Análises

Infâncias e Adolescências Invisibilizadas: Vulnerabilidade e Território

Leia o artigo escrito por Andressa Pellanda, Eduardo Moura e Marcele Frossard, publicado nos Cadernos FLACSO N21

por Andressa Pellanda, Eduardo Moura e Marcele Frossard

Artigo originalmente publicado nos Cadernos FLACSO

Refletir sobre as territorialidades historicamente tem significado debater as estruturas sociais, econômicas, culturais, geográficas e território que contribuem para a distribuição desigual de riquezas e de acesso a bens públicos e privados. É no território que ocorrem os processos de circulação dos sujeitos infantis, a quem são conferidos múltiplos significados. Por entre essas tramas, podemos encontrar infâncias múltiplas e em movimento, associadas a características econômicas, sociais, políticas e culturais. Nesse esforço de reflexão das infâncias, tomamos como pressuposto uma categoria analítica central para compreender os processos que tornam as infâncias invisibilizadas: o reconhecimento público.

Tal categoria se apresenta através da linguagem, esse instrumental que arroga- se de autoridade e que, ao falar alguma coisa, faz alguma coisa, nos termos de Roland Barthes (2012). O reconhecimento público, expresso através da linguagem, estabelece as perdas desconhecidas das perdas passíveis de lamento e de mobilização. Ao reconhecermos o direito à vida como um direito universal, admitimos que a perda de vidas por morte violenta constitui uma injustiça. É nesse ponto que o reconhecimento se apresenta como problema teórico, tema no qual concentra a análise da relação entre a infância e os territórios. Dentro das pretensões deste estudo, cabe uma reflexão sobre quem são essas “infâncias”, como elas se relacionam com os territórios em que vivem e quais as características capazes de estabelecer relações específicas entre a perda de vidas e o reconhecimento público.

Esta reflexão é resultado das discussões realizadas no âmbito do Projeto Infâncias e Adolescências Invisibilizadas, coordenado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, em parceria com a Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced), Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca-CE), Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento Nacional Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) e Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras). Para o desenvolvimento dos estudos, houve participação ativa da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí).  A agenda de pesquisa é composta por nove Cadernos com os seguintes eixos: em situação de rua; migrantes; residentes em territórios urbanos vulneráveis, zonas de conflito e violência; no sistema socioeducativo; em serviços de acolhimento e com responsáveis encarcerados; em áreas de reforma agrária; em territórios de agricultura familiar; comunidades quilombolas; e comunidades indígenas. Afirmamos aqui que a invisibilidade é uma política de exclusão e buscamos olhar para onde se encontra a situação do direito à educação frente a essas invisibilidades produtoras de vulnerabilidades. Essas crianças e adolescentes são visíveis de fato e invisíveis de direito. É denunciando esse projeto de exclusão nas políticas sociais e educacionais para as infâncias e adolescências e buscando construir a transformação e a justiça social que esta agenda se afirma. 

As infâncias, o território e o reconhecimento público

A primeira questão que se impõe quando refletimos sobre as formas infantis de inserção e participação na sociedade, assim como os processos de institucionalização calcados na ideia de infância refere-se ao conjunto de representações sociais que, na modernidade, convergem para o esforço de construção de uma categoria conceitual a partir da qual as primeiras etapas da vida humana podem ser pensadas. 

Uma das principais referências internacionais sobre o direito das crianças é a Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959, referendada na Convenção Sobre os Direitos da Criança, de 1989 que considera que “a criança, em virtude de sua falta de maturidade física e mental, necessita de proteção e cuidados especiais, incluindo a devida proteção legal, tanto antes quanto após seu nascimento”.

Pela Constituição Federal de 1988, o art. 227, a proteção de crianças, adolescentes e jovens é dever da família, da sociedade e do Estado. E para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990), criança e adolescente são definidos como sujeitos de direitos, o que significa reconhecer a condição peculiar de desenvolvimento em que se encontram, reiterando a necessidade de prioridade absoluta. 

