Análises

Geração perdida? A culpa não é da pandemia

Artigo sobre reabertura das escolas e outros contextos educacionais em tempos de pandemia

Falta de aprendizagem, sofrimento psíquico, evasão escolar, geração perdida. São essas as expressões usadas para caracterizar a chaga social de milhares de escolas fechadas e milhões de estudantes sem estudar no Brasil desde março de 2020. A rigor, as escolas públicas não estão fechadas, pois gestores e profissionais dos quadros de apoio jamais deixaram de trabalhar presencialmente.

Apesar disso, é mesmo um descalabro que dezenas de milhões de pessoas em idade escolar estejam impossibilitadas de frequentar escolas. Mas é um descalabro ainda maior que isso ocorra justamente porque, nos últimos dez meses, governadores e prefeitos fizeram muito pouco para criar as condições objetivas de reabrir as escolas com alguma segurança sanitária. Consequentemente, não criaram as condições subjetivas para o retorno às atividades presenciais: estudantes, profissionais da educação e famílias – por medo e por desconfiança – se recusam a voltar.

Avança o mês de janeiro, e os mesmos de sempre tentam nos convencer – mais uma vez – de que a recusa a uma reabertura insegura é obra de um maligno corporativismo sindical. Oxalá os sindicatos docentes tivessem tamanha capacidade de pautar o debate público e de influenciar milhões de pessoas. Excrescências como o Escola sem Partido e a militarização escolar teriam muito menos entrada na sociedade; e mais políticos teriam vergonha de tentar desviar recursos da escola pública para instituições de ensino privadas.

Os assessores educacionais do empresariado e seus sócios na imprensa vão passar os próximos meses demonizando os profissionais da educação que se negarem a voltar ao trabalho escolar presencial. Os sindicatos que convocarem greves sanitárias serão achincalhados, sobretudo se o fizerem de forma isolada e sem uma boa estratégia de comunicação com a sociedade. Não faltarão colunistas reacionários dizendo que assumiriam aulas na escola pública se a idade lhes permitisse; chamando professores de insensíveis ou vagabundos. Está aberta a temporada da lacração.

Igualmente lacradores, contudo, foram os prefeitos e governadores que propagandearam as maravilhas do ensino remoto emergencial, mas que não investiram o necessário para que ele tivesse alguma eficácia em manter os vínculos dos estudantes com o conhecimento, prejudicados pela falta da escola.

Assim, passaram a defender o retorno às atividades presenciais a despeito das condições físicas dos prédios escolares, da inexistência de equipes que deem conta das novas rotinas de trabalho e da falta de diálogo com as secretarias de saúde para a implementação de protocolos sanitários profissionais. Governadores, prefeitos e secretários de educação parecem ter aceitado que o desenho de protocolos de segurança sanitária não improvisados é luxo reservado às escolas das elites.

A falta de investimentos em infraestrutura escolar é um problema estrutural no Brasil; anterior, portanto, à Covid-19. O susto de governadores e prefeitos com os impactos da pandemia na educação é, nesse sentido, compreensível: de uma hora para a outra, eles se viram obrigados a lidar com todas as pressões conjunturais da pandemia e, ao mesmo tempo, a trabalhar para reverter décadas de abandono das escolas públicas. Não fizeram nada disso, e ainda fingiram surpresa quando as pessoas se negaram a retornar sem alguma garantia.

Os responsáveis pela falta de condições de nossas escolas e por não termos uma reabertura segura luzindo no horizonte são o Estado e seus administradores. O Estado é administrado por governos, mas só é confundido com eles quando interessa aos ocupantes dos cargos públicos. Vide o caso de João Doria, que tira proveito político de uma vacina testada e produzida pelo Instituto Butantan (órgão da administração direta do estado de São Paulo), mas nada diz sobre a calamidade na rede de 5.000 escolas administrada por seu governo.

Durante a pandemia, os gestores da rede estadual paulista se desresponsabilizaram e chantagearam as comunidades escolares. O que não fizeram foi reformar escolas, criar condições para uma oferta efetiva de ensino remoto e desenhar protocolos sanitários em diálogo com as especificidades locais das escolas. E por que razão, no estado mais rico do país, administrado há 26 anos pelo mesmo partido e cujo governo também administra o Instituto Butantan da CoronaVac, as escolas estaduais estão como sempre estiveram?

A relatora especial da ONU para o direito à educação, Koumbou Boly Barry, declarou em entrevista recente que “Não podemos criar uma ‘geração perdida’”. Ela se referia não à pandemia, mas às “políticas equivocadas de austeridade que estão colocando vidas em risco” e que precisam ser enfrentadas aumentando “os gastos para combater a desigualdade e a pobreza exacerbadas pela pandemia da Covid-19”.

Os desonestos sempre preferem olhar para o lado, falsificar o discurso e dizer que foi a relatora da ONU quem estabeleceu relação direta entre “pandemia” e “geração perdida”. Tudo para chegarem à conclusão de que as atividades presenciais nas escolas devem ser retomadas a qualquer custo (exceto financeiro, é claro).

Mas quando Boly Barry defende que se garanta a “saúde mental” de estudantes e trabalhadores da educação e afirma que as escolas fechadas prejudicam a aprendizagem das crianças, ela o faz no marco da saúde e da educação como direitos coletivos e como bens públicos. A relatora da ONU defende a reabertura das escolas, mas no marco do fim de um Estado austericida que já matava pessoas antes da pandemia e que criava “gerações perdidas” com escolas abertas.

Não é a pandemia que leva crianças e adolescentes à perdição, mas os administradores do Estado austericida que deixam de implementar políticas sociais. São eles que precisam ser cobrados por esses dez meses de escolas sem alunos no Brasil.

Fernando Cássio
Fernando Cássio

É doutor em ciências, professor da UFABC, participa da Rede Escola Pública e Universidade e é membro da rede da Campanha. Organizou o livro Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar (Boitempo).