Novo Fundeb: quem é quem na disputa da Câmara dos Deputados?
Dentre as principais políticas estruturais implementadas para a educação básica no Brasil, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação, o Fundeb, é a que teve maior sucesso. Essa é a conclusão de pesquisa que apresentei em 2017 no Congresso Latino-Americano de Ciência Política (Alacip), junto com Daniel Cara.
Nessa pesquisa, avaliamos a elaboração, implementação e monitoramento de três grandes políticas estruturais para a educação básica: o Fundeb, o Plano Nacional de Educação, e o Piso do Magistério. O Fundeb foi a única das três políticas a ser implementada integralmente. Os Planos de Educação que já existiam desde a redemocratização até hoje sempre foram escanteados e somente metade dos estados e municípios consegue cumprir o Piso do Magistério - hoje de R$ 2.886,24 para uma jornada de 40 horas.
Acontece que o Fundeb, apesar de um sucesso em termos de crescimento de matrículas e de melhoria da qualidade, ainda é insuficiente. O mecanismo do Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi), que calcula um padrão mínimo de qualidade na educação simula que é necessário um investimento muito maior do governo federal do que ele faz hoje: de 10% de complementação é preciso saltar para 40%. Isso é o necessário para pagarmos aquele piso do magistério para todos os profissionais da educação, em uma escola com estrutura mínima de qualidade. Esse percentual, a forma de distribuição, as fontes de recursos e a avaliação da política são os principais pontos em disputa nos debates do novo Fundo. Ou seja: de onde sai o dinheiro, para onde vai o dinheiro e como medir se isso está funcionando.
A defesa da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, com base em estudos e evidências científicas, sempre foi a mesma: é preciso garantir um padrão mínimo de qualidade, através do CAQi, com investimentos adequados para tal (40% de complementação da União); o sistema de distribuição precisa levar em conta as matrículas dos alunos e as desigualdades, mas não pode desestruturar as redes como estão hoje - não podemos tirar dinheiro de um estado menos pobre para dar para um mais pobre ainda (precisamos de um sistema híbrido); é preciso um sistema de avaliação que vá além de notas de provas como o Ideb, que são muito limitadas para medir qualidade (é necessário considerar o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica); e o dinheiro público deve ir para a educação pública, já que está mais que comprovado em pesquisas nacionais e internacionais que sistemas como voucher não garantem qualidade e não são eficientes.
Mas nem todos os atores do campo da educação defendem o mesmo, há interesses privatistas e bem pouco preocupados com o alavancar real da educação no país, que defendem uma ideia de política mínima, que caiba abaixo do teto de absurdos que estamos vivendo. Seja no teto de uma austeridade econômica que asfixia a população mais pobre e trava o desenvolvimento social, seja no teto de um modelo educacional pobre para os pobres que reduz o direito à educação em sua plenitude a uma formação de mão-de-obra barata que mantenha o sistema social injusto como é hoje o do Brasil, um dos países mais desiguais do mundo.
Abaixo, faço o mapa de quem está de qual lado nesse debate - tudo com referências checáveis nos links e/ou no relatório da PEC 15/2015.
Inúmeras instituições e parlamentares se posicionaram quanto à destinação de 40% de complementação da União ao Fundo e na defesa da constitucionalização do Custo Aluno-Qualidade (CAQ):
– as dez entidades integrantes do Comitê Diretivo da Campanha - Ação Educativa, ActionAid, Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (FINEDUCA), Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA-CE), Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE), Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (Mieib), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (Uncme), União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime);
– Fórum de Governadores, que subscrevem a PEC 65/2019;
– presidentes e vice-presidentes das Comissões de Educação das Assembleias Legislativas (Carta de 07 de junho de 2019);
– Frente Nacional de Prefeitos;
– Sindicato APEOC (documento de 05/06/2019);
– os senadores que subscreveram a PEC 65/2019, de autoria dos Sen. Davi Alcolumbre (DEM-AP), presidente do Senado Federal, e Randolfe Rodrigues (REDE-AP), líder da oposição;
– a Minoria na Câmara dos Deputados, sob a liderança de Jandira Feghali (PCdoB-RJ);
– a oposição na Câmara dos Deputados, sob a liderança de Alessandro Molon (PSB-RJ);
– os deputados Idilvan Alencar (PDT-CE), Rosa Neide (PT-MT), Danilo Cabral (PSB-PE), Sâmia Bonfim (PSOL-SP), Edmilson Rodrigues (PSOL-PA), entre outros.
Por outro lado, defenderam menor complementação da União, de ordem de no mínimo 10% e, em seguida, cedendo para no mínimo 15%:
– os deputados Felipe Rigoni (PSB-ES) e Tábata Amaral (PDT-SP);
– as organizações Todos pela Educação e Confederação Nacional dos Municípios;
– e os Ministérios da Educação (que defendeu teto de 15% e não mínimo) e da Economia.
Defenderam a retirada do CAQi:
– pela Sugestão 12, segundo relatório da deputada Profa. Dorinha (DEM-TO) os deputados Felipe Rigoni (PSB-ES), Tábata Amaral (PDT-SP), Tiago Mitraud (NOVO-MG), Raul Henry (MDB-PE), Marcelo Calero (CIDADANIA-RJ), Professor Israel Batista (PV-DF), Paulo Cunha Lima (PSDB-PB);
– por meio do Ofício 1.991/2019/MEC, o Ministério da Educação.
O sistema híbrido foi defendido primeiro pela Campanha, com base em evidências apresentadas em audiência realizada no dia 01 de outubro de 2019. Muitos dos atores que defendiam um sistema de distribuição que mexeria consideravelmente com o modelo de sucesso atual acabaram mudando de ideia no passar das audiências e esse modelo está mantido no substitutivo da relatora.