Estes documentos são atestados e reflexos normativos e institucionais das transformações sociais e históricas e sua consequência para a concepção de infância e adolescência, uma vez que, em tempos pré-modernos, a criança era considerada mero ser biológico, esvaziada de reconhecimento em relação ao seu posicionamento social.  

Entre as teses segundo as quais não havia lugar para a infância (ARIÈS, 1981) e, do lado oposto, as que investigavam estudos antigos sobre formas de cognição (HEYWOOD, 2004), as concepções de infância não se apresentavam de maneira uniforme, mas orbitavam um conjunto de preocupações com a condição da criança (GÉLIS, 1991). Nessa fase, a criança se torna o centro de inspiração de cuidados, representações iconográficas de anjos, em sua inocência (ARIÈS, 1981). 

A infância se torna, assim, a antítese de um mundo degenerado, lugar de excepcional pureza a ser preservada pelos adultos. Segundo Jeane Marie Gagnebim (1997), é nesse contexto que se edifica uma pedagogia do respeito e da proteção à criança, reconhecimento social que ficaria expressado na escola, primeira instituição da modernidade voltada especificamente para um grupo geracional. Desse modo, a escola ficaria responsável pela formação e pelo cuidado com aqueles que "não falam", uma vez que infância, do latim infantia, deriva da negação, in, da variação verbal do fari, que significa “falar”. 

Infância, em sentido restrito, como “ausência de fala”, denota, já em sua origem, um sentido de negação, como destaca Sarmento (2005). Este mesmo autor adverte, no entanto, que a infância não pode ser compreendida estritamente pelo crivo da geração ou mesmo por fatores biológicos. Para além do fato de serem indivíduos nos anos iniciais de vida, a infância deve ser analisada em sua natureza sociológica, considerando as crianças como atores sociais, nos quais um conjunto de prescrições e de interdições emergem ao sabor de diferenças de classe, raça, etnia, gênero e território. 

Para as pretensões deste trabalho, o ponto de partida da discussão se concentra nos múltiplos significados atribuídos à ideia de “infância”. Quando se fala em um grupo etário definido, corremos o risco de desconsiderar o conjunto de condições específicas sob as quais cada infância é empiricamente reconhecida. Infância como referência de uma alteridade: o não adulto caracterizado pela incompletude; o aluno como a-lumnus, o sem-luz; a criança como creatia, a criação. Representações da necessidade de cuidado e acompanhamento que engendram abordagens como a da “socialização” de Durkheim, ou da “disciplina” de Foucault. 

A ideia de infância, no entanto, não pode ser reduzida ao registro da insuficiência. Importa, nesse ponto, pontuar um aspecto central para esse estudo: as crianças produzem e partilham valores em interação com outras pessoas (CORSARO; EDER, 1990). Tal dinâmica estabelece formas sociais através das quais as crianças se influenciam mutuamente, sendo agentes em interação com esses padrões nos quais os adultos estão imersos. A noção de “cultura das crianças”, de Corsaro e Eder (1990), ampliada e estudada também pela antropóloga Adriana Friedmann, faz o esforço de não reduzir a ideia de criança a mero produto ou desdobramento do mundo dos adultos. 

Estudo recente de Gabriela Magistris (2022) contribui para este debate analisando a partir da perspectiva do adultocentrismo, que de acordo com a autora é “cuando hablamos del sistema de dominio, de la matriz estructural de opresión hacia los niños y niñas, mientras que reservaremos el término adultismo para analizar las interacciones entre adultos/as y jóvenes”. A partir desta categoria é possível analisar a cosmovisão de mundo desigual que inviabiliza a participação de crianças e adolescentes.  
Comportamentos lúdicos podem ser interpretados como atividades inscritas no plano de processos de formação, nas quais as crianças percebem as normas sociais e desenvolvem expectativas a respeito de suas ações. Nesse sentido, uma travessura, uma canção, um desenho, um gesto ou uma brincadeira podem ser entendidas dentro de processos sociais de interação envolvendo a infância e o mundo dos adultos (SARMENTO, 2005). 

