Análises

É preciso descolonizar as mentes e as políticas educacionais

Relatora especial da ONU para o direito à educação apresentou seu relatório temático sobre a dimensão cultural do direito à educação e mostra como estamos distantes de uma sociedade multicultural e sem discriminações

Por Andressa Pellanda

A relatora da ONU para o direito à educação, Koumbou Boly Barry, apresentou na semana passada seu relatório temático de 2021, sobre a dimensão cultural do direito à educação. E esse tema, pouco abordado no campo e no debate público, é, eu diria, central para a compreensão da educação com uma perspectiva de direito. Participei da reunião de especialistas que apoiou a formulação do documento e trago aqui o que levei a esse momento de diálogo com especialistas de diversos olhares e culturas.

No contexto da educação multicultural, a pedagogia da autonomia e a dialética são pilares centrais. Pilares que compartilhamos com referência ao grande mestre Paulo Freire, que ensinou: "Um dos grandes pecados da escola é ignorar tudo o que a criança alcançou. A escola decreta que não há nada antes dela" (Paulo Freire, 1996).

Para que a educação respeite a sua dimensão multicultural, é urgente um processo de descolonização de mentes, estruturas e instituições, que continuam a operar no modelo centro-periferia, colonizador-colonizado, dominação dominante. “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”. (Paulo Freire, 2002) Nesse sentido, devemos sublinhar a diferença entre educação e aprendizagem. A aprendizagem reduz o direito e, claro, a dimensão cultural da educação.

As diferenças não devem apenas ser bem-vindas ou respeitadas, mas também celebradas e reconhecidas. Ontem, celebramos o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+ e é uma feliz coincidência que estejamos falando sobre a dimensão cultural do direito à educação.

A educação deve ser um vetor ativo e também um suporte para as políticas intersetoriais e intersetoriais não só de inclusão, mas também de antidiscriminação. Portanto, deve ser contra a conversão forçada, a dominação e a aculturação. As políticas de educação multicultural são mais eficazes quando tomadas de forma interseccional, transversal e nacional (respeitando as diferenças regionais), para todos. “Numa sociedade racista, não basta não ser racista, tem que ser anti-racista” (Angela Davis).

No Brasil, por exemplo, a Lei 10.639 / 2003 e a Lei 11.645 / 2008, que tratam do ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana e indígena, destacam a importância da cultura negra e indígena na formação da sociedade brasileira. A Lei propõe novas diretrizes curriculares para o estudo da história e da cultura afro-brasileira e africana e indígena. Por exemplo, os professores deveriam enfatizar a cultura afro-brasileira e indígena em sala de aula como constituinte e formadora da sociedade brasileira, na qual os negros e indígenas são vistos como sujeitos históricos, valorizando assim o pensamento e as ideias de importantes intelectuais negros e indígenas brasileiros, cultura (música, culinária, dança, etc.) e religiões baseadas na África.

No entanto, não basta a Lei, é necessário implementar políticas de educação em direitos humanos e reformas para uma gestão democrática da educação. É necessário incluir os temas da não invisibilidade, não discriminação, anti-racismo, anti-LGBTIfobia, anti-machismo e anti-misoginia, no currículo escolar e na formação de profissionais da educação (não apenas professores, porque todos os profissionais são educadores, especialmente na concepção Paulo Freire), bem como permitir um espaço de atuação transversal no projeto político educacional das escolas e dos sistemas educacionais.

O desenvolvimento curricular, a formação de professores e a revitalização da linguagem são estratégias que devem ser desenvolvidas de forma participativa no processo de tomada de decisão. Assim, construímos um sistema abrangente de formação contínua de professores que melhora a sala de aula e ajuda a gerar uma mudança de percepção e comportamento tanto do lado educacional quanto da comunidade. A educação multicultural deve ser, ao mesmo tempo, direcionada e regional, assim como descentralizada e sistêmica.

No Brasil, infelizmente, porém, há um desafio gigantesco na implementação dessa legislação. Os resultados do Plano Nacional de Educação em 2021 no seu objetivo 8, que se refere justamente à equidade, mostram o quanto ainda estamos longe desse objetivo. O governo federal e suas bases de apoio têm promovido programas discriminatórios e que impõem uma cultura de autoritarismo, negando a ciência, oprimindo as diferenças e reprimindo a diversidade. É uma agenda contrária à promoção da cultura na educação.

Vale lembrar que as escolas também devem ser multilingues, com um currículo que englobe os saberes e as histórias tradicionais, de forma a acolher e incluir, especialmente neste sentido, as populações tradicionais e os migrantes. Os programas de revitalização linguística são bem-vindos e frutíferos, desde que participativos entre o Estado e as respectivas populações. Em meu país, berço de centenas de povos indígenas e local de maior extensão territorial da Amazônia, onde nasci, ainda precisamos de muitos avanços para garantir o multilinguismo na educação e a inclusão da educação indígena no seio das escolas.

A educação deve ser laica, enquanto ensina o respeito pelas diferentes crenças e tradições. No entanto, nosso governo apoiou-se em ações religiosas fundamentalistas no campo da educação, o que minou o direito à liberdade religiosa e o exercício das diferentes culturas nas escolas.