O modelo de vouchers que precariza e privatiza a educação pública, como foi comprovado por diversos estudos internacionais [1], foi proposto pela Emenda nº 3, dos Deputados Tiago Mitraud (NOVO-MG) e Marcelo Calero (CIDADANIA-RJ), propondo que os “Estados e Municípios possam, na forma da lei, converter parte dos recursos para financiar o ensino público em instituições privadas com ou sem fins lucrativos” e que possam ser permitidas as distribuições de “bolsas de estudo para o ensino básico” em escolas privadas com o dinheiro público. Até o momento, a relatora deputada Dorinha rejeitou essa proposta, a ver como será a votação da matéria, que começa essa semana e já tem quase 40 deputados inscritos para sugestões após o pedido de vistas.
E, para não dizer que não falei dele, Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, resolveu entrar no jogo para imprimir mais retrocessos, como foi demonstrado pela Nota Técnica da Campanha, publicada no último dia 03, na sequência de outra nota da Associação Nacional de Financiamento da Educação Básica - Fineduca com muitas páginas que evidenciam o equívoco que está sendo feito para com a educação brasileira a partir da pressão de Maia e seus adeptos. Eles desejam permitir que dinheiro do Salário-Educação, que hoje vai para fins como alimentação escolar por exemplo, seja fonte de recursos do Fundo, que é destinado a outros fins na manutenção e desenvolvimento do ensino. É o cobertor curto: puxa de um lado, descobre do outro. E assim só 5% de recursos novos iriam para o Fundo, muito aquém dos 30% a mais necessários.
Meu colega, Salomão Ximenes, descreveu bem o "ilusório Fundeb de Rodrigo Maia" nessa coluna, na semana passada.
A primeira proposta de substitutivo que a deputada Dorinha havia apresentado, em setembro do ano passado, demonstrava a clareza e a coerência de quem estava disposta a mudar o texto do Fundeb para melhor, enfrentando um governo em que a defesa do pior sempre está em voga. É claro que esse foi um texto que descontentou à presidência da Câmara, motora das reformas liberais e dos cortes às áreas sociais, e a ONGs representantes dos mesmos interesses, como Todos pela Educação e Itaú BBA, que não esperaram muito para pressionar por recuos, dos quais muitos, infelizmente, se concretizaram no substitutivo apresentado no começo do mês pela relatora.
Após sair de um evento promovido pelas duas entidades, em outubro de 2019, Maia ameaçou que “ou a discussão do Fundeb no Congresso vai para o mundo real ou vai travar e ficará para o ano que vem”. Reclamou do lobby dos professores - que, lembrando, defendem o direito de ganhar R$ 2886,15, muito menos que a média dos demais profissionais com a mesma formação - e pediu diagnósticos de eficiência de gastos à deputada Tábata Amaral (PDT-SP), a mesma que votou a favor da Reforma da Previdência e que, no Fundeb, defende a retirada do CAQi e afirmou que com R$ 360 por mês (R$ 4300/ano) se faz uma educação de qualidade - Emenda 03, de sua autoria, com o deputado Felipe Rigoni (PSB-ES).
E o mais interessante é que, no dia seguinte de apresentação da Emenda 03, com o posicionamento por um investimento pífio em educação, que contraria os princípios do CAQ, a deputada estava em seu Twitter afirmando:
O resumo da ópera é que, apesar de todas as evidências apresentadas sobre a necessidade de maiores investimentos do governo federal na educação básica, através de mecanismos muito mais que provados cientificamente e politicamente efetivos para avançarmos em termos de acesso e qualidade, os grupos que defendem um Estado mínimo e uma educação de baixa qualidade para os mais pobres seguirão fazendo essa defesa, ainda que em seus discursos digam que não. E é por isso que é tão importante e, nesse momento mais ainda, que a população participe, acompanhe, e esteja engajada nesses debates, sobretudo os professores, estudantes, pais e responsáveis.
É por isso que estamos em uma grande mobilização, da Semana de Ação Mundial 2020, cujo tema é "Educação contra a Barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar" - vale entrar no site e se inscrever para participar: www.semanadeacaomundial.org .
Esse é um momento de muito retrocesso para os direitos humanos e para nossa democracia. É um momento de barbárie. O que precisamos ter em mente é que esses retrocessos são movidos não só por Paulo Guedes - o mãos de tesoura - ou por brucutus como alguns ministros de Jair Bolsonaro ou como ele mesmo. Muitos desses retrocessos estão vindo a galope nos discursos de atores polidos e cheios de cálculos e teorias internacionais para embasar suas posições. Tenhamos em mente que qualquer posição que negue um salário digno a profissionais da educação, que pactue com reformas importadas que nem lá fora se mostraram eficazes, e que não tenha o direito à educação integral plena para todos os cidadãos brasileiros com financiamento adequado não é uma posição de quem quer, de fato, a justiça social no Brasil. Enquanto esses não defenderem uma qualidade na educação pública como aquela que pagam a seus filhos em mensalidades muito maiores que 360 reais por mês em escolas privadas de elite, não estarão defendendo a equidade que tanto proclamam.
1 - Veja na Nota Técnica apresentada em junho de 2019, na página 51: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-temporarias/especiais/56a-legislatura/pec-015-15-fundeb/documentos/outros-documentos/nota-tecnica-por-um-consenso-no-fundeb
É coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, cientista política, comunicóloga, educadora popular e doutora em Ciências pelo Instituto de Relações Internacionais da USP.