à escola, nossos governantes deveriam se preocupar mais com a vida e a saúde dos pequenos, oferecendo os recursos materiais para que um adulto possa de fato estar em casa nesse período. O que não dá para aceitar é que todos os problemas estarão resolvidos com atividades a distância para bebês e crianças tão pequenas. A Educação Infantil não admite improvisações.

 

*Fernando Cássio é doutor em Ciências e professor da Universidade Federal do ABC. Integra a Rede Escola Pública e Universidade e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Organizou o livro Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar (Boitempo, 2019).

Bianca Correa
Bianca Correa

É doutora em Educação, professora associada da FFCLRP/USP, na área de Políticas e Práticas da Educação Infantil, onde também integra o Programa de Pós-Graduação em Educação da faculdade. Integra a rede da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.