Em uma época marcada por notícias falsas e negacionismos, é preciso retomar valores que se pensavam superados, como a educação científica onde, em vez da lacuna e da inexistência de neutralidade, é preciso reiterar a objetividade e a liberdade acadêmica e de cátedra.

Por fim, é importante ressaltar a importância de um sistema educacional com financiamento adequado INCLUSIVO PORQUE A CULTURA É SISTÊMICA, que pode permitir uma infraestrutura de qualidade para todos e garantir a justiça social. O princípio da solidariedade ativa em cooperação com os atores públicos, privados e civis na cooperação financeira e técnica deve ser incentivado e implementado em todas as áreas.

“Um dia este país [este mundo, com o perdão da adaptação] será menos feio. Ninguém nasce para ser feio. Este país [ou este mundo] será mais bonito na medida em que lutamos com alegria e esperamos [de o verbo esperançar] [...] o que muda é a forma de lutar ”. (Paulo Freire)

Recomendações da ONU para a promoção da dimensão cultural do direito à educação

A relatora realiza, em seu relatório, as seguintes recomendações (a tradução é nossa a partir do relatório em espanhol) :

« Os Estados e outros atores devem reconhecer que a diversidade cultural é uma característica fundamental das sociedades contemporâneas que deve não apenas ser refletida, mas também valorizada, no sistema educacional, formal e informal, em todos os níveis. A diversidade cultural deve ser entendida em um sentido amplo: a) Inclui todas as diversidades, não só linguísticas, étnicas e religiosas, mas também sociais ou de gênero, ou vinculadas a qualquer outra situação, como deficiência ou pobreza; b) Afeta não só alunos e docentes, mas também todos aqueles que participam na vida escolar; c) Diz respeito aos recursos culturais (obras, saberes) de que as pessoas são portadoras ou que estão presentes ou acessíveis num ambiente único e aberto à diversidade; d) Abrange todas as disciplinas educacionais. 

Todas as instituições de ensino, públicas ou privadas, devem aspirar a respeitar os valores universais e a diversidade das referências culturais, em termos de planos de estudos e métodos de ensino, mas também respeitar e acolher pessoas com referências culturais diferentes. 

Ninguém pode invocar a diversidade cultural para violar os direitos humanos garantidos pelo direito internacional, ou para limitar seu alcance. A “cultura”, seja em nível comunitário ou nacional, não deve ser invocada como um sistema de valores único, não diversificado e supostamente consensual para restringir o direito à educação por meio da censura de currículos, do uso de práticas discriminatórias e excludentes, ou da promulgação de normas rígidas que impedem a expressão de identidades culturais nas instituições educacionais e posteriormente ao longo da vida.

Os Estados e demais atores devem reconhecer e respeitar: 

a) O direito dos alunos a uma educação culturalmente apropriada e relevante, que lhes permita acessar os recursos culturais presentes em um ambiente específico aberto à diversidade e a contribuições externas, participar de práticas que lhes permitam apropriar-se desses recursos e contribuir para os mesmos, o que implica promover a plena eficácia de uma educação intercultural e, se for o caso, bilíngue ou multilíngue, que inclui, se for o caso, a aprendizagem das línguas maternas e nelas, e também da língua de sinais e o braille e neles; 

b) O direito dos alunos de não serem objeto de discriminação ou segregação direta ou indireta em centros de ensino, públicos ou privados, em razão da sua identidade cultural ou situação particular; 

c) O direito ao reconhecimento mútuo e à aprendizagem de referências culturais, patrimoniais, artes, ciências, religiões e histórias de comunidades, bem como suas várias contribuições para o desenvolvimento e a vida das sociedades mais amplas, do qual deve resultar a revisão periódica dos livros escolares, que não devem ser um veículo de discriminação, desprezo e discurso de ódio, mas devem incluir as várias histórias e contribuições das comunidades; 

d) Liberdade acadêmica para professores em todos os níveis, dando-lhes alguma flexibilidade quanto ao conteúdo do currículo prescrito para que possam se concentrar em questões local e culturalmente relevantes para seus alunos, algo que eles devem ser incentivados a fazer; 

e) O direito dos alunos a não serem sujeitos a doutrinação, o que inclui o direito de não serem educados numa determinada religião; 

f) A liberdade dos pais de assegurar a educação religiosa e moral de seus filhos de acordo com suas próprias convicções, e de escolher para eles centros que não sejam públicos, mas de acordo com as normas mínimas prescritas pelo Estado, que também deve respeitar as diretrizes humanos;

g) A liberdade das pessoas singulares e coletivas de constituir e dirigir instituições de ensino, desde que respeitados os objetivos do direito à educação e as normas mínimas prescritas pelo Estado; 

h) Os direitos da criança, de acordo com a Convenção sobre os Direitos da Criança, entendendo que, embora seja importante respeitar as responsabilidades, direitos e deveres dos pais ou membros da família alargada ou da comunidade de educando a criança, de acordo com a evolução de suas faculdades, direcionamento e orientação adequada para o exercício de seus direitos, é igualmente importante respeitar os direitos da criança, em particular os relativos à liberdade de expressão, pensamento, consciência e religião, informação e educação, bem como o direito da criança de expressar livremente sua opinião nos assuntos que a afetem, de acordo com sua capacidade;

i) A importância dos modos e métodos de transmissão do patrimônio cultural, bem como métodos de salvaguarda inovadores, que, por sua vez, as comunidades, grupos e, quando apropriado, os indivíduos reconhecem como parte de seu patrimônio cultural, e tentam aproveitar seu potencial dentro sistemas de educação formal e não formal.

