Análises

“A sociedade quer ver meninos na educação – meninas, em casa”

Manifesto Meninas Decidem pelo Direito à Educação será lançado dia 16/8 em Recife, com demandas de meninas periféricas, indígenas, quilombolas, travestis, trans, trabalhadoras do campo e com deficiência para a educação nas Eleições 2022

Artigo originalmente publicado no site do Le Monde Diplomatique Brasil

Já foram mais que debatidos os efeitos da Covid-19 na educação de crianças, adolescentes e jovens no Brasil e no mundo. Sabe-se da imensa desigualdade social que se aprofundou com a falta de políticas emergenciais adequadas para a inclusão de todas as pessoas nos processos educacionais remotos durante o período em que as aulas presenciais foram suspensas e as escolas fechadas. O Brasil, inclusive, foi um dos que mais sofreu no mundo os impactos de políticas de saúde pública negacionistas e com a falta de investimento para que a situação sanitária fosse melhorada e, portanto, para que as instituições de ensino voltassem a funcionar com segurança.

O Plano Nacional de Educação 2014-2024 está com muitas metas em retrocesso e nenhuma cumprida integralmente. As recomendações internacionais do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 4 e da Revisão Periódica Universal da ONU para o Brasil não foram implementadas, estão estagnadas ou em retrocesso, como demonstrado em diversos relatórios da sociedade civil. Ainda, as recomendações do Comitê das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança e as recentes resoluções sobre o direito à educação e o direito das meninas à educação também não foram integralmente seguidos pelo Estado brasileiro, pelo contrário, muitos deles estão ameaçados.

De acordo com o relatório País sufocado – saldo do Orçamento Geral da União, divulgado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em julho de 2021, a área de Educação, além de não ter recebido recursos adicionais em decorrência da pandemia, teve R$ 7 bilhões a menos em execução financeira em 2020 do que em 2019 – mesmo diante de um cenário que exigia medidas efetivas e formas inovadoras de garantir condições de ensino em meio à pandemia.

As escolas já retomaram as aulas presenciais (de forma híbrida em alguns lugares). No entanto, de acordo com o Censo Escolar de 2021, apenas 34% das escolas municipais de educação infantil possuem banheiro adequado para esta etapa, em relação à rede pública de abastecimento de água, apenas 54% das escolas públicas são cobertas, sendo o recurso menos comum no norte do país.

De acordo com dados de agosto de 2020 do Programa de Monitoramento Conjunto da OMS e do Unicef para Saneamento e Higiene (JMP), 39% das escolas no Brasil não têm instalações básicas para lavar as mãos; apenas 19% das escolas públicas do Estado do Amazonas têm acesso à água, enquanto a média nacional é de 68%; em relação ao esgotamento sanitário, a situação é ainda mais crítica, pois em alguns estados da região Norte, menos de 10% das escolas têm acesso a serviços públicos de esgotamento sanitário.

Direito à educação de meninas negras, quilombolas, indígenas e em áreas urbanas de conflito

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD Covid-19, realizada em 2020, revelaram que 6,4 milhões de alunos, correspondendo a 13,9% do total, não tiveram acesso às atividades escolares no Brasil. A mesma pesquisa mostrou que estudantes negros e indígenas sem atividade escolar são três vezes o número de alunos brancos: 4,3 milhões de crianças e adolescentes negros e indígenas nas escolas públicas e 1,5 milhão de adolescentes brancos, respectivamente. De fato, acentuadas pela pandemia, as desigualdades educacionais atingem todos os grupos sociais, porém, é inexorável reconhecer que a pandemia amplia as desigualdades educacionais existentes entre não brancos e brancos no Brasil.

Diante dessa realidade, o Geledés – Instituto da Mulher Negra realizou a pesquisa O direito à educação de meninas negras em tempos de pandemia: o aprofundamento das desigualdades na cidade de São Paulo, com foco em raça/cor e gênero. O estudo mostrou que muitas das meninas entrevistadas não possuem espaço adequado para estudar remotamente (com cadeira, mesa, iluminação, por exemplo) e/ou não possuem horário reservado para atividades escolares e/ou não possuem material adequado. A porcentagem de meninos que dedicam mais de 6 horas aos estudos é aproximadamente o dobro das meninas. Redução da renda financeira, maior dedicação à rotina de crianças e adolescentes, redução do estímulo ao aprendizado devido ao fechamento das escolas e sobrecarga de atividades domésticas são exemplos do impacto da Covid-19 na vida das famílias negras paulistas.