Assim, tratando-se de infâncias – que são também diversas, como os Cadernos buscam demonstrar – e suas práticas, em constante interação com o mundo dos adultos, cabe perguntar: quais os fatores que permitem um tratamento de crianças e jovens como adultos, consciência que expõe a violências e que geram vulnerabilidades de diferentes ordens?

Infâncias como categoria de estudo e as infâncias invisibilizadas

São muitas as áreas de estudos que se debruçam sobre a relação entre crianças e adolescentes e o território. Nas ciências sociais, podemos citar os estudos sobre meninos e meninas de rua, “Vozes do meio-fio” (MILITO; SILVA, 1995) e sobre crianças e adolescentes de favela, como o “Rotas de Fuga”.

Cabe citar ainda o trabalho de instituições como a Plataforma dos Centros Urbanos do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), sobre o acesso à cidade, o Índice de Homicídio na Adolescência (IHA), sobre violência na infância e juventude, e o Projeto Infâncias e Adolescências Invisibilizadas da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, sobre acesso a direitos. Ou ainda sobre territórios quilombolas, como “Educação Quilombola: territorialidades, saberes e as lutas por direitos”, organizado por Gilvânia Maria da Silva et al. (2021); e a publicação Cultura e Educação, organizada por Renata Montechiare (2018). Fato é que existe uma série de dados sobre a situação de vulnerabilidade, desigualdade, abandono e violência que crianças e adolescentes são submetidos no Brasil. Também existe o diagnóstico de fatores que dificultam o acesso dessas crianças ao que lhes é de direito. 

Apesar de todo o conhecimento produzido sobre o assunto (inclusive de forma aplicada a políticas públicas), essas crianças e adolescentes continuam vivendo nestes contextos e sendo negligenciadas pelo poder público e pela sociedade de uma maneira geral. A estas crianças e adolescentes, destituídas de reconhecimento público, impedidas de desenvolverem uma “cultura das crianças”, chamaremos de invisibilizadas. Encontram-se, nesse sentido, submetidas a fatores que as tornam invisíveis para o poder público, no sentido de não terem seus direitos garantidos, inclusive o direito à cidade (LEFEBVRE, 2001), garantido pela Lei nº 10.257/2001, que inclui transporte público de qualidade, saneamento básico, acesso à cultura, por exemplo. 

Essa invisibilidade é aguçada em áreas marcadas pela atuação do crime organizado na política local (RODRIGUES, 2017), como o tráfico de drogas, esquemas de prostituição, trabalho infantil, organizações de contravenção e áreas operadas por milícias.
A partir deste contexto de vulnerabilidade, pretendemos apresentar que a teia de relações entre os territórios e acesso a direitos para crianças e adolescentes é complexa e que, não atentar para a sobreposição de fatores de vulnerabilidade, bem como para os nós desse emaranhado, é também um modo de invisibilizar essas crianças e adolescentes e tornar ainda mais distante o acesso a direitos.

Invisibilidade como mecanismo de poder

Em obras como Capitães de Areia, de Jorge Amado (2008), as mazelas sociais infantis no seio de uma sociedade marcada pelas desigualdades econômica e política, o problema da desconsideração dos dramas alheios é objeto de vasto debate no cenário político, em diferentes campos de estudo. Quando se trata dos territórios urbanos, o que escapa aos olhos, do ponto de vista cognitivo, é resultado de um processo de modernização cujo traço marcante é a exigência de uma racionalidade individual cada vez maior com objetivo de atender aos múltiplos e incontáveis trabalhos cotidianos. Com a formação das grandes cidades e a intensificação dos estímulos na vida moderna, as pessoas precisaram se adaptar no sentido de agir “mais com a cabeça e menos com o coração”, diria George Simmel (1967). 

A atitude blasé, isto é, a capacidade moderna de assumir uma postura de indiferença, se tornou uma estratégia de sobrevivência diante de ritmos cada vez mais acelerados. O que significa dizer que indiferença não é apenas resultado das transformações impostas pelo mundo moderno, mas fazem parte de estratégias de adaptação a essas novas dinâmicas sociais, especialmente nas grandes cidades. 