As dimensões culturais do direito à educação requerem o respeito e a promoção da diversidade da paisagem educacional a par de: 

a) Um certo nível de descentralização que permite ao poder público local valorizar adequadamente os recursos culturais locais; 

b) Um certo grau de autonomia das instituições de ensino, dispostas a iniciar um projeto educativo que possa ser orientado para referências culturais específicas, mesmo religiosas ou pedagógicas. 

É necessário centrar a governação participativa dos sistemas educativos na relação jurídica que constitui o eixo e o princípio de toda a vida educativa entre os titulares do direito à educação (alunos) e os titulares de obrigações, de forma a garantir o participação de todos em uma diversidade de conhecimentos sinérgicos. 

Em um enfoque de educação inclusiva, os Estados e demais atores devem garantir a inclusão: 

a) Das pessoas na vida educacional, e valorizar sua diversidade cultural; 

b) Dos atores que desenvolvem as várias vias e sinergias, essenciais para atingir um grande número de pessoas, que interpretam e qualificam cada instituição e atividade educacional como um ecossistema com seus atores, em conformidade com os Princípios de Abidjan; 

c) Dos recursos culturais (obras e saberes) em toda a sua diversidade, nomeadamente através da elaboração de análises e programas educativos interculturais que impliquem o diálogo e o debate entre os diferentes recursos culturais; 

d) Das disciplinas, que devem ser utilizadas para garantir as dimensões culturais do direito à educação, através da criação de uma cultura de interdisciplinaridade e troca de saberes que valorize a complementaridade e a necessária interação entre os campos da educação, e garantindo que a educação artística, sobre o património, nas línguas, sobre as contribuições das diferentes religiões, sobre a cidadania e sobre os direitos humanos é ministrada em escolas de todos os níveis e acessível a todos. 

Seria útil estimular discussões abertas e análises comparativas de práticas culturais mais ou menos favoráveis ​​ou prejudiciais aos direitos humanos. 

A educação intercultural e inclusiva requer uma base participativa para a tomada de decisões. Os Estados e demais atores devem: 

a) Estabelecer mecanismos de participação dos diversos atores da educação nos diversos níveis, seja para a elaboração de planos de estudos, formação de professores ou revitalização linguística; 

b) Estimular as instituições de ensino a valorizarem o seu lugar e a sua vinculação com o território, ou seja, a se verem como espaços de portas abertas que se relacionam com as organizações e os diferentes grupos que as rodeiam. 

Os Estados e outros atores devem promover a cooperação entre bibliotecas, instituições educacionais e outros atores relevantes para garantir a disponibilidade e acessibilidade, inclusive financeira, de materiais de diferentes experiências culturais na educação. De maneira mais geral, os atores da educação não formal e informal devem ser considerados participantes plenos da vida educacional.

Os Estados e demais atores devem considerar e observar os ecossistemas educacionais de forma participativa, nos níveis “micro”, “meso” e “macro”, e não limitar a análise a resultados estatísticos. O objetivo é definir de forma concreta os fatores favoráveis ​​e desfavoráveis ​​à efetividade do direito à educação e desenvolver indicadores que permitam avaliar as interconexões entre todos os atores e seus recursos. 

Os Estados e outros atores devem reforçar a formação sistemática, incluindo a formação contínua, de professores e todo o pessoal escolar para garantir uma educação inclusiva e intercultural de qualidade, em particular para: 

a) Reconhecer os mecanismos de exclusão cultural e lutar ativamente contra todos os aspetos que dificultam a desenvolvimento de uma escola intercultural e inclusiva, possivelmente bilíngue ou multilíngue; 

b) Promover a adoção de histórias plurais e inclusivas; 

c) Ministrar temas muitas vezes considerados delicados e polêmicos; 

d) Promover entre os alunos o desenvolvimento da autoaceitação e aceitação do outro, o sentimento de pertença à sociedade, o pensamento crítico, a diversidade e a capacidade de empatia com os outros (“Enquadramento ABCDE” 118);

e) Promover o respeito pela diversidade cultural por parte dos pais e das diferentes comunidades presentes. 

Os Estados e outros atores devem tomar medidas para assegurar que as instituições educacionais e seus líderes apoiem ​​e promovam o treinamento de seus professores e de todo o seu pessoal. Ao final da formação, que deve agregar valor à trajetória profissional dos interessados, deve ser obtido um diploma. »

(Foto: Felipe Dalla Valle/Palácio Piratini/Saúde RS)

 

Andressa Pellanda
Andressa Pellanda

É coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, cientista política, educadora, comunicóloga e doutoranda em ciências (IRI/USP).