Ainda que limitadas, as informações disponíveis sobre meninas e jovens quilombolas revelam uma realidade de vulnerabilidade social. Na pesquisa Racismo e Violência contra Quilombos, lançada em 2018, a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos chama a atenção para as agressões que têm atingido crianças e adolescentes quilombolas.

Estamos cientes das especificidades que acabam sendo condições para que as meninas indígenas saiam da escola antes dos meninos. Os principais motivos são gravidez precoce, casamento infantil, trabalho doméstico, responsabilidade financeira precoce, violência de gênero no caminho ou na escola, assédio, preconceito, insegurança territorial. Sobre as estruturas na educação escolar indígena, o portal do Ministério da Educação (MEC) informa que:

A operação de unidades em prédios escolares chega a 2.316 (69%). As regiões Norte e Nordeste apresentam o menor percentual de escolas operando em prédios escolares – respectivamente, 65% e 69%. Enquanto a região Sudeste apresenta o maior índice – 94,59% – de unidades operando em prédios escolares. As escolas indígenas das regiões Sul e Sudeste têm 100% de acesso à energia elétrica, enquanto na região Norte têm apenas 54% de acesso. Quanto ao esgotamento sanitário, as escolas indígenas das regiões Sul e Sudeste têm, respectivamente, 98% e 90% de acesso, enquanto na região Norte têm apenas 39,61% de acesso. Estruturas físicas de apoio ao aprendizado de ciências, informática e idiomas estão praticamente ausentes nas escolas indígenas. Apenas 6,84% das escolas indígenas possuem laboratórios de informática, 0,50% possuem laboratórios de ciências, 8,01% possuem bibliotecas e 14,73% possuem acesso à internet.

Em entrevistas realizadas pelo projeto Cunhataí Ikhã, as meninas apontaram a precariedade de suas escolas em termos de equipamentos e material escolar. Além de equipamentos e material escolar, as meninas também apontaram a questão da merenda escolar, que pode estar faltando devido à inadequação dos repasses dos órgãos governamentais. Além disso, segundo Larissa Tuxá, o preconceito contra as mulheres indígenas é ainda mais forte e dificulta o desenvolvimento dos estudos. Ser menina indígena, segundo uma menina Pataxó HáHá Hãi (cujo nome foi preservado aqui) pode dificultar o estudo porque “a maior parte da sociedade quer ver homens, meninos, avançar na educação e (…) menina tem que ficar em casa”. Uma menina Tumbalala (cujo nome foi preservado aqui) também observa que geralmente as universidades mais próximas das aldeias são universidades privadas. Uma menina Tupinambá (cujo nome foi preservado aqui) chama a atenção para a sobrecarga que meninas e mulheres tendem a ter, que aumenta em caso de casamento e/ou gravidez, fazendo com que muitas vezes, mas não consigam conciliar trabalho doméstico e estudos, mesmo quando motivadas a estudar.

O estudo “Educação de meninas e Covid-19 no Complexo de Favelas da Maré”, uma pesquisa com mais de mil moradores de 16 favelas do Rio de Janeiro buscou identificar os impactos da pandemia na educação de meninas. A pesquisa mostra como a Covid-19 afetou a educação de meninas e mulheres na Maré. Mais de um terço deles – 34,7% – afirmaram não ter acesso à internet em casa, enquanto 26,6% informaram que suas escolas não ofereciam atividades remotas. Mesmo quem tinha celular ou computador com internet se deparava com a baixa qualidade da conexão com a internet, sem falar nas dificuldades financeiras para pagar os pacotes de dados que duravam até o final de cada mês. Não à toa, apenas 66,5% das meninas e mulheres matriculadas nas escolas conseguiram manter uma rotina de estudos em casa, e apenas 27,7% delas afirmaram estudar cinco dias ou mais na semana.

O que precisa ser feito?

Acreditamos que mais do que um debate, são necessárias ações concretas para financiar o direito das meninas à educação e equipar as escolas. A precariedade da infraestrutura não será sanada da noite para o dia e, portanto, é no mínimo necessário um plano nacional de reabertura, estabelecendo protocolos de segurança e disponibilizando recursos para as mudanças necessárias. Além disso, também é necessário criar condições subjetivas de segurança, para que as meninas se sintam seguras para retornar.

Aprovado pela Emenda Constitucional 108/2020, do novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e desenvolvido pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o Custo Aluno-Qualidade (CAQ) é um mecanismo que combina qualidade, controle social e financiamento da educação. O CAQ é uma das formas de garantir infraestrutura nas escolas para meninas em todo o país e precisa ser regulamentado e implementado.