De outra perspectiva, um questionamento aponta para o caráter classificatório do olhar. Por quais razões o mundo parece não enxergar acontecimentos que ferem a dignidade ou a vida humana? Como políticas genocidas, atentados contra povos e regimes autoritários ganham sobrevida sob os olhos dos outros? Se no cenário internacional a discussão a respeito da soberania é imprescindível e no plano político o aspecto institucional é inescapável, em escala local, o sofrimento alheio está ininterruptamente submetido a critérios discriminatórios. Do ponto de vista histórico, o conjunto de práticas expressas sob a forma de um poder baseado no confinamento consiste na própria política de tornar não visto aquilo que se apresenta aos olhos como indesejável, constrangedor ou ameaçador. O confinamento dos loucos nos manicômios, dos velhos nos asilos e dos enfermos nos hospitais, entre outros casos, são formas de estabelecimento de uma fronteira entre o visto e o não visto. O invisível, portanto, não é apenas ato voluntário, mas resultado de mecanismos de controle    e,    consequentemente,    de    processos    de    formação    e    subjetividades (FOUCAULT, 1997).

O problema imposto pelo tema da invisibilidade social, que se estende aos territórios de povos e comunidades tradicionais no Brasil, tem se tornado um importante referencial para pensar a relação entre Estado e sociedade. A expansão de processos democráticos tende a realçar dimensões da vida social cuja visibilidade foi parcial ou inteiramente ignorada, na história. Não obstante, alguns trabalhos dos anos 1980 para cá procuraram dar conta de dimensões invisíveis da vida social. Exemplo disso é o trabalho da antropóloga Arlene Kaplan Daniels (1987) que é autora da expressão invisible-work, quando analisa o não reconhecimento do trabalho doméstico realizado pelas mulheres.

No Brasil, as pesquisas do psicólogo Fernando Braga da Costa (2008) em sua imersão no trabalho como gari no campus da Universidade de São Paulo (USP) renderam discussões sobre a relação entre a humilhação e o não percebido. Pesquisador de doutorado, seu trabalho de campo destaca a experiência dos garis como intensamente marcada pela invisibilidade pública, inclusive em momentos nos quais o próprio pesquisador, vestido com o uniforme profissional, não era reconhecido por colegas professores e alunos, no campus. Do ponto de vista intersubjetivo, Costa aponta a invisibilidade pública como realidade social ligada a dois fenômenos psicossociais: a humilhação e a reificação. Citando o psicólogo José Moura Filho, Costa define a invisibilidade como expressão das diversas manifestações de sofrimento político e humilhação social que são suportados pelas classes mais pobres.

De acordo com os autores, a invisibilidade é uma violência simbólica constituída como forma de opressão. Por essa razão, não pode ser investigado à distância do oprimido, mas precisa ser observado de “dentro de sua ação corrosiva”. A invisibilidade seria, assim, definida, uma construção social e psíquica de fragilização e neutralização da existência pelo emudecimento da voz, pelo rebaixamento do olhar, pelo apagamento das expressões e sentimentos dos seres humanos.

No plano das ações públicas, o tema da invisibilidade social é acompanhado por iniciativas de organizações formadas pela sociedade civil voltadas para questões sociais. Já do ponto de vista do debate público, encontra projeção nacional a partir do trabalho do sociólogo Luiz Eduardo Soares, voltado para as  crianças e jovens  das periferias. 

Soares faz referência à condição de invisibilidade ao analisar a trajetória de Sandro Barbosa do Nascimento. Após ter presenciado o assassinato de sua mãe e ter fugido para morar nas ruas, Sandro sobrevive ao episódio que ficou conhecido como “Chacina da Candelária”, em 1993, e, sete anos depois, sequestra um ônibus público após a tentativa frustrada de roubar os passageiros, em 2000. 

