Educação como serviço essencial? Devagar com o andor que o santo é de barro
Quem discorda da inferência de que a educação é importante? Arriscamos dizer que ninguém em sã consciência. Mas devagar com o andor que o santo é de barro: no conceito jurídico, não se pode usar qualquer terminologia para essa afirmação. A palavra “essencial”, que está na boca do Congresso Nacional, por exemplo, é um caso que não configura sinônimo de “importante”.
Serviços essenciais, à luz da legislação brasileira, são aqueles que são de necessidade inadiável, que se vinculam à risco iminente à integridade física das pessoas e à segurança pública, que não é o caso da educação. Para ilustrar, trazemos exemplos de serviços essenciais, conforme a legislação: tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia elétrica, gás e combustíveis; assistência médica e hospitalar; distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos; funerários; transporte coletivo; captação e tratamento de esgoto e lixo; telecomunicações; guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e materiais nucleares; processamento de dados ligados a serviços essenciais; controle de tráfego aéreo e navegação aérea; atividades médico-periciais relacionadas com o regime geral de previdência social e a assistência social; entre outras.
Determinar que educação é serviço essencial é espremer um conceito jurídico para cumprir com conveniências e é uma ação arriscada e irresponsável. É, no entanto, a manipulação narrativa que 276 deputados apoiaram na votação em Plenário da Câmara dos Deputados no dia 20/04, na semana passada, do Projeto de Lei 5595/2020, que torna a educação serviço essencial. O projeto segue para o Senado e deve ser votado dia 29/04.
Tornar a educação essencial gerará um efeito de obrigar as escolas e demais instituições de ensino a abrirem e ofertarem educação presencial de forma permanente, independentemente do contexto sanitário, de calamidade pública, ou de ameaça à segurança pública. Isso significa reabrir escolas em um momento de pico da pandemia, com efeitos de aumento de contaminações, insegurança sanitária e mortes, como mostrou a revista The Lancet. Ou seja, o PL 5595/2020 gerará o efeito contrário dos objetivos dos serviços essenciais: de preservação da vida e da segurança.
Ironicamente, quase 70% desses deputados, que dizem se preocupar com a saúde e segurança das crianças brasileiras, também votaram favoráveis ao teto de R $44 bilhões do novo auxílio emergencial aprovado pela EC 109/21 há pouco mais de um mês. Ou seja, os que supostamente se comovem com a precariedade da vida dessas famílias são os mesmos que contribuem para mantê-las na miséria.
Como se percebe, as deputadas que produziram tal projeto enxergam os estudantes e as famílias de estudantes de escolas públicas como merecedores de tutela e não de direitos. Afinal, a realidade deles já é de miséria, de contato constante com possibilidades de contágio. O mesmo tipo de julgamento obtuso se estende aos profissionais da educação, execrados por estarem em casa recebendo salário sem supostamente trabalhar, mesmo que na realidade tenham trabalhado muito mais apesar do parco apoio do Estado e em péssimas condições de trabalho.
O projeto, na realidade, é apenas um empurrão para que essas escolas que fingem valorizar, voltem a funcionar. A visão é utilitária, falsamente movida por alguma forma de solidariedade e preocupação com os mais vulneráveis, e centrada no lema do governo federal “O Brasil não pode parar”, que já causou quase 400 mil mortes e nos coloca como pior exemplo no mundo em enfrentamento à pandemia de Covid-19.
Este aspecto reforça uma das principais características do governo Bolsonaro, a falta de responsabilidade da União com os entes federados e de compromisso com algum pacto federativo, conforme presente no Art. 23 da Constituição Federal de 1988. O PL 5595/2020 escancara o jogo que tem sido jogado durante toda a pandemia visto que o governo federal, que é quem possui maior capacidade administrativa, financeira e de coordenação em nível federal, não somente se exime de responsabilidade na condução da pandemia, como atua na contramão das recomendações científicas e humanitárias.
Exemplo disso foi a falta de coordenação em âmbito nacional de um plano ou de qualquer planejamento para investir na infraestrutura das escolas e, pior, foi o bloqueio de verbas na Lei Orçamentária (LOA) em R $2,7 bilhões na educação, sendo a maior parte na rubrica de investimentos em infraestrutura. Ou seja, a pressão é pela reabertura, mas tirando o corpo fora de responsabilidades quaisquer em termos de segurança e condições.
Estamos em pandemia há mais de um ano e durante esse tempo não houve planejamento ou execução de orçamento ou ação que visasse um retorno gradual e coordenado na educação. O Ministério da Educação, que sempre foi responsável por coordenar ações deste tipo, sequer apresentou alguma ação nacional para a reabertura. E não se pode contar com isso, afinal, a agenda do governo está pautada em fazer avançar a regulamentação da educação domiciliar e programas de militarização das escolas – duas agendas que caminham na contramão do direito à educação, conforme preconiza a Constituição Federal e os pactos internacionais dos quais o país é signatário, e não têm quaisquer relações com a emergência sanitária que vivemos.
Os argumentos que justificam a aprovação do PL 5595/2020 distorcem os dados e os fatos. A realidade da escola pública, como é sabido por todos que de fato se preocupam com esta instituição, é diversa e na maioria esmagadora dos casos realmente precária, carecendo de vultosos investimentos. Esses investimentos não foram realizados, ao contrário, a educação vem sofrendo cortes continuamente – durante a pandemia, inclusive, como o mais recente de 27% na LOA 2021. O mesmo acontece com a área de proteção social, dificultando o funcionamento de Conselhos Tutelares, CRAS, CREAS e toda a rede de assistência social. Portanto, se realmente houvesse preocupação com o bem estar, com a proteção e com a educação de crianças, adolescentes e jovens da rede pública do país estaríamos discutindo investimento, infraestrutura e aumento da rede de proteção social e não uma abertura forçada, sem a menor condição sanitária.
Como dissemos desde o início, de essencial e de interesse pelo bem público não há nada. O que nos leva a substituir um ditado paroquial por outro: não podemos cair no conto do vigário.
Daniel Cara é professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
Helena Rodrigues é assessora de políticas educacionais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e mestranda no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo.
Marcele Frossard é assessora de políticas sociais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e doutora em ciências sociais pela UERJ.
É coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, cientista política, comunicóloga, educadora popular e doutora em Ciências pelo Instituto de Relações Internacionais da USP.