Para colaborar com isso, a Campanha compilou 70 recomendações sobre educação e proteção para enfrentar a pandemia em 2021. Esta síntese de informações foi desenvolvida a partir de todo o acúmulo ao longo de 2020 e traz atualizações de contexto neste novo ano, bem como recomendações para a tomada de decisões para que as políticas de emergência a serem desenvolvidas em 2022 sejam baseadas em direitos.

Ainda, a Campanha colaborou com o Relatório sobre o impacto da crise do COVID-19 no direito à educação do Relator Especial sobre o Direito à Educação publicado em 2020 (A/HRC/44/39), apresentando uma série de recomendações para a educação de meninas e meninos em sistema remoto, híbrido ou presencial, na volta às aulas. O quadro elaborado contempla o sistema 4A do direito à educação, trazendo recomendações sobre acessibilidade, adaptabilidade, aceitabilidade e disponibilidade.

#MeninasDecidem pelo Direito à Educação

O Manifesto #MeninasDecidem pelo Direito à Educação será lançado em evento presencial na Defensoria Pública da União no Recife na próxima terça-feira (16/08), das 9h às 12h, com transmissão ao vivo. O documento é resultado do trabalho conjunto da Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala (Rede Malala)[1] e do comitê que reúne 21 meninas de todo o Brasil, incluindo meninas negras, periféricas, indígenas, quilombolas, travestis, trans, trabalhadoras do campo e com deficiência, para delinear as prioridades das meninas para a educação. Entre as demandas específicas estão uma educação pública de qualidade, antirracista, antissexista e que combata as desigualdades sociais e a discriminação baseada em gênero.

Neste ano de eleições, a Rede Malala tem defendido que todas e todos candidatos priorizem o direito à educação de meninas nos planos de governo. Além de ter liderado uma campanha para incentivar meninas de até 17 anos a tirarem o título de eleitora no prazo estabelecido pela Justiça Eleitoral, a rede apoiada pelo Fundo Malala lançou em junho uma Carta Compromisso pelo Direito à Educação nas Eleições 2022. A carta propõe um pacto com 40 pontos para que os próximos governos eleitos coloquem a educação como pauta urgente e prioritária. A iniciativa é resultado de uma parceria com a Campanha Nacional pelo Direito à Educação e seu Comitê Diretivo.

“As meninas no Brasil enfrentam múltiplas barreiras para ter acesso a esse direito humano básico que é a educação, como falta de qualidade do ensino, gravidez precoce e condições socioeconômicas”, diz a Nobel da Paz Malala Yousafzai. “Para estimular melhores resultados, líderes do Brasil devem ouvir as demandas das meninas. Por isso, peço que todas e todos candidatos endossem o manifesto #MeninasDecidem e assinem a carta de compromisso, da Rede Malala, para, assim, garantir que a educação de meninas seja uma prioridade nos próximos mandatos.”

[1] Inspirado pelas raízes de Malala e Ziauddin Yousafzai como ativistas locais no Paquistão, o Fundo Malala estabeleceu em 2017 a Rede de Ativistas pela Educação (Education Champion Network) para investir, apoiar o desenvolvimento profissional e dar visibilidade ao trabalho de mais de 80 educadores de dez países (Afeganistão, Bangladesh, Brasil, Etiópia, Índia, Líbano, Nigéria, Paquistão, Tanzânia e Turquia) que trabalham a nível local, nacional e global em defesa de mais recursos e mudanças políticas necessárias para garantir o direito à educação das meninas. No Brasil, a Rede é formada por 11 ativistas e suas organizações e implementa projetos em diversas regiões do país para quebrar as barreiras que impedem meninas de acessar e permanecer na escola, com foco em meninas negras, indígenas e quilombolas. A Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala no Brasil é formada pela seguintes ativistas e suas organizações:

Ana Paula Ferreira De Lima | Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAÍ)
Andréia Martins de Oliveira Santo | Redes da Maré
Andressa Pellanda | Campanha Nacional pelo Direito à Educação
Benilda Regina Paiva De Brito | Projeto Mandacaru Malala
Cassia Jane Souza | Centro das Mulheres do Cabo (CMC)
Cleo Manhas | Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC)
Denise Carreira | Ação Educativa
Givânia Silva | Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ)
Paula Ferreira da Silva| Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social (CENDHEC)
Rogério José Barata | Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF)
Suelaine Carneiro | Geledés Instituto da Mulher Negra

(Foto: Reprodução Instagram Rede Malala)

Andressa Pellanda
Andressa Pellanda

É coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, cientista política, educadora, comunicóloga e doutoranda em ciências (IRI/USP).