Na ocasião, uma série de erros do grupamento tático policial ocasiona a morte da refém de Sandro, quando pretendia se entregar. Capturado vivo e já imobilizado, Sandro seria morto por asfixia dentro de viatura policial, no contexto de uma multidão ávida por linchá-lo e de apresentadores de telejornais que passaram a tarde cobrindo o sequestro ao vivo e cobrando medidas efetivas da polícia. O episódio foi objeto de discussão no documentário “Ônibus 174”, de José Padilha, no qual Luiz Eduardo Soares comenta o tema da invisibilidade do jovem. Em artigo de 2003, contexto do debate em torno das condições sociais da infância e da juventude, Soares sintetizou a ideia:

"Um menino pobre caminha invisível pelas ruas das grandes cidades brasileiras. Esse menino, que quase sempre é negro, transita imperceptível pelas calçadas sujas das metrópoles, em que muitas vezes se abriga, pois foi expulso de casa pela violência doméstica, esquecido pelo poder público, ignorado pela comunidade, excluído da cidadania. Não tem perspectivas nem esperança, não tem vínculos afetivos ou simbólicos para com a ordem social, e nada que o identifique com a cultura dominante. Assim, subtraído das condições que lhe poderiam infundir autoestima, o menino é anulado em sua individualidade e esmagado pela indiferença pública (SOARES, 2003, p. 197)."


O objeto da investigação a respeito das infâncias invisibilizadas opera a partir desse registro: infâncias “anuladas em sua individualidade e esmagadas pela indiferença pública”. Tomando como diretriz uma das questões mais sensíveis das infâncias invisíveis, ou seja, a sua relação com a violência, Soares lembra que se trata de jovens que buscam incessantemente escapar da invisibilidade discriminatória. Para o autor, ao receber uma arma de um adulto, uma criança tem mais que uma ferramenta de sobrevivência ou obtenção de ganhos econômicos: obtém um passaporte para a própria existência, uma vez que passa a inspirar pelo menos um sentimento alheio, o medo.  

Diante do exposto, observamos que a invisibilidade é mais que um mecanismo de distinção social entre grupos sociais ou do que a mera negligência de um poder público capaz de assegurar garantias. Trata-se de um poder que incide sobre o indivíduo de modo a apagar sua capacidade de expressão e, então, de reação diante da desigualdade e da injustiça impostas. O corpo inexpressivo, a voz emudecida, o olhar cabisbaixo são sinais de uma existência neutralizada, uma construção que interfere inclusive na própria autoestima. Aqui reside o sentido de reificação: o humano passa por um processo no qual sua subjetividade é gradualmente esvaziada, reduzida a mero automatismo, suscetível ao descarte.

Infâncias invisibilizadas

Para esse estudo, o pressuposto é o de que o reconhecimento de outro ser humano é um acontecimento originário. Ou, pelo menos, mais originário que as forças sociais e políticas que tendem a nos cegar, como sociedade. A pergunta motriz é a respeito da força que faz reduzir a vida de uma criança em território vulnerável a algo de pouca ou nenhuma importância. A partir dessa pergunta, buscamos fundamentar as bases sobre as quais pretendemos atuar: retomar a visão sobre o outro e transcender a mera condição de “estar vivo”. Realçar a existência através da visibilidade, o que supõe a participação no mundo. De modo a articular os pontos abordados, importa observar qual a “cultura das crianças” invisibilizadas, isto é, de que modo elas participam e interagem com o mundo, perambulando entre estados de inexistência e existência precária.

A invisibilidade, compreendida pela chave teórica do olhar do outro capaz de instaurar uma realidade social hierarquizada, ligada a sentimentos de humilhação e a processos de reificação, é instrumento analítico através do qual procuramos entender as infâncias. Como crianças, deixam de ser vistas e se convertem em seres vagantes pelas cidades, inexpressivos, reduzidos a coisas que se movimentam sob a lógica de um automatismo, aleatórias e indistintas.

De acordo com o estudo publicado pelo Unicef “Vidas Adolescentes Interrompidas” (2021), em 2015 a taxa de letalidade violenta de adolescentes no Brasil foi de 27,6 por 100 mil. Os dados do Fórum Nacional de Segurança Pública, publicados no 15º anuário, confirmam que desde então esses números só aumentam, pois ao menos 6.122 crianças e adolescentes foram mortos de forma violenta e intencional no Brasil em 2020, uma alta de 3,6% em relação aos 5.912 casos registrados no ano anterior. As vítimas, no geral, têm um perfil: são meninos e negros. O crime que mais matou quem tinha até 19 anos em 2020 foi o homicídio doloso (82,4% dos casos). Os estados com as piores taxas por 100 mil habitantes de mortes violentas contra essa parcela da população são Ceará (27,2), Rio Grande do Norte (20,9), Sergipe (20,6) e Pernambuco (20,3).

A infância e a adolescência, de acordo com estes dados, correspondem ao mesmo perfil social dos que historicamente foram impedidos de serem chamados de crianças. São conhecidos como “menor”, “elemento”, “sementinha do mal”, “pivete” ou simplesmente “menino”. São negros, menores de idade e envolvidos nas mais diversas situações de vulnerabilidade. Atualmente, são reconhecidos pela lei, o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1992), como sujeitos de direito e deveriam ser amparados por uma rede intersetorial de assistência social, que por diferentes fatores não os alcança.

Diante desse quadro, a invisibilidade dessas crianças e adolescentes de periferias urbanas fica evidente. O estudo de Monique Aparecida Voltarelli, intitulado “Da margem ao centro: a visibilidade das crianças sul-americanas nos estudos da infância” aponta para a transformação das pesquisas sobre infância, com intuito de aumentar sua visibilidade e de contribuir para o desenvolvimento de políticas públicas. Deste modo, os estudos têm focado no seguinte ponto: “pensar no bem-estar infantil remete ao diálogo sobre as intervenções públicas para garantir os direitos sociais, melhorar a qualidade de vida das crianças juntamente com aspectos relacionados com a cidadania” (APARECIDA VOLTARELLI, 2020, p. 184).

De fato, as crianças e adolescentes abordadas aqui não são invisíveis; seus corpos possuem uma materialidade. A invisibilidade, portanto, não é no sentido literal, pois cada indivíduo possui suas histórias de vida, enlaces familiares e experiências individuais. Muitas das vítimas de violência possuíam certidão de nascimento e registro de identidade, frequentavam a escola e tomavam antitérmico quando tinham febre. Assim como tantas outras, as vidas se materializaram na dimensão inquestionável da visibilidade, isto é, a existência de corpos animados, corpos que corriam e brincavam, na condição de crianças. Então, o que aconteceu com os corpos? Como essa resposta fica a cargo dos investigadores, façamos uma pergunta mais próxima das nossas pretensões de refletir sobre as infâncias invisibilizadas: como o Estado, essa única instância detentora do monopólio legítimo da violência, se posiciona diante do desaparecimento desses corpos?

Se a invisibilidade literal só faz sentido nas obras de ficção científica, resta-nos um outro significado para o não percebido. A invisibilidade infantil, no sentido metafórico, é aquela que o filósofo Michel Foucault (2005) sintetizou na fórmula da biopolítica como gestão das vidas: o poder consiste “em fazer viver e deixar morrer”. Um conjunto formado por incontáveis técnicas e procedimentos com o objetivo de exercer o controle populacional e, desse modo, gerir a vida, cuidando de umas em prejuízo de outras. Em termos práticos, na lógica do racismo de Estado, “a morte é também a garantia pessoal da vida”. O nexo entre a promoção de algumas vidas em prejuízo de outras, do fazer viver uns deixando morrer outros, é o modus operandi desse duplo aspecto da condição da infância nas periferias.

Ao refletir sobre as infâncias invisibilizadas podemos ultrapassar a discussão sobre presença versus ausência do Estado. A dupla condição das crianças invisibilizadas, de serem visíveis de fato e invisíveis de direitos, é desdobramento da atuação dúbia do Estado nas margens. Os territórios e as práticas que estão às margens constituem-se como zonas de fronteira entre o legível e o ilegível, o lícito e o ilícito, o legal e o ilegal, uma zona de indiscernibilidade, nas palavras de Giorgio Agamben (2010), áreas nas quais a garantia de direitos está continuamente sujeita à suspensão e a vida se torna nua. É na fronteira entre o legível e o ilegível que fazemos o esforço de compreensão do significado das práticas de violência, de apagamento e de negação de direitos e de cidadania.

A vida precisa ser controlada, regulada, contabilizada, registrada, cuidada. Uma vida requer manutenção, precisa ser promovida através da garantia de direitos. Pensar no caso dos meninos desaparecidos é problematizar a questão da invisibilidade como mecanismo de controle da população baseado na lógica do “deixar morrer”. Segundo a filósofa Judith Butler (2019), existe um manejo tático das vulnerabilidades das populações pelo Estado. Qual é o mecanismo que torna alguns grupos mais vulneráveis que outros? Para a antropóloga Veena Das (2004), as vidas que compõem as populações vulnerabilizadas estariam naquilo que ela chamou de margem, particularmente a forma pela qual as margens se relacionam com o Estado.

Esse mecanismo permite entender como o caso dos meninos permanece sob atenção do Estado ao mesmo tempo em que permanece obscuro e indeterminado. Está localizado às margens, não fora das margens. Não se tratam de pessoas “esquecidas” ou “abandonadas” pelo Estado, mas de pessoas sujeitas a terem a garantia de seus direitos constitucionais, inclusive do direito à vida, suspensos. Estado de exceção apresentado oficialmente como episódico ou temporário, mero recurso para casos de proteção, preservação da segurança e contenção de ameaças. Ocorre que, como nos advertiu Walter Benjamin (1986) já em 1921, do ponto de vista dos oprimidos, o Estado de exceção não é vivido como exceção e sim como regra.

No limite das pautas

A agenda Infâncias e Adolescências Invisibilizadas expõe as vulnerabilidades daqueles que vivem em um território marcado pela violência e pela penetração rarefeita do Estado, o que segundo a narrativa oficial, justifica a dificuldade de atuação. Enquanto figura fantasmagórica (DAS, 2004), o Estado é, simultaneamente, acessível e indescritível, modelador e negligente, característico de um papel dúbio. A antropologia do Estado no sentido dado por Veena Das e Deborah Poole (2004) busca justamente compreender essa existência ou presença inevitável que o poder assume em nossas sociedades.

A relação entre território e crianças e adolescentes pobres, negros ou que estão vinculados a recortes como o campo, as populações indígenas, quilombolas ou o sistema socioeducativo, é sempre apresentada com uma dificuldade maior de se fazer percebida no debate público. É como se existisse uma zona capaz de determinar quem está em pauta e quem está no limite extremo da suspensão de direitos. Esta análise buscou refletir sobre os diferentes entrelaçamentos que poderiam ser chamados de fatores de invisibilidade, o racismo de estado apontado por Foucault. Abrangem desde a cor da pele ou o gênero até a relação do Estado com territórios periféricos. A incapacidade de gerar mobilização constitui o entrelace entre sentimento e direito, face mais cruel dos modos de governança contemporâneos.

A agenda, no entanto, pretende ir além da exposição da invisibilidade, ela quer colaborar para a visibilização – nas pesquisas, nas notícias, nas políticas, na sociedade
– das e com essas infâncias. Os estudos são o primeiro passo, mas chega a hora de sair da palavra, do falar, para a ação, o fazer. Afinal, como ensinou Hannah Arendt (2011,
p. 247), “a educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele”, acrescentando que “a educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos” (ARENDT, 2011, p. 247).

*As referências deste artigo podem ser acessadas no documento original publicado nos Cadernos FLACSO


  
Eduardo Moura é Doutor e mestre em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Consultor do Projeto Infâncias e Adolescências Invisibilizadas coordenado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
Marcele Frossard é Assessora de programa e políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. É doutora em ciências sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em ciências sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Bacharel em ciências sociais pela UERJ.

Andressa Pellanda
Andressa Pellanda

É coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, cientista política, comunicóloga, educadora popular e doutora em Ciências pelo Instituto de Relações Internacionais da USP.